Arquivos Artigos dos livros – Gelo & Fogo https://www.geloefogo.com/category/artigos/artigos-livros Informações sobre a obra de George R. R. Martin Sun, 10 Oct 2021 15:06:24 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.1.6 140837471 O nascer da neblina: magia e ciência no prólogo de ‘O Festim dos Corvos’ https://www.geloefogo.com/2021/10/o-nascer-da-neblina-magia-e-ciencia-no-prologo-de-o-festim-dos-corvos.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-nascer-da-neblina-magia-e-ciencia-no-prologo-de-o-festim-dos-corvos https://www.geloefogo.com/2021/10/o-nascer-da-neblina-magia-e-ciencia-no-prologo-de-o-festim-dos-corvos.html#comments Thu, 07 Oct 2021 23:04:39 +0000 https://www.geloefogo.com/?p=107739 Ainda em 2018, publiquei um texto sobre o prólogo de A Fúria dos Reis, analisando a relação de Cressen e Stannis […]

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Ainda em 2018, publiquei um texto sobre o prólogo de A Fúria dos Reis, analisando a relação de Cressen e Stannis e as lacunas deixadas pelo narrador que focaliza a história no olhar do velho meistre. Para além da interessante discussão gerada por esse assunto, surgiram várias sugestões de que seguíssemos com uma série de textos sobre os prólogos e epílogos dos livros. Decidi ouvi-las, e, na sequência, publiquei uma leitura do epílogo de A Tormenta de Espadas, discutindo representações da vingança. Agora, continuando a essa série nada ordenada de análises, vamos discutir o prólogo de O Festim dos Corvos.

É um capítulo cheio de mistérios, conspirações, suspeitas sobre a identidade de personagens, mas esses elementos já foram debatidos à exaustão. O foco desse texto é um elemento bem específico, e por vezes, despercebido: a neblina que ronda Pate. Quero discutir o que ela pode nos indicar sobre o estilo de escrita de Martin, remetendo a tradições literárias como o romantismo e sua visão sobre a fantasia. Mas para isso, primeiro precisamos lembrar que a Cidadela não é um lugar que tem a magia e uma visão romântica de mundo em muito boa conta.

Meistres e a ciência

prólogo de O Festim dos Corvos
Citadel Law por Paul Guzenko

A Cidadela é provavelmente a única instituição nos moldes de uma universidade em Westeros. Enquanto as universidades da Idade Média europeia eram extremamente vinculadas à religião, priorizando estudos em retórica, dialética e teologia, a formação dos meistres vai desde escritos históricos até técnicas de medicina. Afinal, existe uma finalidade específica para os estudos: ser apto a aconselhar um senhor em algum castelo dos Sete Reinos. Para isso, considera-se necessária uma gama de conhecimentos que dialogam com uma noção de ciência muito diferente daquela concebida pelos escolásticos.

Não é de hoje que muitos leitores apontam o desgosto dos meistres por elementos mágicos. Existe inclusive uma teoria famosa que já foi traduzida aqui no site (nos tempos de Game of Thrones BR) chamada “A Grande Conspiração dos Meistres da Cidadela“, que especula que o objetivo da ordem dos meistres seja acabar com a magia no mundo, como sugere Marwyn, e que eles estariam por trás da morte dos dragões e da deposição da dinastia Targaryen. Não vem ao caso discutir essa teoria em si (e seus possíveis exageros) mas ela acentua algo que é evidente: a oposição entre magia e ciência existe em Westeros, e os meistres representam o segundo lado dessa disputa.

O antecedente mais notável disso é justamente Meistre Cressen. O capítulo narrado a partir do seu ponto de vista tem como antagonista Melisandre, uma sacerdotisa que ele vê como exótica, envolvida com tipos de magia obscuros e suspeitos. Sua influência sobre Stannis é desaprovada por Cressen em uma dimensão pessoal, mas também ideológica. O meistre é levado, durante o capítulo, e especialmente na ocasião de sua morte, a compreender que a magia de Melisandre é real, apesar de sua constante recusa em favor da ciência e de uma religião mais passiva, a Fé dos Sete. Outros exemplos poderiam ser dados, como Meistre Luwin constantemente desconsiderando as histórias da Velha Ama e as visões de Bran.

Tendo isso em mente, a expectativa criada pelo leitor em torno da Cidadela provavelmente é de que ela será o lugar que melhor representa essa visão de mundo racionalista dos meistres. No entanto, a primeira palavra dita em O Festim dos Corvos, antes mesmo de ser revelado onde o prólogo se passa, é “dragões”. O capítulo inteiro é permeado por mistérios e dúvidas, e um elemento em especial — a neblina — reforça a ideia de que o que o leitor encontrará nesse núcleo não será inteiramente racional.

A neblina

Estou me detendo especificamente nesse tema pois Martin já tem um histórico de usá-lo como um elemento no debate entre fantasia e ciência, ou entre dúvidas e certezas. Quando ainda era um escritor iniciante, no verão de 1971, o autor escreveu um conto que considerava um de seus melhores até o momento: Com a Manhã Vem o Pôr da Neblina (que pode ser lido gratuitamente aqui). O conto é narrado por um (ou uma) jornalista que visita o planeta de Wraithworld, um mundo cuja maior atração para os turistas é a lenda dos espectros, criaturas que vagam na neblina que se instaura no planeta à noite. O protagonista vai ao local acompanhado do cientista Dubowski e sua equipe, que pretendem efetivamente descobrir a verdade sobre a lenda. Eles se hospedam em Castle Cloud, um hotel de propriedade de Sanders, um homem carismático e apaixonado pelos mistérios de seu planeta.

Castle Cloud por Tom Kidd

Na história, o narrador tenta intermediar a relação de Sanders e Dubowski, que estão em constante atrito, pois, para Sanders, a beleza do planeta está na aura de mistério invocada pelos espectros, criaturas que supostamente foram vislumbradas por alguns exploradores e mataram tantos outros, enquanto Dubowski foi até lá exclusivamente para investigar o lugar e trazer respostas. Ao final, a expedição conclui que os espectros não eram verdadeiros, e o planeta se torna efetivamente colonizado por setores produtivos, enquanto que, para o narrador, a beleza que o envolvia se foi. A neblina do título simboliza a beleza e a contemplação do inexplicável, aquilo que Dubowski não conseguia compreender, mas Sanders mostra ao protagonista durante a história. Contrária ao cientificismo, a neblina não é necessariamente a magia, mas a possibilidade de que algumas coisas não possam, ou não devam, ser explicadas. Priscila Zorzi chama esse conto de “uma carta de amor à fantasia“, e isso se reflete no restante da produção de Martin, incluindo em As Crônicas de Gelo e Fogo. Para discutir esse aspecto no livro, primeiro é preciso que nos detenhamos um pouco na história da literatura e em como Martin se posiciona a esse respeito.

O romantismo de George R. R. Martin

Essa ocorrência da neblina como um elemento que representa uma incerteza contemplativa, uma forma particular de relação com o mundo que rejeita explicações extremamente racionais e valoriza a subjetividade dos sentimentos está diretamente relacionado com uma das principais características pelas quais a prosa de Martin era conhecida no início de sua carreira: o romantismo.

Por romantismo, me refiro à tradição literária europeia que tem origem no século XVIII e toma mais força ainda no século XIX, uma forma de reação à revolução industrial e constante urbanização daquelas sociedades. Resgatando uma memória saudosa das tradições medievais, antiburguesas e profundamente religiosas, autores como os irmãos Grimm, François-René de Chateaubriand e, na tradição anglófona, Lord Byron, Mary Shelley e Samuel Taylor Coleridge, se transformaram em símbolos de um período da história da literatura que deixou marcas até os dias de hoje, seja na literatura dita realista, ou em gêneros como o horror, a fantasia e até a ficção científica.

Especificamente na fantasia, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, também em reação aos movimentos modernistas, trazem muitos dos ideais românticos para a literatura do século XX. E não é segredo para ninguém que especialmente Tolkien é uma das grandes influências de Martin através de toda sua carreira. Mas não é apenas isso: em Sonho Febril, por exemplo, Martin usa poemas de Byron como uma imagem constante. Em Uma Canção Para Lya, a menção é a Dover Beach, poema do romântico Matthew Arnold. Existem ainda registros históricos de que essa associação do autor com o romantismo não era apenas uma nota de rodapé. Em 1977, Martin escreveu:

Sou um romântico inabalável (não direi incurável, pois o romantismo é uma tradição literária/filosófica com uma longa e honrada história, não uma doença, obrigado).

(Songs of Stars and Shadows).

O autor consagrado Brian Aldiss, em seu guia de história da ficção científica, apresenta Martin da seguinte forma:

A revolução de Martin, se é que podemos chamar assim, é de imbuir a fórmula esperada das revistas — romântica, frequentemente sentimental e mecanicista — com graus de realismo.

(Trillion-Year Spree).

Assim como Tolkien, Martin também estava reagindo em partes a uma tendência literária modernista. A ficção científica dos anos 60 e 70 é conhecida pelo movimento conhecido como A Nova Onda, que justamente incorporou tendências modernistas ao gênero. Representada por Samuel R. Delany, Ursula K. Le Guin, J. G. Ballard, Philip K. Dick, e outros, essa tendência encontrou em Martin um adepto, mas não integralmente. Um de seus amigos mais próximos, o escritor e editor Gardner Dozois, afirma que:

George sempre foi um autor muito romântico. Minimalismo seco ou os jogos irônicos do pós-modernismo tão amado por muito escritores e críticos modernos não é o que você vai encontrar quando abrir algo de George R. R. Martin, mas sim uma história com um forte enredo e movida pelo conflito emocional.

Essa tendência de Martin a remeter à literatura romântica, como ficou bem evidenciada em Com a Manhã Vem o Pôr da Neblina, também é tema central de várias de suas histórias: a beleza contemplativa do espaço em Night Shift, o isolamento físico e sentimental em O Segundo tipo de Solidão, o planeta abandonado e que ruma em direção à escuridão em A Morte da Luz, além das constantes referências a lendas arturianas em contraste com a realidade trágica nesse romance, bem como em Flores Amargas. A propósito de A Morte da Luz, sua parceira de escrita, amiga e ex-namorada, Lisa Tuttle escreveu:

Quando eu conheci George em 1973, ele chamava a si mesmo orgulhosamente de um romântico (isso foi muito antes do surgimento do termo “emo”). Ele era sonhador e sensível, ressentido pelas oportunidades perdidas, inseguro, dado à melancolia (…). Quando esse livro [A Morte da Luz] foi publicado, alguns anos depois, eventos pessoais abalaram severamente sua visão romântica, mas mesmo que às vezes fosse amargo, ele ficava de luto por suas ilusões e se recusava a tornar-se um cínico.

Portanto, é inegável que a influência romântica de Martin não apenas está presente, como é amplamente reconhecida por seus colegas escritores. No entanto, a fama do autor, especialmente após a adaptação televisiva Game of Thrones, se tornou a de ser cínico, precisamente o contrário do que apontaram Tuttle, Aldiss e Dozois, em momentos diferentes. Ainda que essa visão seja muito mais baseada em momentos específicos da série de TV, muitos a aplicam às Crônicas de Gelo e Fogo, o que acredito que seja um equívoco, pois a permanência das influências românticas seguem aparecendo, ainda que sejam balanceadas com os “graus de realismo” apontada por Aldiss. Por isso, gostaria de me deter agora em como a neblina é utilizada no prólogo de O Festim dos Corvos para simbolizar a magia adentrando um ambiente que se propõe extremamente racional.

O nascer da neblina

— A maçã — Alleras repetiu. — A menos que queira comê-la.
— Lá vai — arrastando a perna de pau, Mollander deu um curto salto, rodopiou e arremessou horizontalmente a maçã para as névoas que pairavam sobre o Vinhomel. Não fosse o pé, teria sido um cavaleiro como seu pai. Tinha a força necessária naqueles braços grossos e ombros largos, e a maçã voou para longe e rápido demais…

(O Festim dos Corvos, prólogo)

O capítulo tem início na Pena e Caneca, uma estalagem na cidade de Vilhavelha que é bastante popular entre os acólitos da Cidadela, aqueles que almejam se tornarem meistres. Lá, na cidade onde se ergue uma torre cujo topo é iluminado, um símbolo do conhecimento racional, nos moldes iluministas (e não por acaso ressalto a imagem de Torralta), um grupo de jovens acólitos se reúne para bebidas e brincadeiras. Entre eles está Pate, o menino que sonha em juntar um dragão de ouro para se deitar com Rosey, a filha de Emma, uma das serventes. E ao redor dos futuros representantes da ciência, está a neblina. A Pena e Caneca é “uma ilha de luz num mar de névoa”.

Naquela manhã, a varanda iluminada a archote do Pena e Caneca era uma ilha de luz num mar de névoa. A jusante, o distante sinal luminoso da Torralta flutuava no relento da noite como uma lua alaranjada e brumosa, mas a luz pouco fez para lhe melhorar o estado de espírito.

(O Festim dos Corvos, prólogo)

Noviço da Cidadela por Joshua Cairós.

Pate está aguardando o Alquimista, um homem misterioso que o ofereceu um dragão de ouro caso Pate roubasse uma chave de um arquimeistre. O Alquimista é uma figura envolta em mistério e com insinuações sobrenaturais. Inclusive no texto original, “Alchemist” contém a palavra para “neblina”, “mistPortanto, o ambiente construído pelo capítulo até então é: uma cidade que representa a clareza de visão, e portanto, o conhecimento objetivo, sendo invadida pela neblina, e por uma figura mística. Conforme a manhã se aproxima, a névoa se esvai, e o Alquimista não aparece no local e hora onde havia combinado com Pate. Quando ele efetivamente aparece, o sol nascente acaba nublando seu rosto (o que é curioso, pois aqui, a simbologia da luz enquanto conhecimento se inverte, e é ela quem impede Pate de ver o Alquimista).

Também presente no início do capítulo, adentrando o ambiente científico, está um diálogo sobre o retorno dos dragões, e uma breve alusão a Marwyn, que sabemos ser um meistre fora da curva a respeito desse tema, que denuncia uma conspiração de sua ordem para acabar com a magia. A última vez que a neblina é mencionada nesse livro é justamente no capítulo final, quando Samwell e Gilly chegam a Vilavelha, e o dia “estava úmido, e as ruas de pedra estavam molhadas e escorregadias debaixo dos seus pés e as vielas mostravam-se cobertas de névoa e mistério.” (O Festim dos Corvos, capítulo 45, Samwell V). Enquanto no prólogo, tínhamos a névoa em um ambiente mais contido e sumindo durante o dia, aqui, quando o Alquimista já matou Pate e tomou o seu lugar, obtendo uma chave de arquimeistre, e quando o leitor efetivamente conhece Marwyn e vê sua vela de obsidiana, a neblina também toma conta da cidade durante o dia. A magia, antes à espreita, agora está se espalhando por Vilavelha.

Conclusões

O cerne do argumento que tentei demonstrar é que a neblina em O Festim dos Corvos serve como um elemento que ajuda a contrastar dois ambientes, o da racionalidade e o do inexplicável. Esse tipo de imagem possui um amplo histórico, não apenas na produção de Martin, mas também nas temáticas da literatura de fantasia ao longo das décadas. Nas suas histórias, especificamente, Com a Manhã Vem o Pôr da Neblina se dedica especificamente a isso, discutindo a necessidade das incertezas e da imaginação para conceder beleza à vida, uma visão que remonta à tradição do romantismo, movimento literário característico dos séculos XVIII e XIX.

O que observamos em um texto que surgiu mais de 30 anos mais tarde é que a presença da neblina mantém seu significado anterior, sempre aliadas às incertezas, e para As Crônicas de Gelo e Fogo, vem como um prenúncio. Um mundo de fantasia que se acreditava praticamente livre da magia não deve permanecer assim por muito tempo.

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O Festim, a Dança e o Sapo: pré-julgamentos de histórias não concluídas https://www.geloefogo.com/2020/07/o-festim-a-danca-e-o-sapo-pre-julgamentos-de-historias-nao-concluidas.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-festim-a-danca-e-o-sapo-pre-julgamentos-de-historias-nao-concluidas https://www.geloefogo.com/2020/07/o-festim-a-danca-e-o-sapo-pre-julgamentos-de-historias-nao-concluidas.html#comments Wed, 01 Jul 2020 23:06:28 +0000 https://www.geloefogo.com/?p=106775 Leitores que se interessam por As Crônicas de Gelo e Fogo muitas vezes são fisgados de tal forma que não […]

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A Grande Pirâmide de Meereen, Quentyn Martell e as Terras Fluviais assoladas pela guerra. Artes originais: Nicola Mancone, Kim Sokol e René Aigner.

Leitores que se interessam por As Crônicas de Gelo e Fogo muitas vezes são fisgados de tal forma que não querem parar de ler, nem sequer dar um intervalo entre os livros. O ritmo crescente dos três primeiros volumes da série tem seu ápice no Casamento Vermelho, provavelmente o momento mais emblemático do ciclo épico de George R. R. Martin.

A Tormenta de Espadas, é, de fato, o fim de um primeiro ato. A partir daí, é notável um arrefecimento no ritmo nos dois livros seguintes, O Festim dos Corvos e A Dança dos Dragões, o que resulta em insatisfação para muitos leitores que se acostumaram com a intensidade frenética dos primeiros. O descontentamento é tamanho que não é incomum nos depararmos com comentários no sentido de que as subtramas e personagens com ponto de vista introduzidos no quarto e no quinto livros seriam inúteis, “encheção de linguiça” ou descartáveis.

Essa é uma confusão comum, mas não por isso menos enganosa. Neste artigo tentarei argumentar por que na verdade ela representa um pré-julgamento, utilizando um personagem que surge com frequência nessas discussões, Quentyn Martell, e referências ao que vimos na adaptação televisiva Game of Thrones.

Como assim, pré-julgamento?

A percepção de que elementos e personagens que se desviam daqueles estabelecidos desde o início (no dito “primeiro ato” do ciclo) seriam inúteis denota um pré-julgamento acerca de algo que ainda não foi concluído. Se o leitor não sabe ou não percebeu onde vão resultar as novas subtramas e se as “recompensas” ainda não estão de fato presentes na história, é comum considerá-las necessariamente um recheio exagerado ou expansão de lore dispensável. Este, porém, é um curso de interpretação que considero um tanto perigoso.

O arco de Quentyn Martell, em particular, é um dos mais considerados por leitores como algo inútil ou uma grande perda de tempo (com efeito, foi um comentário nesse sentido em uma postagem aqui do site que me estimulou a escrever este artigo). Por essa mesma razão, o príncipe Martell serve bem a nossos propósitos no texto, para evidenciar como o fato de os efeitos de um arco talvez não serem óbvios numa primeira leitura e nem imediatos não significa que ele seja apenas “encheção de linguiça”.

Sem dúvida as consequências da trama de Quentyn ainda não estão claramente visíveis nos livros já publicados. Ele “acabou” de morrer, afinal, nos capítulos finais de A Dança dos Dragões. Acontece, porém, que é bastante possível inferir alguns significados para a inserção do personagem por parte do autor — e nem precisamos fazer um exercício sobre-humano de raciocínio para isso.

O diálogo com a fantasia

A nível temático, Quentyn parece ser mais um dos personagens de que Martin se utiliza para fazer um comentário e um diálogo com a literatura de fantasia de uma maneira geral. Nesse caso em específico, trata-se de uma desconstrução da ideia do “príncipe encantado que parte em uma aventura” — inclusive com uma bela dama para o final “felizes para sempre”. A questão aqui, é claro, é que o príncipe Martell e sua aventura não são nada disso.

Quentyn não é sequer encantador, e muito menos encantado: seu apelido por boa parte do livro em que aparece e morre é “Sapo”. Nem todas as aventuras têm um final feliz — e elas fedem, o que é simbolizado por Martin de maneira nada sutil com o navio Aventura, mencionado no primeiro parágrafo do primeiro capítulo de Quentyn. Nem todos os pretensos heróis estão destinados a grandes feitos e ao protagonismo de uma história do plano maior. Nem todos os príncipes que saem pelo mundo deveriam fazê-lo, principalmente não aqueles que nunca quiseram isso em primeiro lugar, como Quentyn.

Quentyn Martell, por Kim Sokol. © Fantasy Flight Games.

Para todos os grandes homens e mulheres cujos feitos heroicos são dignos de registro para a posteridade, há um sem-número de outros que tentaram empreitadas tão ou mais corajosas, mas não foram bem sucedidos (e concordo com Arthur Maia quando ele diz que o príncipe dornês foi, de fato, corajoso). O insucesso, porém, na maioria das vezes resulta no esquecimento.

Um ato temerário, mas valente, cujo objetivo não é atingido ou resulta em fracasso é posteriormente massacrado. Um ato igualmente temerário e valente que resulta em sucesso é exaltado. Quase sempre o que se vê é um julgamento não do ato em si, no momento da decisão e da motivação do agente, mas uma avaliação a posteriori condicionada ao sucesso ou insucesso da missão.

Admitindo que esse é mesmo o comentário e o diálogo que GRRM quer fazer com a fantasia clássica que veio antes de si, ainda poderíamos nos perguntar: “seria estritamente necessário que Martin fizesse essa metarreflexão à custa da fluidez de sua própria história?”.

Eu tenderia a responder que não, por preferência pessoal (isso se ignorasse completamente que a história é do autor e que ele é quem sabe e decide o que é ou não necessário). Ao mesmo tempo, no entanto, acredito que o mais provável é que George tenha aproveitado um personagem que já seria necessário para as tramas pré-existentes para inserir esse diálogo, e não o criado especificamente para esse fim crítico.

Interpreto a narrativa de As Crônicas de Gelo e Fogo como um ente em si mesmo, capaz de fazer e trazer “exigências” próprias ao autor, justamente pelas reiteradas declarações de Martin sobre ser um escritor jardineiro — aquele que não planeja todo o curso da história minuciosamente de antemão, tendo apenas uma grande semente na cabeça, mas sempre aberto a novos ramos para a árvore final. Dessa maneira, a narrativa pode ter “exigido” que Quentyn partisse em uma aventura, e GRRM teria então aproveitado essa necessidade para também fazer um metacomentário acerca da clássica jornada encontrada em tantas e tantas histórias antes da que resolveu contar.

As implicações práticas

A importância do arco de Quentyn não está, porém, restrita à tentativa de desconstrução de tropes de gênero literário por parte do autor: é possível perceber que a aventura do príncipe dornês e sua morte também reverberarão no plano maior da história. O personagem foi um dos elementos problemáticos do chamado “nó meereenês”, a enorme dificuldade que GRRM enfrentou para determinar quando vários personagens que se dirigiam a Daenerys finalmente a alcançariam em A Dança dos Dragões, o que dificultou sobremaneira a finalização da escrita do livro.

Uma hoste dornesa se prepara para a guerra. Arte: René Aigner.

Segundo o próprio autor, ele experimentou escrever a chegada do príncipe de Dorne na cidade de Meereen em diversos momentos diferentes: antes, durante e depois do casamento da rainha Targaryen. A versão final acabou sendo aquela em que ele chega quando Daenerys já considera o casamento com Hizdahr zo Loraq irrevogavelmente marcado. Isto, somado à falta de apelo para Daenerys no porte e na aparência de Quentyn e ao foco momentâneo dela na paz em Meereen, resulta no fracasso da missão do jovem Martell.

Por sua vez, esse fracasso leva a uma atitude desesperada por parte do príncipe, que, no afã de ser o herói da jornada que lhe foi imputada e não voltar para Dorne de mãos abanando — tendo falhado na missão — resolve-se a domar um dos dragões de Daenerys, e acaba morto pelo fogo de Rhaegal. É nesse fato em particular que residem as prováveis consequências da malfadada aventura de Quentyn. Tanto a morte do príncipe quanto a rejeição da proposta que Dorne levou à rainha Targaryen repercutirão enormemente no cenário político de Westeros.

À primeira vista, os Martell e Dorne como um todo seriam dos mais óbvios aliados de Daenerys Targaryen numa eventual invasão aos Sete Reinos. Não apenas a proximidade histórica (e recente) entre os Martell e os Targaryen seria um fator preponderante, mas os dorneses também têm motivos ainda mais pessoais para destronar a facção reinante no continente, a Casa Lannister, que afinal foi responsável pela morte de Elia e seus filhos. É muito provável, no entanto, que os eventos envolvendo Quentyn em Meereen farão com que esse apoio não exista.

E aí essa subtrama se liga com outras. Primeiro, há outro pretendente Targaryen no continente: Aegon, filho de Rhaegar e Elia (ainda que apenas na aparência, visto que são grandes as chances de ele ser falso). Coincidentemente ou não, Arianne Martell, a irmã que tem uma espécie de rivalidade unilateral com Quentyn, vai ao encontro do Jovem Griff para verificar sua legitimidade, e o príncipe Doran, o chefe da casa, ficou claramente balançado com a notícia da chegada do suposto sobrinho.

Em segundo lugar, quando as notícias dos eventos de Meereen chegarem a Westeros (e elas inevitavelmente chegarão, possivelmente por meio de Archibald Yronwood e Gerris Drinkwater), os Martell provavelmente não interpretarão a situação pelo ponto de vista da rainha Targaryen. O mais plausível é que eles simplesmente vejam os fatos crus: Quentyn foi vitimado por um dos dragões de Daenerys, que rejeitou a oferta de casamento e apoio oferecida por Dorne. Não é difícil imaginar que eles não mais a apoiarão, ainda mais com um concorrente de grande apelo logo à mão.

Daenerys Targaryen observa Meereen do topo da Grande Pirâmide. Arte: Tomáš Vachuda.

Há, ainda, uma outra subtrama que Quentyn pôs em andamento: o acordo do “time Daenerys” com o Príncipe Esfarrapado, por Pentos. A cidade, como se sabe, é onde reside o magíster Illyrio, antigo anfitrião de Viserys e Daenerys e responsável por arranjar o casamento entre ela e Drogo, ainda no primeiro livro. No quinto, porém, descobrimos que os planos de Illyrio são outros: ele e Varys na verdade conspiram a favor do Jovem Griff. Com a crescente cisão entre as facções de Daenerys e Aegon, especulo que Pentos também será um palco de confrontos entre esses dois times, possivelmente resultando do desesperado acordo de Quentyn com o comandante dos Soprados pelo Vento.

E as implicações não são apenas no nível do enredo em si. Não seria implausível, ainda, que eventos colocados em movimento pela morte de Quentyn repercutissem não apenas no plano político, mas também no psicológico de Daenerys. É possível que um apoio westerosi a Aegon (enquanto ela possivelmente seria vista como uma invasora perigosa e louca) seja um componente de sua tragédia a nível pessoal, cujo desenvolvimento corrido foi um dos pontos mais criticados da última temporada de Game of Thrones. Também abordei essa possível consequência no arco particular de Daenerys no ensaio “Dois lados da moeda Targaryen”, em que analiso o possível destino da personagem nos dois livros restantes de As Crônicas de Gelo e Fogo (e onde argui, também, que não haverá lados estritamente certos nesse imbróglio entre a Targaryen e os Martell).

O que a adaptação em Game of Thrones pode nos ensinar

Não é incomum, ainda, vermos os mesmos críticos dos livros quatro e cinco de As Crônicas de Gelo e Fogo demonstrarem também insatisfação com a última temporada (ou as últimas) da série Game of Thrones, o que me parece uma contradição enorme.

Porto Real incendiada, em “The Bells” (HBO).

Nesse sentido, considero sempre de bom tom lembrar que — ao contrário do que muitas vezes se diz Internet afora — a adaptação televisiva começou a caminhar com as próprias pernas muito antes de não haver mais material-fonte para adaptar: isto é, bem antes de a narrativa chegar ao fim de A Dança dos Dragões.

Enquanto as três primeiras temporadas correspondiam de forma razoavelmente fiel às tramas presentes em A Guerra dos Tronos, A Fúria dos Reis e A Tormenta de Espadas, os três primeiros volumes do ciclo de Martin, a partir da quarta as coisas na TV ficaram bastante diferentes de FestimDança. Os showrunners decidiram trilhar outro caminho, com arcos do material original de Martin excluídos e novas tramas criadas exclusivamente para a série televisiva, talvez vagamente inspiradas em eventos presentes nos livros.

Parece-me muitíssimo provável que são justamente essas tramas e os personagens menos “frenéticos” do miolo da história, aqueles que compõem o arrefecimento depois do auge do Casamento Vermelho, que darão um substrato emocional e logístico para diversos dos eventos mais “chocantes” e catárticos dos volumes finais, The Winds of WinterA Dream of Spring. Versões desses eventos desse calibre foram incluídos nas temporadas finais de Game of Thrones, mas muitos espectadores (incluindo não-leitores) os receberam com estranheza, e acredito que justamente pela ausência de uma base.

Durante anos, o comentário geral sobre várias subtramas e personagens relevantes de As Crônicas de Gelo e Fogo que foram excluídos de Game of Thrones foi “isso foi removido porque não é importante para o final”. Em certa medida isso estava certo, mas por outro lado, nem tanto. Sim, provavelmente personagens como o Jovem Griff, Arianne, Quentyn e Victarion são, a rigor, desnecessários para os eventos de uma parte do final acontecerem, se eles estiverem mortos. O que acontece, porém, é que as tramas que os envolvem são parte do caminho para se chegar ao fim idealizado por George R. R. Martin (sobre o qual discorri em um artigo publicado ainda antes do fim da oitava temporada da serie de TV).

É claro que foi possível que Game of Thrones atingisse pontos finais idealizados por Martin sem esses personagens e seus arcos e subtramas, mas isso aconteceu à custa de uma construção mais sólida, de um caminho mais bem trabalhado. Os personagens, elementos e subtramas introduzidos no meio da história fazem parte do enredo por uma razão, não são simplesmente expansão de lore aleatória. A longa e por vezes enfadonha temporada de Daenerys Targaryen em Meereen, por exemplo, existe para que haja uma catarse final que explique ações futuras dela (ainda que não as justifique). Excluindo-se os fundamentos do meio, os finais podem parecer corridos e sem sentido.

A linha de chegada

O intuito maior dessa reflexão, enfim, era mostrar que tachar alguma trama ou personagem em uma história não-concluída de “inútil” ou “encheção de linguiça” é um exercício bastante arriscado e temerário, diante de uma análise que vai um pouquinho só além do superficial e dos meros fatos e eventos daquela narrativa.

Game of Thrones, depois da quarta temporada, parece ter sido exatamente o que muitos dos leitores que rejeitam O Festim dos Corvos e A Dança dos Dragões gostariam que As Crônicas de Gelo e Fogo fosse: uma história “crua” e direta, sem muita “enrolação”, “perda de tempo” ou “fillers“, com momentos chocantes atrás de momentos chocantes, reviravoltas e mais reviravoltas, e pouco ou nenhum tempo para respirar. Não me parece que a rejeição à temporada final seja coincidência diante da falta de substrato depois do primeiro ato da série.

O Cotovia, o navio que levou Quentyn e seus companheiros de Lys a Volantis. Arte: Dimitri Bielak. © Fantasy Flight Games.

Analisando Quentyn Martell, podemos perceber como o personagem foi não apenas uma solução encontrada para dar base e servir de gatilho para eventos futuros, mas também “aproveitado” por George R. R. Martin para fazer um comentário metatextual.

Quentyn é apenas um entre vários outros exemplos de arcos que à primeira vista podem ser julgados como inúteis ou de pouco acréscimo à trama principal, se não se conhece o final ou no que aquilo vai dar. Poderíamos, igualmente, citar a temporada de Daenerys em Meereen, fundamental para sua jornada, ou a ressurreição de Catelyn Stark como a Senhora Coração de Pedra, que possivelmente também influirá no ciclo de Arya.

No entanto, esse “pré-julgamento” da necessidade ou desnecessidade de uma certa linha narrativa, além de não buscar compreender as razões que levaram o autor a inserir aquilo na história (que, afinal, é dele), não se sustenta sem se conhecer ou sequer tentar especular os fins de uma história.

Assim, meu conselho é no sentido de darmos crédito e, no mínimo, o benefício da dúvida ao autor. Não julguemos subtramas e personagens negativamente sem antes termos certeza da linha de chegada. A meu ver, George R. R. Martin já demonstrou ser mais do que capaz de entregar recompensas depois de seus fundamentos, ainda que por vezes (e ainda bem) não saibamos onde eles vão dar.


O Podcasteros analisa e faz uma leitura conjunta de FestimDança, baseada em uma ordem de capítulos em que os dois livros são lidos simultaneamente.

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Exemplo não-real de uma parcial de The Winds of Winter. Foto: Felipe Bini.

Uma dúvida que com frequência acomete muitos leitores de As Crônicas de Gelo e Fogo é: o que acontecerá quando George R. R. Martin finalmente terminar de escrever The Winds of Winter (Os Ventos do Inverno)? Dentro de quanto tempo o livro estará disponível nas livrarias?

A resposta rápida é que o livro provavelmente estará publicado, em suas edições britânica e americana, mais ou menos três meses depois de Martin entregar o original à editora. Trata-se de um prazo anormalmente curto entre a entrega do manuscrito e a publicação, mas não impossível.

A seguir, explicaremos como esse rápido lançamento de The Winds of Winter seria plausível, utilizando como base o processo de publicação dos livros anteriores de As Crônicas de Gelo e Fogo, declarações de Martin e de suas editoras, e um artigo de Chris Lough para a Tor.com. Além disso, especularemos também sobre a possibilidade de uma data de publicação simultânea ou algum prazo para o lançamento de Os Ventos do Inverno no Brasil.

As falas de Martin sobre The Winds of Winter

George R. R. Martin trabalhando em The Winds of Winter durante aparição ao vivo na TV, em junho de 2014. Na tela do computador, um capítulo de Asha Greyjoy no WordStar. Fonte: YouTube.

No segundo dia do já longínquo ano de 2016, George R. R. Martin publicou em seu Not a Blog um extenso e decepcionado post sobre a escrita de The Winds of Winter. Na publicação, Martin evidenciava toda a sua frustração por não ter conseguido terminar o sexto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo a tempo para ser publicado antes da sexta temporada de Game of Thrones, que estrearia em abril daquele ano.

No post, o autor revelava ter centenas de páginas e dúzias de capítulos já escritos, mas dizia que ainda faltavam (no mínimo) meses para terminar a escrita do livro. Esse aparente otimismo não significou muito em termos de lançamento, mas dava a entender que de fato o autor já tinha (e ainda tem) uma quantidade substancial de material pronto.

Lendo o post de Martin, porém, algumas passagens chamam a atenção no que concerne à data de lançamento. Por exemplo:

Todos queríamos que o livro seis de As Crônicas de Gelo e Fogo saísse antes que a sexta temporada da série da HBO fosse ao ar. Presumindo que a série voltaria no início de abril, isso significava que Os Ventos do Inverno teria de ser publicado antes do fim de março, no mais tardar. Para isso acontecer, segundo minhas editoras, elas precisariam do original completo antes do fim de outubro.

Martin se referia, nessa passagem, a outubro do ano de 2015. Mais adiante no post, ele revela que a escrita não andou bem e que ele não conseguiu cumprir esse prazo do Dia das Bruxas. As experientes editoras, no entanto, já haviam se preparado:

Elas já tinham um plano de contingência. Haviam feito planos para acelerar a produção. Me disseram que se eu conseguisse entregar Os Ventos do Inverno até o fim do ano, ainda conseguiriam publicá-lo antes do fim de março.

George ficou imensamente aliviado e confiante de que conseguiria terminar Os Ventos do Inverno com esses dois meses a mais, mas foi novamente incapaz de fazê-lo, e assim a publicação do sexto livro antes da sexta temporada de Game of Thrones tornou-se impossível. Mais adiante, ainda no mesmo post, ele diria:

Mas não, não posso dizer a vocês quando terei terminado, ou quando ele será publicado. A melhor estimativa, com base em nossas conversas anteriores, é que a Bantam (e provavelmente minha editora britânica também) consigam ter a versão em capa dura três meses depois da entrega, se os cronogramas deles permitirem. Mas quando a entrega acontecerá, não posso dizer.

Fica claro, assim, que a Bantam (a editora americana) e a HarperCollins (a editora britânica) são capazes de publicar The Winds of Winter três meses depois de Martin lhes entregar o original. Com efeito, foi mais ou menos isso o que aconteceu com os livros anteriores, o que é particularmente observável à época do término da escrita e do lançamento de A Dance with Dragons (A Dança dos Dragões), em 2011.

Como foi com os livros anteriores?

O intervalo entre a entrega do original e a publicação sempre foi relativamente curto para os livros de As Crônicas de Gelo e Fogo, segundo Adam Whitehad, fã especialista em fantasia e ficção científica e amigo de George R. R. Martin. A afirmação de Whitehead é corroborada pela listagem da coleção de George R. R. Martin na Biblioteca Cushing, da Texas A&M University, para a qual o autor doou muito material.

O primeiro livro da série, A Game of Thrones (A Guerra dos Tronos), foi publicado em agosto de 1996, e Whitehead especula que George tenha terminado a escrita no final de 1995 ou no início de 1996. Na coleção da Cushing, que inclui parciais enviadas por Martin às editoras, o último manuscrito data de outubro de 1995. Se essa for mesmo a data da finalização do original, esse seria o livro da série com o intervalo mais longo entre a entrega e a publicação.

Na coleção da Cushing, o original completo do segundo livro, A Clash of Kings (A Fúria dos Reis), data de maio de 1998, e ele foi publicado em novembro de 1998. O intervalo entre entrega e publicação, portanto, foi de seis meses, já sendo observável uma diminuição no tempo em relação ao primeiro volume.

O anúncio do término da escrita do terceiro livro, A Storm of Swords (A Tormenta de Espadas), veio na segunda metade de abril do ano 2000 (em nossa seção de AFMs, é possível ler o e-mail em que George conta essa boa nova a Elio García). Abril é também a data do original armazenado na Cushing, e é perceptível que o prazo de publicação diminuiu ainda mais: menos de quatro meses depois, em 8 de agosto, o livro três foi publicado pela primeira vez no Reino Unido.

Em 29 de maio de 2005, George R. R. Martin divulgou em seu site que o livro quatro de As Crônicas de Gelo e Fogo não seria mais A Dance with Dragons, como anteriormente planejado. Em um longo post, ele divulgou oficialmente para o mundo que o livro seria dividido em dois, e que o quarto volume de seu ciclo de fantasia épica seria agora A Feast for Crows (O Festim dos Corvos).

Contamos com mais detalhes o processo de escrita de O Festim dos Corvos (e, colateralmente, de A Dança dos Dragões) em um post sobre a história da escrita de As Crônicas de Gelo e Fogo como um todo. Em resumo, porém, George concluiu ter material demais para um só volume e que alguns personagens já tinham arcos completos, enquanto outros estavam em estágios iniciais. A solução foi fazer uma divisão geográfica e por personagens: alguns foram removidos totalmente do quarto livro, e seu material foi passado para o seguinte.

Para os efeitos deste nosso artigo, no entanto, o que importa é que A Feast for Crows foi publicado no Reino Unido em 17 de outubro daquele ano, pela Voyager. Foram, portanto, mais ou menos quatro meses e meio entre a decisão de dividir o livro e sua efetiva publicação. Um prazo parecido com o de Storm, e que seria ainda menor no volume seguinte.

Manuscrito A Dança dos Dragões
Anne Groell, editora de George R. R. Martin, com o original de A Dança dos Dragões. Fonte: Unbound Worlds.

No dia 3 de março do ainda longínquo ano de 2011, George divulgou no Not a Blog que embora A Dance with Dragons ainda não estivesse terminado, a Bantam o publicaria no dia 12 de julho. O autor ressaltou que dessa vez não se tratava de wishful thinking ou de estimativa, mas de uma data de lançamento real. Ao longo de março e abril, George continuou relatando no blog que estava terminando os últimos capítulos da escrita.

Em 27 de abril, Martin fez um post no Not a Blog indicando que o original estava pronto e entregue. No mesmo dia, Anne Groell, editora de George na Bantam, confirmou a informação em uma postagem no portal Unbound Worlds, revelando que ela e o autor haviam se reunido no dia anterior e feito algumas últimas edições.

Em 19 de maio, Martin fez uma grande postagem em seu blog contando detalhes da escrita e edição, e informando que o processo de copidesque e as revisões estavam 100% terminados, e o texto do quinto livro oficialmente finalizado.

A Dance with Dragons foi realmente publicado no dia 12 de julho, nos Estados Unidos e no Reino Unido. Foram, portanto, menos de três meses após a data de entrega anunciada por Martin e Groell, no final de abril.

A produção acelerada

Nos Estados Unidos, a produção de um livro, da entrega do original (manuscrito) até a chegada às livrarias demora, geralmente, de nove meses a um ano. Como, então, seria possível isso acontecer em apenas três meses ou menos para Os Ventos do Inverno?

O artigo de Chris Lough na Tor.com, publicado em 2016, é bastante completo ao explicar o processo normal da publicação de um livro e em quê o lançamento de The Winds of Winter seria diferente desse padrão. Lough discorre longamente sobre o processo de edição, a criação da capa, o marketing, as vendas, a formatação, a impressão e a distribuição. Todas as etapas da produção editorial, enfim.

Não reproduzirei em detalhes, aqui, todos os pontos abordados no artigo, sendo suficiente dizer que Os Ventos do Inverno seria uma exceção pelo status de blockbuster que a série de livros já alcançou, o que já adianta muitas tarefas que seriam feitas do zero para outras publicações, e torna viável que as editoras aloquem mais recursos e pessoal na produção dessa obra, em detrimento de outras.

Tomemos como exemplo a capa. É improvável que haja uma comissão para que um artista ilustre uma nova capa do zero para The Winds of Winter. A Bantam já possui um padrão para os livros de As Crônicas de Gelo e Fogo, e, ao que tudo indica, ele se manterá para o próximo volume. Ainda que esse modelo mude (e isso já ocorreu no lançamento dos volumes anteriores), é muito provável que já se tenha vários projetos engatilhados para a arte de capa.

No que concerne ao marketing, geralmente o planejamento é feito mais ou menos na época em que a capa e o original são entregues, para ser executado nos meses seguintes. Acontece, porém, que um plano de marketing para The Winds of Winter não tem de fazer o público descobrir a obra: a maior parte dos potenciais leitores já conhece muito bem a série de livros de George R. R. Martin, sabe quem é o autor e que o sexto volume é aguardado. Isso não significa, porém, que nada tem de ser feito: há, ainda, os leitores mais casuais, que têm de ser “avisados” por meios comuns sobre o lançamento do livro. O fato de grande parte do marketing hoje ser digital também é um enorme facilitador.

George R. R. Martin na sede da Random House, onde teve que autografar “algumas” cópias de Fire & Blood. Foto: GRRM, Twitter.

O artigo de Lough foi escrito em 2016, quando a adaptação Game of Thrones ainda não havia terminado, mas me arrisco a dizer que o planejamento de marketing para Os Ventos do Inverno, diante da recepção largamente negativa do fim da série de TV, terá de incluir também uma tentativa de recapturar muitos leitores para o universo dos livros. Nada impossível de ser feito, porém, dada a imensa magnitude de evidência que a adaptação televisiva ainda proporciona ao ciclo de livros.

Na parte de vendas para as livrarias, a coisa também é bem mais fácil do que para um livro “comum”. A editora não precisa convencer nenhum livreiro ou grande conglomerado a comprar The Winds of Winter, apenas confirmar a aquisição. Provavelmente, também, já se tem uma boa ideia da parte numérica propriamente dita, do número de pedidos, tanto pela expertise derivada da publicação de A Dance with Dragons quanto pelos planos engendrados para a publicação em 2016.

A diagramação, necessária para a posterior impressão, demora de duas a seis semanas para ser realizada, mas no caso de Os Ventos de Inverno o processo também pode ser acelerado, tanto com um aumento do orçamento quanto pelo fato de que já há um molde na forma dos volumes anteriores da série.

Quanto à impressão, não haveria grandes mudanças, mas ainda assim seria possível para a editora pagar mais para as gráficas agilizarem o processo. Em um post na Tor.com é possível ver o passo a passo da impressão de outro blockbuster de fantasia, A Memory of Light, décimo quarto e último volume da série A Roda do Tempo.

A edição: o xis da questão

Para além da aceleração dos processos mais logísticos da publicação, que é possível com pré-planejamento e bastante investimento, um dos pontos centrais para o rápido lançamento de The Winds of Winter após o término da escrita reside no processo peculiar de edição dos livros de As Crônicas de Gelo e Fogo.

Via de regra, depois que o autor entrega seu original, o texto passa pelo editor e por um ou mais preparadores, copidesques e revisores. Essas últimas etapas não podem ser puladas nem aceleradas, pois é preciso uma versão final vinda do autor para que elas sejam feitas, mas a edição propriamente dita encontra uma especificidade nas obras de George R. R. Martin.

Geralmente, é só após a entrega do original que os editores e editoras vão ler a obra, analisá-la e fazer ao autor as recomendações que julgam necessárias para a melhoria do texto em geral. Os profissionais muitas vezes fazem anotações pontuais no original para abordar questões específicas, mas podem chegar a fazer sugestões de grandes edições estruturais, na ideia da história em si ou em sua apresentação.

Para ilustrar, seguem alguns exemplos de comentários feitos por Anne Groell a capítulos enviados por George em parciais de A Dance with Dragons. Ela faz comentários que vão desde a repetição de expressões a sugestão de mais contexto e explicação para algumas situações, e até perguntas sobre possíveis teorias. As fotos foram tiradas por _honeybird na coleção de Martin da Cushing. Basta clicar nas fotos para ver as anotações em tamanho maior:

No caso de The Winds of Winter e dos outros livros de As Crônicas de Gelo e Fogo, porém, a peculiaridade é que muito desse trabalho já é feito antes da entrega final. Adam Whitehead, comentando no artigo de Lough, esclareceu o seguinte sobre o processo de escrita e edição de Martin:

GRRM não escreve rascunhos dos livros. Ele escreve rascunhos de capítulos (às vezes uma série de vários capítulos de um mesmo personagem ponto de vista), depois volta, reescreve, lapida e os edita. Aí, avança para outro personagem. Às vezes decisões tomadas para um novo personagem afetam outros capítulos previamente “finalizados”, o que causa atrasos e o efeito borboleta.

Quando ele tem um bloco de capítulos prontos com os quais está 100% satisfeito, que podem variar de dois a duas dúzias, ele os envia para a editora. A editora faz sugestões, que ele então incorpora enquanto ainda trabalha em material novo. Ele também escreve de maneira não-linear, saltando de personagem em personagem ao invés de capítulo em capítulo (por exemplo, ele escreveu quase todos os capítulos de Tyrion no livro 3 durante a escrita do livro 2). É por isso que não dá para ele simplesmente publicar o que já tem para ficar à frente da HBO, já que o que está 100% finalizado agora pode ser os capítulos 2 a 20, 30 a 33, 45 e 60, e ele pode nem ter escrito o prólogo e o primeiro capítulo ainda.

Assim, quando ele escreve o último capítulo do livro e o envia para edição, é só um pedacinho que precisa ser trabalhado, em vez da coisa toda. Ainda se precisa fazer edição linha a linha e revisão de continuidade, mas a edição profunda acontece enquanto a primeira fase de escrita ainda está em andamento.

Parcial de janeiro de 2004 de A Feast for Crows. Fonte: Elio García.

Isso explica bastante coisa, tanto sobre como o processo é acelerado após a entrega do original quanto por que os livros de Martin demoram tanto. Aparentemente ganha-se tempo após a entrega, mas a edição mais pesada e estrutural ainda existe. A diferença é que ela é feita enquanto George ainda está escrevendo o livro.

Ainda assim, não é como se Martin entregasse o texto e ele já estivesse pronto para diagramação e impressão. Ainda há trabalho a fazer após a entrega do original, tanto por ele mesmo quanto por outros profissionais. No longo post de maio de 2011, além de relatar vários dos “pacotes” de capítulos que enviou para a editora ao longo do período entre 2005 e 2011, o autor revela técnicas que utiliza para polir o texto após a entrega:

Primeiro, minhas editoras e eu tomamos algumas decisões a respeito de onde terminar este livro, que envolveram passar uns capítulos para o próximo volume, The Winds of Winter. Em uma série como A Song of Ice and Fire, sempre há deliberações a fazer a respeito de onde terminar um livro e começar o seguinte, já que se está lidando com única grande e longa história. Será que a cena tal funciona melhor no final de um livro ou no começo do próximo? O personagem tal deveria terminar com um gancho ou com alguma espécie de resolução (seja ela permanente ou temporária)? E daí em diante. E por aí vai.

Em segundo lugar, eu enxuguei o texto. Essa é uma técnica que aprendi em Hollywood, onde meus roteiros sempre ficavam longos demais. “Isso aqui está longo demais,” dizia o estúdio. “Corte oito páginas.” Mas eu odiava perder qualquer das coisas boas — cenas, diálogos, momentos de ação — então ao invés disso eu repassava o roteiro, aparando e compactando linha a linha, palavra por palavra, cortando a gordura e deixando só o músculo. Descobri que esse processo era tão valioso que fiz o mesmo com todos os meus livros desde que saí de Los Angeles. É o último estágio do processo. Terminar o livro, e depois repassá-lo, cortando, cortando, cortando. Sinto que gera um texto mais compacto e robusto. No caso de A Dance with Dragons, meu enxugamento — a maior parte dele feito depois que anunciamos a data de publicação do livro, mas antes de eu entregar os capítulos finais — por si só reduziu o número de páginas em quase oitenta.

Os capítulos removidos da versão final de A Dance with Dragons são aqueles de Os Ventos do Inverno que George já divulgou em eventos, como teaser em edições do quinto livro, em seu site ou no aplicativo oficial de As Crônicas de Gelo e Fogo. Traduzimos esses capítulos e eles estão disponíveis em nossa página especial.

As quase oitenta páginas que George conseguiu reduzir do original enxugando o texto representavam mais ou menos 5% do total. A certa altura, o livro estava chegando às 1700 páginas (pela contagem do processador de texto WordStar, do DOS, que o autor ainda utiliza), um número que impossibilitaria que ele fosse publicado em um só volume.

Em outra passagem desse grande e elucidativo post, a prática de Martin de editar enquanto escreve fica ainda mais clara, quando ele fala sobre as parciais enviadas à editora nos anos imediatamente seguintes à publicação de O Festim dos Corvos:

A parcial mais antiga nos meus arquivos data de janeiro de 2006. Àquela altura eu tinha 542 páginas prontas. Agora, lembrem-se, foi em junho de 2005 que dividi A Feast for Crows em dois livros paralelos, e escrevi meu infame (e, em retrospecto, mal-pensado) posfácio “Enquanto isso, na Muralha…”. A Feast for Crows, quando entregue, tinha 1063 páginas no original. À época da divisão, vendo todo o material de Tyrion e Daenerys que eu tinha removido, concluí que precisava de mais umas 400 e poucas páginas para ter outro livro do mesmo tamanho, e isso foi, provavelmente, o que me fez dizer que o livro seguinte sairia dentro de um ano. Que belas palavras. Nunca mais faço isso.

[…]

E o ano e meio seguintes provaram a bobagem que havia sido minha previsão. A parcial seguinte que enviei para a Bantam, datada de outubro de 2007, tinha 472 páginas. Sim, no ano e meio entre as duas parciais eu consegui DESESCREVER umas setenta páginas. Eu estava fazendo muito mais revisão e reescrita — e reestruturação — nessa época do que progredindo de fato.

Lista de capítulos de O Festim dos Corvos
Comparativo de capítulos entre uma parcial e versão final de A Feast for Crows, na Universidade Texas A&M. A parcial de outubro de 2003 ainda incluía capítulos de Jon, Tyrion e Daenerys. Foto: u/GRVrush2112, reddit.

Leitores já fizeram comparações prévias de capítulos divulgadas por Martin e as versões finais publicadas, e encontraram diferenças substanciais e (às vezes) bastante interessantes, até para a fundamentação de teorias a respeito dos rumos da história. No reddit, as séries de artigos “How GRRM Rewrites“, de zionius, e “ASOIAF Archives“, de Jen Snow, tratam do assunto em detalhes.

A questão aqui, enfim, é que o processo de escrita e edição de Martin é muito pouco linear. Não apenas o autor não escreve os livros na ordem em que os capítulos são publicados, como também a edição é feita de forma muitas vezes concomitante com a escrita, e não só depois de todo o texto estar pronto. Isso ao mesmo tempo significa uma aparente demora na entrega do original, mas é o que permite também a aceleração da publicação tão logo ele seja entregue.

E o lançamento no Brasil?

Logo de Os Ventos do Inverno baseado na identidade visual dos livros de As Crônicas de Gelo e Fogo na Suma.

Tudo bem, então. Já sabemos que o livro sairá no Reino Unido e nos Estados Unidos mais ou menos três meses depois de George entregar o original. Mas e no Brasil? Quanto tempo depois da publicação em inglês o livro sairá por aqui? Será possível haver lançamento simultâneo de Os Ventos do Inverno em nosso idioma?

Perguntei à editora de George R. R. Martin na Suma, Beatriz d’Oliveira, se já havia algum planejamento específico da casa para The Winds of Winter, mas a resposta foi negativa. Beatriz afirmou que a editora tentará fazer o livro com “a maior qualidade e agilidade possíveis”, mas que como no momento não há previsão da entrega ou publicação dele, “não cabe comentar sobre isso”.

Isso não significa, porém, que não possamos especular, de forma razoavelmente fundamentada, sobre a viabilidade de uma publicação simultânea e possíveis prazos para o lançamento do sexto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo em território brasileiro.

Em primeiro lugar, é importante levarmos em conta que essa será a primeira vez que um livro da série principal será lançado quando todos os anteriores já estão publicados no Brasil. Quando A Dance with Dragons saiu em inglês, em julho de 2011, apenas os dois primeiros volumes de As Crônicas de Gelo e Fogo haviam sido lançados por aqui pela antiga detentora dos direitos, a editora Leya. A Tormenta de Espadas só seria publicado em setembro daquele ano, e O Festim dos Corvos em fevereiro de 2012. Assim, não havia sequer razão para que houvesse publicação simultânea àquela época, e A Dança dos Dragões saiu em edição nacional apenas em junho de 2012.

Como os mais antigos certamente se lembrarão, a primeira impressão do quinto livro saiu com um capítulo a menos, o que levou a editora a fazer um recall da obra. Além disso, com mudanças no processo de tradução, agora feita diretamente do inglês para o português brasileiro, houve diversas inconsistências em relação aos volumes anteriores, que adaptavam a versão de Jorge Candeias para o português europeu.

Em 2014, Martin publicou, em coautoria com Linda Antonsson e Elio García, o tomo enciclopédico O Mundo de Gelo e Fogo. O lançamento em inglês aconteceu em 28 de outubro de 2014, e a edição nacional da Leya saiu menos de um mês depois, em 21 de novembro. Dessa vez, não houve exclusão de um capítulo inteiro, mas o livro de luxo foi publicado com inúmeros erros. Uma edição revisada, mas que ainda manteve diversos dos problemas, saiu em outubro de 2017 (acompanhada de um pôster de genealogias que ajudei a Leya a elaborar).

Anne Groell com o original de “Fire & Blood”, no final de abril de 2018. Foto: Del Rey Books, Twitter.

Em 2018 foi a vez de Fogo & Sangue, livro de história imaginária composto em grande parte por material “extra” de O Mundo de Gelo e Fogo, chegar às livrarias. O grupo Companhia das Letras adquiriu os direitos de publicação da obra (e de todo o catálogo de Martin na Leya) e o publicou no Brasil em simultâneo com o lançamento internacional, no dia 20 de novembro, pelo selo Suma.

Para esse lançamento simultâneo, a equipe de produção da Suma provavelmente teve de empreender esforços similares aos da Bantam e da Harper para a publicação acelerada. Pouco antes do lançamento do livro, entrevistei os tradutores Regiane Winarski e Leonardo Alves, que revelaram que o livro foi dividido em dois, e que cada um gastou mais ou menos um mês para completar a parte que lhe coube. Eles disseram também que faziam envios parciais de suas partes, para que a preparação de texto e a revisão já fossem adiantadas.

Já que isso foi possível com Fogo & Sangue, haveria então a possibilidade de se fazer o mesmo com Os Ventos do Inverno? Na minha opinião, as coisas seriam um pouco mais complicadas para o sexto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo.

Quando George R. R. Martin anunciou que A Dance with Dragons sairia no Reino Unido na mesma data de lançamento dos Estados Unidos, um leitor espanhol perguntou a respeito da publicação em seu país. Parris McBride, esposa de Martin, respondeu o seguinte:

A editora de George na Espanha é a Gigamesh. Você pode descobrir mais no site deles, ou escrevendo diretamente a eles para perguntar sobre os planos de publicação.

Todas as editoras estrangeiras têm de esperar até receberem o original final e revisado para passá-lo ao tradutor. Depois que a tradução ficar pronta, a editora tem que fazer todo o trabalho editorial, decidir quando Dança vai entrar em seu cronograma de publicação, o que não está sob o controle de George.

O maior problema para uma publicação simultânea, assim, reside na data em que as editoras internacionais receberiam o original revisado em inglês. No caso de Fire & Blood, o texto final parece ter ficado pronto bem antes do lançamento (já que há uma foto de Anne Groell com o manuscrito em abril de 2018), mas provavelmente não será assim com o sexto livro da série principal.

Aliás, até em Fogo & Sangue isso foi um problema. Há discrepâncias nos textos das edições internacionais (incluindo a brasileira), pelo fato de algumas últimas correções no texto em inglês terem sido feitas depois de as editoras internacionais já terem recebido o original para tradução. Roberto Mattos, o “Alto Valiriano”, tratou do assunto neste artigo.

No caso de Os Ventos do Inverno, o intervalo entre o recebimento do original final e a data de publicação nos Estados Unidos será, provavelmente, bastante curto. Como vimos anteriormente, a versão final do original de A Dance with Dragons, após copidesque e revisões (a versão que seria enviada para as editoras internacionais) ficou pronta em 19 de maio, e o livro já estava nas prateleiras em 12 de julho. Foram, portanto, menos de dois meses, o que é um prazo praticamente impossível para que qualquer editora traduza, edite, revise, diagrame, imprima e distribua um livro.

A título de exemplo, nenhuma editora internacional publicou A Dança dos Dragões em tradução completa em 2011. A solução encontrada por muitas foi a divisão do livro, em duas ou mais partes. Em Portugal, um dos casos mais rápidos, a Saída de Emergência publicou a primeira metade em setembro de 2011 e a segunda parte apenas em janeiro do ano seguinte.

Edições da Suma dos cinco livros já lançados de As Crônicas de Gelo e Fogo. Foto: Editora Suma, Twitter.

Dessa forma, não se trata apenas de a editora brasileira querer para conseguir fazer um lançamento simultâneo. Se George novamente anunciar a data de publicação antes de ter o original final em mãos (como fez com Dance, em março de 2011), a equipe de produção poderá se preparar para agilizar os processos logísticos relativos ao lançamento do livro, mas existe um limite para a aceleração do trabalho direto com o texto.

Um livro de mil laudas, como Os Ventos do Inverno provavelmente terá, leva mais ou menos três meses para ser traduzido, por um profissional rápido. A solução encontrada para acelerar o processo em Fogo & Sangue foi dois tradutores trabalharem no texto, cada um em partes diferentes, mas seria essa uma boa estratégia também para The Winds of Winter? O tom mais enciclopédico e objetivo da história imaginária é bem diferente da densidade da série principal, em que todo o estilo do autor se faz presente nos mais diversos personagens.

Ainda que se repita essa escolha e se divida o trabalho entre dois ou mais tradutores, ainda haverá as tarefas de preparação e revisão a serem realizadas também, e em tempo (muito) recorde. Mesmo admitindo que isso seria possível, ainda haveria o risco de um trabalho a toque de caixa resultar em problemas como os que vimos nas primeiras edições de A Dança dos DragõesO Mundo de Gelo e Fogo.

Assim, se o intervalo curto entre a finalização do original e a data de publicação das edições americana e britânica realmente se mantiver, considero improvável que tenhamos publicação simultânea para The Winds of Winter no Brasil — o que, claro, não é um problema ou algo ruim per se. Com um processo já bastante rápido, acredito que o livro possa ser lançado por aqui alguns meses depois da publicação nos Estados Unidos.

E qual é o prazo, afinal?

Como já adiantamos na introdução, The Winds of Winter provavelmente será publicado nos Estados Unidos e no Reino Unido mais ou menos três meses depois de George R. R. Martin entregar o original à editora, segundo o próprio autor. Prazos similares têm sido o histórico para volumes anteriores de As Crônicas de Gelo e Fogo, e não parece que com o livro seis isso será diferente.

Apesar de reduzido, esse tempo é factível tanto por se tratar de um blockbuster literário, o que torna viável que as editoras concentrem mais esforços e recursos na produção desse livro em detrimento de outros, quanto pelo processo peculiar de escrita e edição de Martin. O autor não apenas não escreve os livros de maneira linear, como também já realiza grande parte do trabalho de edição, que geralmente só seria feito depois da entrega do original, antes dela.

Quanto à publicação de Os Ventos do Inverno no Brasil, a editora Suma ainda não tem planos específicos para o livro, mas de qualquer forma parece improvável que vá haver lançamento simultâneo. O curtíssimo prazo entre a finalização do original em inglês e a data de publicação nos Estados Unidos inviabiliza que as editoras internacionais consigam traduzir, editar, revisar, diagramar, imprimir e distribuir o livro para um lançamento na mesma data em seus países.


George R. R. Martin recentemente revelou estar em um bom momento da escrita de Os Ventos do Inverno, mas não informou data de término ou de lançamento.

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Arte original: Marc Simonetti.

Quando A Guerra dos Tronos começa, somos apresentados a um reino em relativa paz. É final de um longo verão, as colheitas são férteis, o povo está satisfeito e confortável. No entanto, conforme a leitura avança, nos deparamos com um cenário modificado, no qual a guerra se torna cada vez mais uma dura realidade.

Aos poucos, somos apresentados à real história por baixo da aparente calmaria. Um rei que não quer reinar, uma coroa endividada, uma rainha ambiciosa, com uma família poderosa e perigosa, um príncipe cruel… Em suma, um prato cheio para uma crise, e é o que acontece.

No entanto, na maior parte do tempo, tendemos a olhar para o que chamamos de “jogo”, com suas peças valiosas e suas políticas intrincadas, mas o que muitos deixam passar é que a maioria dessas jogadas acontece à custa de muitos plebeus inocentes, que nada têm a ver com elas.

Quem paga pela guerra?

Na metade da trama de A Guerra dos Tronos, Catelyn Stark sequestra Tyrion Lannister em uma estalagem. Isso foi um dos estopins para que tudo o que vimos até aqui. É tudo muito empolgante, afinal, finalmente as coisas começam a esquentar a partir daí. Olhando o quadro geral, temos a perspectiva constante dos nobres e suas políticas de retaliação contra as ofensas sofridas. Um dos marcos é a cena em que Ned Stark é ferido enquanto tem uma desavença com Jaime Lannister.

Tudo isso é perceptível, afinal, estamos vendo aquilo acontecendo em primeira mão, pela perspectiva de um dos envolvidos. No entanto, Martin não se limita a nos dar apenas essa visão. Logo em seguida, descobrimos que a ação de Jaime não foi a única resposta ao sequestro de um Lannister. Houve outras consequências, e elas são sentidas especialmente pelos indivíduos comuns.

Os aldeãos estavam ajoelhados: homens, mulheres e crianças, igualmente esfarrapados e ensanguentados, com o rosto distorcido pelo medo. (…)
— Salteadores, Lorde Varys? — a voz de Sor Raymun Darry pingava desprezo. — Ah, eram salteadores, para lá de qualquer dúvida. Salteadores Lannister.
Ned conseguia sentir o desconforto no salão enquanto, dos grandes senhores aos criados, todos se esforçavam para escutar. Não podia fingir surpresa. O Ocidente transformara—se num barril de pólvora desde que Catelyn capturara Tyrion Lannister. Quer Correrrio quer Rochedo Casterly tinham convocado os vassalos, e reuniam—se exércitos no desfiladeiro sob o Dente Dourado. Fora apenas uma questão de tempo até que o sangue começasse a jorrar. (…)
— Isto é tudo o que resta do castro de Sherrer, Lorde Eddard. Os outros estão mortos, tal como o povo de Vila Vêneda e do Vau do Saltimbanco.
(…)
— Eu tenho… tinha… eu tinha uma cervejaria, senhor, em Sherrer, junto à ponte de pedra. A melhor cerveja ao sul do Gargalo, todos diziam, com a vossa licença, senhor. Agora já não existe, como todo o resto, senhor. Eles chegaram, beberam o que quiseram e derramaram o resto antes de atear fogo ao meu telhado, e teriam também derramado meu sangue se me tivessem apanhado, senhor. (…)  Eles queimaram tudo. Saíram a cavalo na escuridão, do sul, e atearam fogo tanto nos campos como nas casas, matando quem tentava impedi-los. Mas não eram salteadores, não, senhor. Não faziam tenção de nos roubar o gado, estes não, mataram minha vaca leiteira no lugar em que a encontraram e a deixaram para os corvos e as moscas. (…) Mataram meu aprendiz. Perseguiram-no a cavalo, de um lado para o outro, pelos campos, espetando-lhe as lanças como se fosse um jogo, eles rindo e o rapaz tropeçando e gritando, até que o grande o trespassou.
A jovem ajoelhada ergueu a cabeça para Ned, muito acima dela, no trono.
— Também mataram minha mãe, Vossa Graça. E eles… eles… — a voz extinguiu-se, como se se tivesse esquecido do que ia dizer, e começou a soluçar.
Sor Raymun Darry retomou a história.
— Em Vila Vêneda o povo procurou refúgio no castro, mas os muros eram de madeira. Os atacantes empilharam palha contra a madeira e queimaram todos vivos. Quando as pessoas de Vêneda abriram os portões para fugir do fogo, foram abatidas com setas à medida que corriam, até mesmo mulheres com bebês de colo.
— Ah, que horror — murmurou Varys. — Quão cruéis podem ser os homens?
(A Guerra dos Tronos, Eddard XI)

Aqui, temos o primeiro vislumbre de como se começa uma guerra. Para atingir os grandes lordes, não há melhor forma do que atacar seus vassalos. Não importa que esses vassalos não tenham ligação nenhuma com a disputa pessoal. A vida deles não importa, o que importa é atingir um objetivo.

Margaery Tyrell dá dinheiro a pedintes. Arte: Torbjörn Källström.

O questionamento feito por Varys é um que eu me peguei fazendo inúmeras vezes no decorrer de minhas leituras. A partir do segundo livro, as tragédias e penúrias que são impostas ao povo comum tornam-se cada vez mais frequentes e duras. Em dado momento, fica impossível ignorá-las. Como tantos outros escritores, Martin poderia ter escolhido trabalhar apenas a parte política e ativa da guerra, mas ele fez questão de ir além disso e nos mostrar a realidade de cada uma dessas pessoas ali. Não apenas os ditos jogadores e suas peças, mas também aqueles que muitas das vezes são usados como mero tabuleiro por onde eles passam por cima.

Enquanto nós ansiamos por ver as batalhas e os próximos movimentos de cada personagem e vibramos com as investidas de nossos lados favoritos na narrativa, recebemos várias menções à situação real daqueles que estão pagando o preço por isso. Por exemplo, é extasiante ler os Lannister enfrentando problemas em Porto Real. Mas esses problemas se devem a ações cruéis que seus opositores tomaram contra seus domínios, e consequentemente, contra seu povo.

Quando Renly Baratheon fechou as estradas para a cidade, foi divertido ler Cersei, Tyrion e o Pequeno Conselho tentarem manter o controle. No entanto, também foi isso que gerou a miséria, a fome e causou a morte daqueles que viviam lá. Não no palácio, é claro que não! Eles tinham comida, mantinham suas posições e luxos. Mas já as pessoas comuns, o povo, aqueles que não eram prestigiados pelo alto nascimento…

Com metade da viagem percorrida, uma mulher em prantos forçou a passagem por entre dois guardas e correu para a rua, à frente do rei e de seus companheiros, segurando o cadáver do bebê morto acima da cabeça. Estava azul e inchado, grotesco, mas o verdadeiro horror eram os olhos da mãe. (…) A mulher nem sequer piscou. Seus braços muito magros tremiam com o peso morto do filho. (…) De ambos os lados da rua, a multidão encapelou—se contra os cabos das lanças enquanto os homens de mantos dourados lutavam para manter a fileira. Pedras, bosta e coisas piores zumbiam por cima das cabeças. ‘Dê—nos comida!’, guinchou uma mulher. ‘Pão!’ trovejou um homem atrás dela. (…) Num instante, mil vozes juntaram—se ao cântico. Rei Joffrey, Rei Robb e Rei Stannis foram esquecidos, e o Rei Pão governou sozinho. ‘Pão!’, gritaram. ‘Pão, pão!’.
(A Fúria dos Reis, Tyrion IX)

Essa passagem é especialmente interessante porque casa perfeitamente bem com uma outra citação que temos nos livros.

O povo reza por chuva, filhos saudáveis e um verão que nunca termine. Não lhe interessa se os grandes senhores lutam suas guerras de tronos, desde que seja deixado em paz — encolheu os ombros. — E nunca é.
(A Guerra dos Tronos, Daenerys III)

O povo paga pelo jogo, e paga caro. Perdem suas casas, suas colheitas, sua liberdade e, frequentemente, até suas vidas. Não lhes resta nada senão tentar sobreviver da melhor maneira que podem. Mas em uma guerra, ninguém está a salvo.

A baixada das pulgas. Arte: Régis Moulun. © Fantasy Flight Games.

Não existem heróis e vilões

Como seria agradável poder torcer sem culpa, apenas ansiando pela vitória de nossos favoritos, não é? Mas não é assim que funciona. Bem, é claro que é totalmente possível ainda ter lados favoritos e acreditar que uma causa é mais justa do que a outra. No entanto, tratando-se de batalhas, o pragmatismo fala mais alto. Para vencer, tudo é válido, mas não significa que deva ser aplaudido.

— Isso não foi cavalheiresco — disse Brienne quando se aproximaram o suficiente para ver com clareza. — Nenhum cavaleiro de verdade perdoaria uma carnificina tão cruel.
Os verdadeiros cavaleiros veem coisas piores sempre que partem para a guerra, garota — disse Jaime. — E, sim, fazem coisas piores. (…)
Os cadáveres pendiam sobre suas cabeças, amadurecendo na morte como frutos fétidos. (…) A garota estava fitando uma das mortas. Jaime aproximou-se com seus pequenos e hesitantes passinhos, a única forma que a corrente permitia. Quando viu a tosca tabuleta pendurada no pescoço do cadáver mais alto, sorriu.
— Deitaram—se com Leões — leu. — Oh, sim, mulher, isso foi muito pouco cavalheiresco… mas, foi feito pelo seu lado, e não pelo meu.
(A Tormenta de Espadas, Jaime I)

Soldados Bolton tomam prisioneiros. Arte: Tomasz Jedruszek.

Muitas vezes, o choque do leitor chega junto com o do personagem. Devido ao fato de termos preferências e lados, estamos pré-condicionados a considerar aqueles por quem torcemos como melhores do que seus rivais. Porém, Martin faz questão de quebrar essa idealização, tanto para nós quanto para os seus personagens. O trecho acima é um dos primeiros choques de realidade que Brienne sofre nos livros. Além de ser forçada a repensar sua ideia sobre o cavalheirismo, ela precisa aceitar que o lado pelo qual ela está lutando — ou seja, os Starks — é capaz de cometer tantas atrocidades quanto os adversários.

É chocante, mas necessário. Para o povo comum, não importa qual é o estandarte de quem os está matando. Tudo o que eles sabem é que mais uma vez estão sendo atacados e mortos porque aqueles que estão acima deles resolveram brigar entre si.

— Matou-os?
— E eu lhe diria se o tivesse matado? — o homem escarrou. — O mais provável é que tenha sido trabalho de lobos, ou talvez de leões, qual é a diferença? (…)
— Se fosse vocês, ficaria bem longe da estrada do rei — prosseguiu o homem. — E pior do que ruim, segundo dizem. Tanto lobos como leões, e bandos de homens sem bandeira que atacam qualquer um que consigam apanhar.
(A Tormenta de Espadas, Jaime II)

Brienne não é a única personagem a ser confrontada com essa realidade. Arya também recebe sua dose de choque de realidade durante sua árdua jornada. Ela – assim como nós – acaba por ser confrontada com os piores lados de todos.

A Montanha chegava ao armazém depois do desjejum e escolhia um dos prisioneiros para interrogatório. As pessoas da aldeia não o olhavam. Talvez pensassem que se não o vissem, ele não as veria… Mas via-as de qualquer jeito, e escolhia quem quisesse. Não havia esconderijos, não havia truques a usar, não havia como estar a salvo.
Uma moça dividiu a cama com um soldado durante três noites consecutivas; a Montanha a escolheu no quarto dia, e o soldado nada disse. Um velho sorridente remendava suas roupas e tagarelava a respeito do filho que estaria a serviço dos mantos dourados em Porto Real.
— E um homem do rei, ah, pois é — dizia — um bom homem do rei como eu, todo por Joffrey — dizia isso com tanta frequência que os outros cativos começaram a chamá-lo de Todo-por-Joffrey sempre que os guardas não estavam ouvindo. Todo-por-Joffrey foi escolhido no quinto dia. Uma jovem mãe com o rosto marcado pela varíola tinha se oferecido para lhes contar voluntariamente tudo o que sabia se prometessem não fazer mal à sua filha. A Montanha a ouviu, e, na manhã seguinte, escolheu a filha, para se assegurar de que a mulher não tinha guardado nada para si.
(A Fúria dos Reis, Arya VI)

Não existe saída para o povo comum. Ainda que tentem se colocar de um lado ou de outro, não faz diferença para aqueles que estão no topo. No fim, eles são considerados apenas meros efeitos colaterais de um quadro muito maior, e, dessa forma, sua existência acaba sendo desvalorizada. Em uma obra com um enredo político tão intrincado como são as As Crônicas de Gelo e Fogo, teria sido mais fácil ignorar esse aspecto social, mas é muito importante que Martin tenha escolhido trabalhar esse tipo de narrativa, pois embora seja dolorosa de se ler, mostra uma realidade que a grande maioria das pessoas prefere esquecer ou ignorar.

Nós somos essas pessoas comuns, aqueles que sofreriam se estivéssemos nesse cenário terrível. Não haveria justiça, misericórdia ou piedade. Não precisaria haver culpa ou crime para sofrer punições também. A dura verdade é que a maioria das pessoas não se importa com os civis, com o que eles desejam, sonham ou esperam do futuro. Eles não tem autonomia nesse universo. Como é muito bem pontuado por Gendry:

Os cavaleiros e fidalgos tomam-se uns aos outros como cativos e pagam resgates, mas não se importam se gente como nós se rende ou não.
(A Fúria dos Reis, Arya V)

E essa é uma triste verdade.

A fuga religiosa

Então, como essas pessoas que não têm absolutamente nada podem se defender? Fazendo um paralelo histórico, é seguro dizer que as pessoas se apegavam àquilo que lhes daria conforto, se não nessa vida, pelo menos na próxima; em suma, se apegavam à fé e tornavam-se fortes críticos de todos aqueles que pareciam levar uma vida contrária a ela. Na história, cada vez que as coisas começavam a parecer estar fora de controle, uma reação religiosa ocorria. Por exemplo, o cronista espanhol, Alfonso de Palencia, escreveu criticamente, após fazer uma visita a Roma em 1471, que:

Nos dias em que quase o mundo inteiro seguia a religião católica, os prelados da Igreja vestiam—se com decoro; mas agora, quando toda a Ásia, África e um terço da Europa seguem a lua crescente [do Islã], quando a Grande Turquia ataca os católicos e diariamente nos coloca em dificuldades cada vez maiores, de modo que o medo agora se estende até mesmo para dentro dos próprios muros de Roma, nossos modelos, homens que deveriam dar o exemplo, entregam—se ao luxo e, como se não tivessem nada com que se preocupar no mundo, preocupam-se com seus trajes escandalosos e se rendem a uma dissolução digna de total condenação. (apud TREMLETT, 2018, p.84).

O próprio Martin também já falou sobre isso, em relação ao cenário atual de sua obra:

“Se você olhar para a história da igreja na Idade Média, teve períodos em que havia papas e bispos muito mundanos e corruptos. Pessoas que não eram espirituais, mas políticas. Eles estavam jogando sua própria versão do jogo dos tronos com os reis e os lordes. Mas você também teve períodos de reavivamento ou reforma religiosa – a maior delas foi a Reforma Protestante, que levou à divisão da igreja. (…) É o que você está vendo aqui em Westeros.”

Detalhe de “São Domingos e os albigenses”, de Pedro Berruguete. Óleo sobre tela, 1493-1499. Museu do Prado, Madri. Fonte: Wikimedia Commons.

O que acontece em Westeros nas crônicas também é semelhante ao que ocorreu na cidade de Florença no século XV, na qual os cidadãos — após sofrerem uma série de crises econômicas e o choque da inserção da nova cultura renascentista e humanista —, passaram a seguir os ditames do frade Girolamo Savonarola, que condenava ardentemente os excessos da nobreza e quaisquer apego a bens materiais. Digo “ardentemente” pois o mesmo ficou famoso por suas fogueiras das vaidades, na qual os cidadãos de diversas classes passaram a destruir sistematicamente seus bens como; como espelhos, cosméticos, joias e roupas finas, ou qualquer obra de arte, instrumentos musicais, livros e qualquer outro objeto de valor disponível no momento. Embora Savonarola tenha sido um problema para os nobres, ele foi amplamente aceito pelas camadas populares da sociedade florentina, que se entregaram cada vez mais aos seus ensinamentos e práticas pouco usuais.

Considerando isso, é visível que  tal como na história, também recebemos uma resposta como essa nos livros. A crise econômica, as guerras, a aparição de uma nova religião desconhecida pela maioria e todos os outros contratempos passam a ser considerados algum tipo de punição divina.

E já há muito que alguém devia fazê-lo, não lhe parece? De que chamaria aquele deus vermelho que Stannis adora, se não de demônio? A Fé deve opor-se a um mal como este.”
(O Festim dos Corvos, Cersei IV).

O crescimento do fundamentalismo religioso em Westeros foi evidente no decorrer dos livros, chegando ao ponto culminante em O Festim dos Corvos. No entanto, já havia indícios de problemas futuros. Inicialmente, é claro, eles estavam revoltados. Até onde sabemos, vários dos septões eram corruptos, perdulários, gananciosos e se preocupavam mais com conforto e fortunas do que com cumprir seu papel social. O maior exemplo disso era o próprio Alto Septão, que acabou perdendo a vida ao ser confrontado por uma multidão faminta durante o motim em Porto Real.

A luz do sol incidiu na coroa de cristal do homem e derramou arcos—íris sobre o rosto erguido de Myrcella. O Alto Septão era tão gordo como uma bola, e conseguia ser ainda mais pomposo e loquaz do que Pycelle.  (…) Lorde Gyles, com o rosto mais cinzento do que nunca, gaguejou uma história sobre ter visto o Alto Septão sendo derrubado da liteira, gritando preces enquanto a multidão o arrastava (…) A lista dos mortos era encabeçada pelo Alto Septão, destroçado enquanto gritava aos seus deuses por misericórdia. Homens famintos olham com olhos duros para sacerdotes gordos demais para andar.
(A Fúria dos Reis, Tyrion IX)

Devido a isso, não surpreende o fato de eles terem buscado uma figura que se mostrasse mais firme e mais reta em seguir os caminhos dos Sete, e encontraram o que buscavam naquele que conhecemos como o Alto Pardal, que, desde sua primeira aparição, já demonstra ser diferente de seus antecessores.

Seus seguidores também se mostram mais difíceis de lidar do que se imaginava. São homens e mulheres comuns, que não tinham nada, mas se encontraram na Fé. Ainda que seus métodos pareçam bizarros e perturbadores, para eles, fazem todo o sentido.

Cersei ficou espantada. Qyburn trouxera-lhe relatórios sobre a quantidade de pardais, mas ouvir falar dos números era uma coisa, e outra era vê-los. Centenas e mais centenas estavam acampados na praça, nos jardins. Suas fogueiras enchiam o ar de fumaça e cheiros ruins. Tendas de ráfia e cabanas miseráveis feitas de lama e pedaços de madeira sujavam o imaculado mármore branco. Estavam aninhados até nos degraus, sob as altas portas do Grande Septo. (…) Quando viu o que tinham feito a Baelor, o Adorado, a rainha teve motivos para se arrepender do seu coração suave. A grande estátua de mármore, que durante cem anos sorrira serenamente sobre a praça, estava enterrada até a cintura numa pilha de ossos e crânios. Alguns dos crânios mostravam pedaços de carne ainda agarrada. Um corvo encontrava-se pousado em um desses crânios, desfrutando de um banquete seco com uma consistência de couro. Havia moscas por todo lado.
— Que significa isto? — perguntou Cersei à multidão. — Pretendem enterrar o Abençoado Baelor numa montanha de carniça?
Um homem perneta deu um passo em frente, apoiado numa muleta de madeira.
— Vossa Graça, esses são os ossos de homens e mulheres santos, assassinados devido à sua fé, Septões, septãs, irmãos negros, pardos e verdes, irmãs brancas, azuis e cinzentas. Alguns foram enforcados, outros estripados. Septos foram pilhados, donzelas e mães foram violadas por homens ímpios e adoradores de demônios. Até irmãs silenciosas foram molestadas. A Mãe no Céu chora em angústia. Trouxemos seus ossos de todo o reino até aqui para servir de testemunho à agonia da Santa Fé.
Cersei sentia o peso dos olhos sobre si.
— O rei saberá dessas atrocidades — respondeu solenemente. — Tommen partilhará de sua indignação. Isto é obra de Stannis e de sua bruxa vermelha, e dos nortenhos selvagens que adoram árvores e lobos — ergueu a voz: — Bom povo, seus mortos serão vingados!
Alguns aclamaram, mas só alguns.
— Não pedimos vingança por nossos mortos — disse o perneta — apenas proteção para os vivos. Para os septos e lugares santos.
(O Festim dos Corvos, Cersei VI)

As pessoas simplesmente estão cansadas. Cansadas da fome, da destruição e de tudo que a guerra trás. Eles estão prontos para se agarrar a qualquer coisa que pareça oferecer uma saída para suas dores. Por isso, a fuga religiosa se encaixa perfeitamente na mentalidade deles. Em momentos de dor, muitos se voltam para uma entidade superior para buscar justificativa ou uma saída esperançosa para o que estão passando. Se estão sofrendo, assumem que é algum tipo de punição por ações erradas, e por outra lado, também encontram alívio na ideia de que podem mudar isso caso mudem sua forma de viver e agir. E se no fim de tudo isso o sofrimento permanecer, então encontram forças na ideia de uma vida melhor após a morte.

Em Westeros, as pessoas estão num ponto de desgaste total e nesse meio tempo surgiu alguém, uma figura que parecia entender seu sofrimento e que parecia apresentar uma solução para a crise que eles se encontravam. Quando olhamos o quadro geral, não é difícil entender por que o Alto Pardal tem tantos apoiadores fiéis, considerando sua figura rígida.

— Septão Raynard? — a rainha quase não conseguia crer no que via. — O que faz de joelhos?
— Está limpando o chão — o homem que falou era vários centímetros mais baixo do que a rainha e magro como um pau de vassoura. — O trabalho é uma forma de prece, muito do agrado do Ferreiro — o homem se levantou, de escova na mão. — Vossa Graça. Temos estado à sua espera.
A barba do homem era grisalha, castanha e cortada curta, os cabelos atados num nó apertado por trás da cabeça. Embora as vestes que envergava estivessem limpas, estavam também puídas e remendadas. Enrolara as mangas até os cotovelos enquanto esfregava o chão, mas abaixo dos joelhos o pano estava encharcado. O rosto era marcadamente pontiagudo, com olhos encovados castanhos como lama. Seus pés estão nus, Cersei percebeu, consternada. E também eram hediondos, umas coisas duras e coriáceas, tornadas grossas por calos.
— É você Sua Alta Santidade?
— Sim.
Pai, dê-me e forças. A rainha sabia que devia se ajoelhar, mas o chão estava molhado com sabão e água suja, e ela não desejava estragar o vestido. Lançou um relance aos velhos de joelhos.
— Não vejo o meu amigo, o Septão Torbert.
— Septão Torbert foi confinado a uma cela de penitente, a pão e água. É um pecado que um homem seja tão gordo quando metade do reino passa fome.
Cersei já aguentara o suficiente por um dia. Deixou-o ver sua ira.
— É assim que me cumprimenta? Com uma escova na mão, pingando água? Sabe quem eu sou?
— Vossa Graça é a Rainha Regente dos Sete Reinos — o homem disse — mas na Estrela de Sete Pontas está escrito que tal como os homens se dobram perante seus senhores e os senhores perante seus reis, assim os reis e as rainhas devem se dobrar perante os Sete Que São Um Só.
Está me dizendo para ajoelhar? Caso estivesse, não a conhecia muito bem.
— O certo seria que tivesse me cumprimentado na escada, com suas melhores vestes e a coroa de cristal na cabeça.
— Não temos nenhuma coroa, Vossa Graça.
Suas sobrancelhas franziram-se mais.
— O senhor meu pai deu ao seu antecessor uma coroa de rara beleza, trabalhada em cristal e ouro tecido.
— E por esta dádiva honramos seu pai em nossas preces — disse o Alto Septão — mas os pobres precisam mais de comida na barriga do que nós precisamos de ouro e cristal na cabeça. A coroa foi vendida. O mesmo aconteceu às outras que tínhamos nas câmaras subterrâneas, bem como todos os nossos anéis e vestes de pano de ouro e prata. A lã manterá os homens igualmente quentes. Foi para isso que os Sete nos deram as ovelhas.
Ele é completamente louco. Os Mais Devotos também deviam estar para eleger aquela criatura… Loucos, ou aterrorizados.”
(O Festim dos Corvos, Cersei VI)

Para Cersei e a maioria dos outros nobres que estavam acostumados com os Alto Septões sendo facilmente manuseados, encontrar o Alto Pardal é chocante. Ele é um homem duro, que mais parece um camponês do que um religioso de alto escalão, e não parece interessado em nenhum bem terreno. Como isso é possível? No entanto, é exatamente isso o que ele é.

O Alto Pardal. Arte: Marc Simonetti.

Conforme a leitura avança, cada vez mais vamos sendo chocados com essa figura peculiar e todas as suas ações, da mesma forma que acontece com os personagens. É possível que isso ocorra porque, no decorrer dos livros, ficamos acostumados aos personagens ambiciosos e com uma agenda particular de planos, mas aqui parece que encontramos alguém que está lutando contra isso. De certa forma, ele é o vilão do arco de Porto Real, mas se levarmos em conta suas motivações, não parece certo considerá-lo assim.

Nessa altura, teria sido fácil visualizar a figura dele como um aproveitador hipócrita, mas mais uma vez, Martin nos traz um personagem tão complexo quanto qualquer outro. Até o presente momento, ele tem demonstrado ser exatamente o que aparenta. Um extremista religioso que acredita fielmente estar fazendo o trabalho divino e assume para si a responsabilidade de livrar a população de seus flagelos físicos e espirituais. Para o leitor, é chocante e horrível, mas para os personagens invisíveis da história, ele representa a esperança. É claro que isso não significa que devemos concordar com seus métodos, e nem que ele esteja isento de críticas. O que muitas vezes acontece, porém, é sua figura receber uma avaliação negativa pelo seu extremismo religioso, mas seu papel social ser ignorado.

Estamos falando de uma população constantemente massacrada e aterrorizada com as ações dos grandes lordes sobre si, e que finalmente encontrou alguém que está contra isso. Alguém disposto a não apenas prometer, mas realmente abrir mão do que tem, incluindo as posses e riquezas que sua posição lhe oferece, para alimentá-los, mantê-los seguros e, principalmente, alguém que parece forte o suficiente para fazer os poderosos senhores pagarem pelos crimes que cometem contra o povo comum. Quando consideramos tudo isso, podemos mesmo culpar a população westerosi por apoiá-lo?

A caminhada da penitência de Cersei Lannister. Arte: Marc Simonetti.

A Fé conquistou nesse momento um poder e autonomia que não tinha há séculos, e isso tudo ocorreu graças à destruição causada pela guerra e à insatisfação popular com aqueles que, em tese, deveriam protegê-los. Não parece que eles serão facilmente desestimulados, então podemos esperar mais alguns choques entre essas pessoas e os futuros reis e rainhas no decorrer dos próximos livros. Ouso dizer que o apoio deles será crucial para aqueles que quiserem tentar sua vez no trono. A que preço, porém, só podemos imaginar…

Exércitos de homens quebrados

Para qualquer pessoa que goste de história como eu, é sempre estimulante ler sobre as grandes batalhas que mudaram o curso dela. Nunca deixo de ficar fascinada com a grandiosidade daquilo, e, na imaginação, tudo parece empolgante. Ou pelo menos parecia. Infelizmente, preciso confessar que um monólogo presente nos livros acabou com esse sentimento para mim. Ainda gosto de ler sobre elas, mas agora, faço isso imaginando que cada uma daquelas baixas era realmente uma pessoa, não apenas um número a ser contabilizado pela historiografia.

Um dos maiores equívocos que cometemos é assumir que exércitos são uma massa única e sem identidade própria, lutando por um ideal comum. No entanto, não é isso o que acontece. A maior parte deles é constituído de homens comuns, que mal sabem sobre o que estão lutando. Eles estão ali não porque querem ou acreditam na causa de seus senhores. Estão lá porque são obrigados a estar. Mais uma vez, teria sido fácil ignorar essa faceta se não tivéssemos recebido todo um capítulo para nos fazer pensar sobre suas figuras.

— Parece mais um cavaleiro do que um homem santo — estava escrito em seu peito e ombros e naquele grande maxilar quadrado. — Por que desistiu da cavalaria?
— Nunca a escolhi. Meu pai era um cavaleiro, assim como o dele tinha sido. E meus irmãos também, todos eles. Fui treinado para a batalha desde o dia em que me acharam com idade suficiente para pegar em uma espada de madeira. Vi minha cota de batalhas, e não me desgracei. Também tive mulheres, e então me desgracei, pois algumas tomei pela força. Havia uma garota com quem desejava me casar, a filha mais nova de um pequeno lorde, mas era o terceiro filho de meu pai e não tinha nem terras nem riquezas para lhe oferecer… só uma espada, um cavalo, um escudo. Tudo somado, era um triste homem. Quando não estava lutando, estava bêbado. Minha vida era escrita em vermelho, em sangue e vinho.
— Quando foi que mudou? — Brienne quis saber.
— Quando morri na Batalha do Tridente, Lutei pelo Príncipe Rhaegar, embora ele não tivesse chegado a saber meu nome. Não lhe saberia dizer o porquê, exceto que o nobre que eu servia estava a serviço de um nobre que servia um nobre que decidira apoiar o dragão e não o veado. Se tivesse decidido de outra forma, eu poderia ter estado na outra margem do rio. A batalha foi uma coisa sangrenta. Os cantores querem nos fazer acreditar que foi apenas Rhaegar e Robert a lutar no meio da correnteza por uma mulher que ambos afirmavam amar, mas asseguro—lhe que outros homens também combatiam, e eu fui um deles.”
(O Festim dos Corvos, Brienne VI)

A Batalha na Ponte de Pedra, entre as forças Targaryen e os Pobres Companheiros. Arte: Marc Simonetti.

Soldados comuns lutam por quem seus senhores escolhe lutar. Da mesma forma que aqueles deixados para trás numa guerra, eles não tem autonomia para escolher seus “lados”. São homens e meninos comuns, que nunca lutaram na vida, que só conhecem seus pequenos vilarejos e que, de uma hora para outra, são obrigados a entrar em marcha e ir morrer numa disputa que não é deles.

Essa é a vida do soldado comum, tão cruel e trágica como a civil que eles deixam para trás. E o que eles podem fazer? Nada, a não ser continuar lutando e sonhar com o dia em que a guerra chegue ao fim. Mesmo o tratamento dado aos soldados comuns é diferente daqueles recebidos pelos soldados nobres. Eles recebem o mínimo possível e na maioria das vezes são deixados a própria sorte. Temos exemplos disso durante a marcha para Winterfell:

E não havia comida, além dos cavalos que morriam, dos peixes pegos nos lagos (menos a cada dia) e qualquer outro escasso sustento que os forrageadores conseguissem encontrar nessas florestas frias e mortas. Com os cavaleiros do rei e os senhores exigindo para si a “parte do leão” da carne de cavalo, pouco e ainda menos restava para os homens comuns. Não era de se admirar, portanto, que tivessem começado a comer seus próprios mortos.
(A Dança dos Dragões, Asha III)

Dessa forma, não deveria ser surpresa a existência daqueles que se quebram no caminho. Os que não aguentam mais e desertam. Mas após isso, o que resta para eles? A vida de um fora-da-lei? Como voltar para casa se, em muitos casos, estão tão longe que nem se lembram mais de onde vieram? E suas famílias? Ainda vivas? Não há como saber, e isso os destrói. É aqui que temos a transição de homens comuns para máquinas de matar.

— Sor? Senhora? — Podrick os interrompeu. — Um desertor é um fora da lei?
— Mais ou menos — Brienne respondeu.
O Septão Meribald discordou.
— Mais menos do que mais. Há muitas espécies de fora da lei, assim como há muitas espécies de pássaros. Tanto um borrelho como uma águia marinha têm asas, mas não são a mesma coisa. Os cantores adoram cantar sobre bons homens forçados a sair da lei para combater um senhor malvado qualquer, mas a maioria dos fora da lei são mais parecidos com esse Cão de Caça voraz do que com o senhor do relâmpago. São homens maus, movidos pela ganância, amargurados pela maldade, que desprezam os deuses e só se preocupam consigo. Os desertores são mais merecedores de nossa piedade, embora possam ser igualmente perigosos. Quase todos são plebeus, gente simples que nunca tinha estado a mais de uma milha da casa onde nasceu até que algum senhor veio levá-los para a guerra. Mal calçados e malvestidos, partem marchando sob seus estandartes, muitas vezes sem melhores armas do que uma foice, uma enxada afiada ou um martelo que eles mesmos fizeram atando uma pedra a um pedaço de madeira com tiras de pele de animal.
Irmãos marcham com irmãos, filhos com pais, amigos com amigos. Ouviram as canções e as histórias, e por isso vão se embora de coração ansioso, sonhando com as maravilhas que verão, com as riquezas e as glórias que conquistarão. A guerra parece uma bela aventura, a melhor que a maioria deles alguma vez conhecerá. Então experimentam o sabor da batalha. Para alguns, essa única experiência é suficiente para quebrá-los. Outros resistem durante anos, até perderem a conta de todas as batalhas em que lutaram, mas mesmo um homem que sobreviveu a cem combates pode fugir no centésimo primeiro. Irmãos veem os irmãos morrer, pais perdem os filhos, amigos veem os amigos tentando manter as entranhas dentro do corpo depois de serem rasgados por um machado. Veem o senhor que os levou para aquele lugar abatido, e outro senhor qualquer grita que agora pertencem a ele. São feridos, e quando a ferida ainda está apenas meio cicatrizada, sofrem outro ferimento. Nunca há o suficiente para comer, os sapatos se desfazem devido às marchas, as roupas estão rasgadas e apodrecendo, e metade deles anda cagando nos calções por beber água ruim. Se quiserem botas novas ou um manto mais quente ou talvez um meio-elmo de ferro enferrujado, têm de tirá-los de um cadáver, e não demora muito para que comecem também a roubar dos vivos, do povo em cujas terras combatem, homens muito parecidos com os que eram. Matam suas ovelhas e roubam suas galinhas, e daí é um pequeno passo até levarem também suas filhas.
E um dia, olham ao redor e percebem que todos os seus amigos e familiares se foram, que estão lutando ao lado de estranhos, sob um estandarte que quase nem reconhecem. Não sabem onde estão nem como voltar para casa, e o senhor por quem combatem não sabe seus nomes, mas ali vem ele, gritando-lhes para se posicionarem, para fazerem uma fileira com as lanças, foices e enxadas afiadas, para aguentarem. E os cavaleiros caem sobre eles, homens sem rosto vestidos de aço, e o trovão de ferro de seu ataque parece encher o mundo… E o homem quebra. Vira-se e foge, ou rasteja para longe, depois por cima dos cadáveres, ou escapole na calada da noite e encontra um lugar qualquer para se esconder. Toda noção de casa está perdida a essa altura, e reis, senhores e deuses significam menos para ele do que um naco de carne estragada que lhes permita sobreviver mais um dia, ou um odre de vinho ruim que possa afogar-lhes o medo durante algumas horas. O desertor sobrevive dia a dia, de refeição em refeição, mais animal do que homem. (…) Em tempos como estes, o viajante deve ter atenção aos desertores, e temê-los… mas também deve ter piedade por eles.
(O Festim dos Corvos, Brienne V)

Mais uma vez, a realidade do que é uma guerra é mostrada. Dessa vez, descobrimos o lado daqueles que estão cometendo as atrocidades que vimos o povo sofrer anteriormente. Poderíamos classificá-los simplesmente como monstros disformes, mas a verdade é que eles eram pessoas tão comuns quanto aquelas que estavam massacrando. Eram meninos, rapazes e homens que, em sua maioria, cresceram em lares simples. Tinham pais, mães, irmãos e irmãs, e dessa forma, também sofreram horrores para chegar até onde chegaram. No fim, os monstros eram só humanos forjados na guerra.

Para mim, esse é um dos trechos mais marcantes dos livros. Não apenas ele nos mostra a realidade por trás do discurso glorioso das batalhas, mas também traz uma percepção muito grande de como uma pessoa pode ser despojada de tudo o que possui no meio de uma guerra. Perdem suas casas, sua família, o pouco que possuem, e, por fim, perdem sua própria humanidade. Às vezes mantêm a vida, mas parafraseando Mirri Maz Duur, de que serve a vida quando todo o resto desapareceu?

Não há muito o que dizer para concluir esse texto, apenas que é preciso ler com atenção esses relatos. Eles estão lá por um motivo, e não é apenas para chocar. Precisamos compreender que guerras e batalhas podem parecer gloriosas e grandiosas, mas na realidade, o preço pago por elas é sempre alto demais, e quem geralmente paga por eles são aqueles que não tem culpa. Por mais que o Jogo dos Tronos pareça ser incrível, as consequências dele foram, e ainda serão, catastróficas.

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As dedicatórias dos livros de George R. R. Martin: As Crônicas de Gelo e Fogo https://www.geloefogo.com/2020/06/as-dedicatorias-dos-livros-de-george-r-r-martin-as-cronicas-de-gelo-e-fogo.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-dedicatorias-dos-livros-de-george-r-r-martin-as-cronicas-de-gelo-e-fogo https://www.geloefogo.com/2020/06/as-dedicatorias-dos-livros-de-george-r-r-martin-as-cronicas-de-gelo-e-fogo.html#respond Sun, 14 Jun 2020 21:59:43 +0000 https://www.geloefogo.com/?p=107475 George R. R. Martin, assim como muitos outros autores — para não arriscar dizer a imensa maioria — tem o […]

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Foto original: Dravecky, Wikimedia Commons.

George R. R. Martin, assim como muitos outros autores — para não arriscar dizer a imensa maioria — tem o hábito de, nas páginas iniciais de suas publicações, fazer uma dedicatória para pessoas que foram especiais no processo de escrita ou publicação daquele material. Já se perguntou quem são as pessoas que ajudaram, mesmo que indiretamente, essas histórias a chegar até nós? Nessa série de publicações, iremos trazer compilações e contextualizações sobre todas as dedicatórias escritas por Martin.

É uma tarefa extensa, uma vez que isso inclui suas coletâneas, antologias, romances e também romances-mosaico organizados por ele. Mas não poderíamos começar por outra parte de sua obra que não As Crônicas de Gelo e Fogo. Confiram quem foi homenageado em cada livro da série principal, bem como nas obras derivadas.

A Guerra dos Tronos

Este vai para Melinda.

O primeiro livro de As Crônicas de Gelo e Fogo foi dedicado à amiga de George, também escritora, Melinda Snodgrass. Parte do grupo que jogou a campanha do RPG Super World no início dos anos 90, hoje em dia, Melinda divide o cargo de editora de Wild Cards com George, e quando A Guerra dos Tronos foi publicado, já era parte importante da equipe de autores da série, sendo criadora do Dr. Tachyon, um dos mais célebres personagens.

Seu histórico inclui diversas séries de livros de fantasia e ficção científica, com destaque para Imperials. Também foi roteirista de Star Trek: Next Generation, universo no qual ainda editou uma coletânea, que inclui um conto seu. Atualmente, Melinda é uma das produtoras das vindouras séries de TV baseadas em Wild Cards. Tem dois contos publicados no Brasil em coletâneas editadas por Martin e Gardner Dozois: Escrito no Pó, em As Crônicas de Marte, e As Mãos que Não Estão Lá, em Mulheres Perigosas.

A Fúria dos Reis

Para John e Gail, por toda a carne e hidromel que compartilhamos.

John Jos Miller, Gail Gerstner, Walter Jon Williams e George R. R. Martin durante suas sessões de Superworld, que dariam início a Wild Cards.

O escritor John Jos. Miller e sua esposa, Gail Gerstner, são amigos de longa data de George. Também residentes do Novo México (o casal mora em Albuquerque, enquanto George, em Santa Fe), fizeram parte do círculo de amigos ao qual George se junto por intermédio de Roger Zelazny, quando era um recém chegado na cidade. John acredita que ambos tenham se conhecido em alguma das sessões de RPG na casa do também escritor Walter John Miller, ou em alguma convenção.

Em uma dessas sessões, George ficou encarregado de mestrar uma campanha no sistema Super World, e o grupo de amigos, que contava tanto com John e Gail, como com George e Parris, começou a desenvolver o que eventualmente se tornaria a série Wild Cards. Gail se aventurou a escrever também e participou de um dos volumes da série, Ases pelo Mundo, introduzindo sua personagem no jogo original, a Peregrina. Já John, que estreou já no primeiro volume da série com seu personagem, O Caçador, já participou de 16 volumes até hoje.

A Tormenta de Espadas

Para Phyllis, que me convenceu a incluir os dragões.

Phyllis Eisenstein.

A escritora Phyllis Eisenstein, amiga pessoal de Martin e autora de fantasia que publica desde os anos 70, foi a homenageada desse livro. A relação entre os dois autores é antiga: seu conto publicado em 1978, Lost and Found, dez anos mais tarde foi adaptada como um episódio da segunda Além da Imaginação, e o roteiro foi escrito por George.

Em agosto de 2017, Martin comentou como, apesar de sempre ter planejado que os dragões fossem o símbolo da casa Targaryen, as criaturas não estariam presentes na sua saga literária, no entanto, Phyllis o convenceu a incluí-los, recebendo, por isso, a dedicatória em A Tormenta de EspadasAlém disso, o personagem Alaric de Eysen, presente no casamento de Joffrey e Margaery é uma pequena referência ao protagonista do romance de Phyllis, Tales of Alaric the Minstrel. Uma história de Phyillis com Alaric também está presente em Rogues, antologia editada por Martin e Gardner Dozois.

O Festim dos Corvos

Para Stephen Boucher, o mago do Windows, o dragão do DOS, o responsável por esse livro não ter sido escrito em giz de cera.

Todos sabemos que os livros de George não são escritos da maneira mais moderna possível: ele ainda usa um computador com sistema operacional DOS, um sistema antigo, simples e sem conexão com a internet. Até pouco tempo, o escritor ainda usava um computador que datava do início dos anos 80. Hoje usa uma máquina mais nova, mas que continua emulando o DOS. Durante a escrita de O Festim dos Corvos, no entanto, seu computador parou de funcionar. O livro é dedicado ao técnico de informática Stephen Boucher, que conseguiu consertá-lo sem que o que já havia sido escrito fosse perdido.

A Dança dos Dragões

Este é para meus fãs, para Lodey, Trebla, Stego, Pod, Caress, Yags, X-Ray e Mr. H, Kate Chataya, Mormont, Mich, Jaime, Vanessa, Ro, para Stubby, Louise, Agravine, Wert, Malt, Jo, Mouse, Telisiane, Blackfyre, Bronn Stone, Coyote’s Daughter e o restante dos homens loucos e mulheres selvagens da Irmandade sem Estandartes,

Para os meus magos do website, Elio e Linda, senhores de Westeros, Winter e Fabio do WIC, e Gibbs do Dragonstone, que começou tudo isso,

Para os homens e mulheres de Asshai, na Espanha, que cantam para nós sobre um urso e uma bela donzela, e os fabulosos fãs da Itália que me deram tanto vinho,

Para meus leitores na Finlândia, Alemanha, Brasil, Portugal, França, Holanda e todas as terras distantes que estiveram esperando por esta dança,

E para todos os amigos e fãs que ainda encontrarei, obrigado pela paciência.

O sucesso de Martin cresceu exponencialmente entre o lançamento de O Festim dos Corvos A Dança dos Dragõespor conta da produção e lançamento de sua adaptação televisivaO intervalo entre esses dois volumes também foi a maior espera de As Crônicas de Gelo e Fogo para os fãs. Nesse sentido, é simbólico que George os agradeça pela paciência, e apesar de mencionar vários países onde sua obra estava sendo publicada e lida, faz questão de citar nominalmente alguns de seus mais antigos e fiéis leitores. Entre os mencionados, está Adam Whitehead, autor do blog Wertzone, que chegou a virar personagem em um dos capítulos liberados de Os Ventos de Inverno e Peter Gibbs, fundador do Dragonstone, o primeiro site de fãs para a série de livros.

A Brotherhood Without Banners é uma antiga organização de fãs da saga que se reúne em convenções desde 2001, quando também contavam com a participação de Martin. O autor citou alguns de seus membros fundadores, que se conheceram online nos primórdios do fandom. Agradeceu também ao fórum do site Westeros.org, a mais antiga organização online de fãs da saga ainda em existência, criada por Elio García e Linda Antonsson, que são agradecidos logo abaixo. Elio e Linda possuem uma longa amizade com George, sendo frequentemente consultados pelo autor para evitar inconsistência nos livros, e também, tendo sido escolhidos  como co-autores de O Mundo de Gelo e Fogo.

George R. R. Martin com membros do fã clube oficial Brotherhood Without Banners.

Junto com eles, são mencionados os então administradores do site Winter is Coming, portal que hoje faz parte de um conglomerado de mídia para notícias pop em geral. Ainda entre os sites, o Asshai foi o primeiro fórum em espanhol para fãs da saga. Embora ainda esteja no ar, as discussões originais (que incluíam até uma entrevista com George), foram perdidas.

O Cavaleiro dos Sete Reinos

George R. R. Martin e Raya Golden.

Para Raya Golden, por todos os sorrisos animados e ilustrações bonitas.

Raya Golden trabalha com Martin como assessora na Fevre River Packet Company, onde concentra as funções de assessora de arte, licenciamento e redes sociais pelos últimos nove anos. Como artista, sua primeira graphic novel foi uma adaptação do conto do autor, O Homem do Depósito de Carne, que chegou a ser indicada ao prêmio Hugo. Em 2019, adaptou Starport, um roteiro antigo de Martin para uma série de TV que nunca chegou a ser produzida, para quadrinhos também. O Gelo & Fogo entrevistou Raya no ano passado a respeito desse lançamento.

O Mundo de Gelo e Fogo

Para o Senhor mais estimado e gracioso, Tommen, Primeiro de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, Senhor dos Sete Reinos e Protetor do Território, Yandel humilde Meistre da Cidadela, deseja prosperidade mil vezes, agora e sempre, e sabedoria sem igual.

Como uma obra cuja escrita simula ser um livro dentro do universo de As Crônicas de Gelo e Fogo, a dedicatória é feita para um personagem, o atual ocupante do Trono de Ferro, Tommen Barahteon. Ela é assinada por Meistre Yandel, o alterego de Elio Garcia e Linda Antonsson, fundadores do site Westeros.org, e autores de fato da maior parte do texto do livro.

Fogo & Sangue

Para Lenore, Elias, Andrea e Sid, os Mountain Minions.

Os assistentes de George, a quem ele carinhosamente chama de minions, são os membros da Fevre River Packet Company. Há uma publicação no subreddit Valíria, na qual o usuário Alto Valiriano listou o que sabemos sobre a identidade desses assistentes. Em Fogo e Sangue, estão referenciados Elias Gallegos, que coordena o Jean Cocteau Cinema, Lenore Gallegos, que entre outras funções, coordena a agenda de George, Siri Dharam Kaur Khalsa, garçonete e barista no Jean Cocteau Cinema, e Andrea L. Mays, cujas funções são desconhecidas do grande público.

Não se sabe com certeza o significado do termo “Mountain Minions” e qual seria sua diferença em relação aos minions “regulares”. No entanto, uma teoria interessante, em artigo de nosso colega espanhol Javi Marcos, e que considero a mais provável, é que essas tenham sido as pessoas que o auxiliam durante os períodos em que está recluso em sua cabana secreta, como para a escrita de Fogo e Sangue.

É interessante notar que em três dos casos que mencionamos aqui, os livros foram dedicados a outros escritores de ficção científica e fantasia, amigos de George e também, influências para ele. Pessoalmente, sempre defendo que para ampliar nosso entendimento de As Crônicas de Gelo e Fogo, sempre vale à pena localizá-las no tempo e no espaço.

O que Martin costuma ler? Qual a importância da obra em relação a outros trabalhos sendo publicados na mesma época? O que os influenciou e o que foi influenciado por eles? Algumas dessas respostas estiveram nessa primeira parte do artigo, porém, muitas mais virão na sequência, onde falaremos sobre as dedicatórias dos outros romances e coletâneas de Martin.

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Dois lados da moeda Targaryen: o destino de Daenerys em ‘As Crônicas de Gelo e Fogo’ https://www.geloefogo.com/2020/01/dois-lados-da-moeda-targaryen-o-destino-de-daenerys-em-as-cronicas-de-gelo-e-fogo.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=dois-lados-da-moeda-targaryen-o-destino-de-daenerys-em-as-cronicas-de-gelo-e-fogo https://www.geloefogo.com/2020/01/dois-lados-da-moeda-targaryen-o-destino-de-daenerys-em-as-cronicas-de-gelo-e-fogo.html#comments Tue, 14 Jan 2020 00:21:53 +0000 https://www.geloefogo.com/?p=107296 “Livro é livro e série é série” foi uma máxima repetida à exaustão em discussões sobre As Crônicas de Gelo […]

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Arte original: Donato Giancola.

“Livro é livro e série é série” foi uma máxima repetida à exaustão em discussões sobre As Crônicas de Gelo e Fogo e Game of Thrones ao longo dos últimos anos. Embora eu nem sempre gostasse do contexto em que ela era usada por muitos dos que a repetiam, em princípio sempre fiz questão de realmente separar as duas obras e seus cânones — principalmente diante da evidente confusão que alguns leitores tinham (e têm) sobre o que aconteceu em cada história.

Com o fim da série de TV, porém, é inevitável especular o que e quanto daquele final estarão também nos livros de George R. R. Martin. O próprio autor reiterou, inúmeras vezes, que os finais serão ao mesmo tempo iguais e diferentes. Essa questão foi objeto de outro artigo, que pode ser lido aqui.

Observando as reações um tanto extremas dos fãs torcedores de Daenerys Targaryen, que ficaram frustrados com o final da personagem em Game of Thrones e passaram a (previamente) criticar também GRRM por imaginarem que ela terá esse mesmo fim indesejado em As Crônicas de Gelo e Fogo, vieram a minha mente algumas ideias, talvez meras divagações, sobre o destino dela nos livros.

De saída, deixo claro que acredito, sim, que Daenerys morrerá no final dos livros, depois de alguns atos, digamos, extremos. O trajeto até chegar neles, porém, é o cerne da questão. Um dos pontos centrais dessas reflexões é que a série de David Benioff e D. B. Weiss realmente abordou vários dos eventos que ocorrerão com Daenerys na história de Martin, mas a abordagem deve ser fundamentalmente diferente.

O exercício aqui não será fazer uma análise extensa e completa, mas basicamente pegar o que aconteceu em Game of Thrones e tentar imaginar como aquilo pode ser melhor adequado ao estilo narrativo e às intenções temáticas de George R. R. Martin para a personagem que já pudemos observar em As Crônicas de Gelo e Fogo.

A situação atual

É bom, para que leitor e leitora compreendam essas minhas divagações, que recapitulemos os últimos eventos envolvendo Daenerys, além de alguns do que estou convicto de que ocorrerão em As Crônicas de Gelo e Fogo (ainda que não tenham acontecido em Game of Thrones).

No fim de A Dança dos Dragões, Daenerys finalmente abraçou o lema de sua casa, fogo e sangue, depois de conseguir a paz em Meereen sacrificando sua própria natureza e fazendo inúmeras concessões que a deixaram extremamente desconfortável. Adam Feldman tratou sobre essa questão e o arco meereenês como um todo em sua série de ensaios (que não me canso de recomendar, até porque foi de certa forma “aprovada” pelo próprio Martin) Untangling the Meereenese Knot (“Desatando o Nó Meereenês”).

“A Rendição de Meereen”, por Stephen Najarian.

No último capítulo do quinto livro, enquanto alucina no Mar Dothraki, Daenerys passa por uma experiência catártica de descoberta da própria identidade, e chega à conclusão de que “dragões não plantam árvores”.

Agora, isso quer dizer que Daenerys vai sair dali imediatamente como uma destruidora desgovernada? Muito provavelmente não, mas significa que ela realmente e finalmente se identificou com e se encontrou no perfil de conquistadora de sua Casa ancestral, e não vai mais tentar se adequar a uma natureza pacífica e de concessões que não é a sua.

Aqui, uma ressalva importante: embora muitos leitores tivessem (e ainda têm) a visão de que Daenerys é uma espécie santa salvadora em busca do bem maior, essa nunca foi sua verdadeira identidade em As Crônicas de Gelo e Fogo – apesar de também ser vista assim por diversos personagens (e totalmente ao contrário por outros, uma questão de perspectiva que abordaremos mais adiante).

A jornada da personagem não começa e nem segue como a de uma idealista, com objetivos ideológicos de reforma como motivação das ações. Embora ela de fato tenha empreendido atos benéficos para o “bem maior” em Essos (o ataque ao multimilenar sistema escravocrata vigente no continente), eles foram circunstanciais, não o ponto central de sua jornada.

Cenas dos próximos capítulos

Embora eu não acredite que Daenerys sairá do Mar Dothraki como uma assassina em massa sanguinária e cruel, acho que ela já empreenderá um ato bastante violento em seus primeiros capítulos de The Winds of Winter (“Os Ventos de Inverno”).

Daenerys deixa a tenda dos khals em Vaes Dothrak. Arte: Benjamin Cehelsky (ryky).

Em Game of Thrones a personagem foi capturada e mantida cativa pelos khals em Vaes Dothrak, e acabou por se livrar deles — e assumir o controle de todo o povo — ao realizar um massacre com fogo. Sou da opinião de que algo similar acontecerá em As Crônicas de Gelo e Fogo, e que o incêndio resultante será a segunda fogueira mencionada pelos Imortais em Qarth.

O fato de não ser uma idealista por excelência não significa, no entanto, que Daenerys não possa também eventualmente contribuir para o dito bem maior: é bastante provável que ela tenha um papel importante na guerra contra os Outros (e há alguns anos expliquei por que acreditava que ela seria Azor Ahai renascido).

É bom que lembremos que ela atualmente não tem qualquer consciência sobre a ameaça que reside para-lá-da-Muralha, mas isso também pode mudar a depender de suas novas relações em Westeros. Acredito que o infame par “Jonerys” será canônico também, já que parece ser algo grande demais para ser simplesmente uma invenção dramática de Weiss e Benioff.

O contato com Jon Snow pode também ser o elemento motivador da personagem para participar da nova Guerra pela Alvorada, mas tenho a impressão de que os sacrifícios que terá feito nesse conflito é que serão definidores de seus atos futuros.

Game of Thrones não estabeleceu muito bem uma importância crucial para Daenerys no confronto contra os Outros (a despeito de todo o alarde prévio quanto a “dragões versus seres de gelo”), e nem acho que tenha ficado claro o peso de suas perdas ali, mas penso que a significância dessas duas coisas ficará bem definida nos livros de Martin.

Outro ponto importante que esteve ausente da série de TV é o provável conflito de Dorne com Daenerys e o apoio da região a Aegon, resultante tanto da morte de Quentyn por um dos dragões quanto pela chegada do suposto filho de Rhaegar e Elia — o que abordarei mais adiante neste texto.

Daenerys quer ser amada

Parece a mim algo claro que o arco global de Daenerys, em todas As Crônicas de Gelo e Fogo, é idealizado por Martin para ser uma tragédia. Eliana Deli Llama tratou magistralmente sobre o assunto no ensaio Daughter of Death: A Song of Ice and Fire’s Shakespearean Tragic Hero (“Filha da Morte, o Herói Trágico Shakespeariano de As Crônicas de Gelo e Fogo“), publicado antes da exibição da última temporada de Game of Thrones.

Classicamente, o destino final de um personagem trágico (em Shakespeare, principalmente) é a morte. Antes disso, porém, entende-se que deve haver conflito de forças na alma desse herói, e ações humanas que resultem em uma calamidade. Tudo isso pode ser encontrado na jornada de Daenerys em As Crônicas de Gelo e Fogo (incluindo os pontos gerais de seu final na série de TV).

A compreensão das forças motivadoras de Daenerys ao longo da história são importantes para entendermos uma possível derrocada e “virada” dela contra certos grupos no final da história. Daenerys não quer apenas o Trono de Ferro, mas ser amada por aqueles que considera seus súditos, e anseia por ser valorizada como líder e figura de poder dessas populações.

Em Essos ela experimentou ser vista como uma líder admirada: embora rejeitada pelos representantes do status quo escravagista do continente, entre os comuns ficou conhecida como mhysa, a mãe, e sua fama de salvadora se estendeu até a regiões por onde ainda não passou — lembremo-nos das palavras da Viúva do Cais, em Volantis: “Diga que estamos esperando. Diga para ela vir logo”.

Daenerys Targaryen. Arte: Donato Giancola, para o calendário oficial de A Song of Ice and Fire 2015.

Outro ponto relevante é que a personagem também sempre anseia pelo retorno a um lugar onde poderia chamar de casa, uma volta ao lar. A Casa da Porta Vermelha, em Braavos, se torna simbólica nesse sentido – e George R. R. Martin já declarou que haverá mais revelações sobre isso em livros futuros.

A frustração por não conseguir nem uma coisa e nem outra em Westeros, não tendo sua atuação na luta contra os Outros valorizada pelos westerosi e sendo ativamente rejeitada por eles (em detrimento de outros, seus adversários em maior ou menor medida, sejam Cersei, Aegon ou Jon Snow) pode levá-la à conclusão de que aquelas pessoas, por quem ela sacrificou tanto, não “merecem” a salvação que ela quer lhes dar, e por isso, que merecem ser queimadas.

Acredito que o sentimento de Daenerys, no fim da história, seja o de alguém que terá sacrificado muito por um povo e um continente, e não percebe gratidão ou reconhecimento de seus esforços nesses seus (pretensos) súditos. Pelo contrário: ela só veria ingratidão e rejeição à sua pessoa, o que a levaria a concluir que eles não merecem mesmo a salvação que ela tenta trazer.

Uma questão de perspectiva

Outro ponto que acho que GRRM pode querer abordar com a história de Daenerys é o conceito de que, em muitos casos, lados certos não existem de verdade. Um eventual destino trágico de Daenerys pode ser a culminação de um conflito que decorre não de um lado mau e outro bom, mas simplesmente de várias partes com opiniões e interesses conflitantes: ela e os outros.

Um exemplo palpável disso pode ser a relação de Daenerys com os Martell (e Dorne como um todo). Presumivelmente eles seriam seus mais naturais aliados em Westeros, mesmo na ausência do pacto nupcial, pela relação de proximidade entre as Casas e pelas perdas dos dorneses na Rebelião de Robert. A jornada de Quentyn e seu malfadado resultado, porém, quase com certeza resultarão na rejeição de Daenerys por Dorne.

Não é que Daenerys seja estritamente culpada por não ter aceitado a proposta de Quentyn e nem por ele ter tomado a atitude temerária (e corajosa, como apontou Arthur Maia) de tentar domar um dragão, ansioso por se provar digno da missão que recebeu do pai, o que resultou em sua morte. O timing e fatores externos a essa relação entre ela e Dorne impediram que a situação tivesse uma resolução satisfatória.

Os dorneses, entretanto, provavelmente não vão querer saber das justificativas e motivos dela – e nem deveriam, porque para eles o destino e a política de Meereen realmente pouco importam. O que vai importar é que ela recusou a oferta de Dorne, de casamento e de apoio político e militar, e que o Príncipe Quentyn morreu por um dos dragões dela. Há alguém categoricamente errado aí? Eu diria que não. Mas tampouco há conciliação possível nessa situação.

O mesmo pode acontecer numa eventual tentativa de conquista dos Sete Reinos por parte de Daenerys. Do ponto de vista dela, seria uma “libertação” do continente de forças traidoras, representadas quer pelos Lannister ou pelo falso Aegon.

Nesse caso, não seria difícil para o leitor entender e simpatizar com essa racionalização: os Lannister, principalmente em Tywin e Cersei, são estabelecidos desde o primeiro livro como figuras eminentemente negativas a nível pessoal. A conspiração para promover o Jovem Griff como alguém que ele realmente não é também não seria vista com bons olhos por alguém que sabe a verdade: ela equivaleria a usurpação através da mentira e do ardil. É difícil ver isso como algo positivo, principalmente quando se acompanha as tribulações de outra personagem com o mesmo intento desde o começo.

“Ameaça do Leste”, por Tomasz Jedruszek. © Fantasy Flight Games.

No entanto, do ponto de vista da população westerosi, tampouco seria surpresa se eles estivessem satisfeitos em ser governados por essas pessoas, ou, no mínimo, mais satisfeitos do que estariam diante da filha de Aerys II Targaryen, o Rei Louco, que comanda três dragões, exércitos de bárbaros dothraki e eunucos essosi, cuja fama ao redor do mundo não é das melhores e que vem trazer guerra quando eles finalmente acreditam que atingiram a paz.

Pensando pragmaticamente, para o “bem do reino”, o fato de Aegon ser falso realmente importaria? Esse bem-estar geral não poderia de fato ser alcançado com um monarca cuja identidade não é verdadeiramente a que diz ser, da mesma forma que seria possível com um rei legítimo? Qual é realmente a diferença, principalmente se ele acredita ser quem é, e provavelmente ostentará vários símbolos do poder Targaryen (como Jeff “BryndenBFish” Hartline aponta neste texto)? Esse é outro questionamento que acredito que Martin pode colocar para o leitor.

Para uma pessoa que está tentando conquistar o reino, ver um impostor tomar seu lugar e receber os créditos, os louros, a glória e o amor do povo (sem ter se esforçado e sacrificado tanto para tal quanto ela mesma), no entanto, é visto algo completamente absurdo – e esse ponto de vista é totalmente compreensível, também.

A questão de perspectiva resume bem a máxima sobre os membros da Casa Targaryen, dita por Jaehaerys II a Barristan Selmy (que, por sinal, se parece muito com uma citação em uma série de que Martin é fã):

— Não sou um meistre para lhe citar história, Vossa Graça. Minha vida foram as espadas, não os livros. Mas qualquer criança sabe que os Targaryen sempre dançaram demasiado perto da loucura. Seu pai não foi o primeiro. O Rei Jaehaerys disse-me um dia que a loucura e a grandeza eram dois lados da mesma moeda. “Sempre que um novo Targaryen nasce”, disse ele, “os deuses atiram uma moeda ao ar e o mundo segura a respiração para ver de que lado cairá”.
(MARTIN, George R. R. A Tormenta de Espadas. São Paulo: Leya, 2011. Tradução de Jorge Candeias.)

“Nascida da Tormenta”, por Tomasz Jedruszek.

Para muitos personagens, dentro dos próprios livros, Daenerys Targaryen já é considerada louca por tudo o que empreendeu em Essos. Para outros, seus súditos, é uma grande líder que inspira afeição e devoção. Acredito que essa distinção só vá se acentuar conforme ela progrida rumo a Westeros e chegue no continente.

Eventuais atos brutais de um personagem podem ser interpretados como tendo explicação e sendo justificados ou não, a depender do observador (e isso no mundo real também). O que especulo é que uma das intenções de GRRM seja explorar essa dualidade usando o fato de sua personagem grande (para o bem ou para o mal) ter um ponto de vista.

O fator surpresa

Na série de TV, embora alguns dos atos cruéis de Daenerys tenham sido apresentados ao longo das temporadas, a “virada” em direção à crueldade máxima foi guardada para o final como uma grande reviravolta que realmente chocou os espectadores. Não acredito, no entanto, que o intuito de George R. R. Martin seja o mesmo nos livros.

Embora muito se diga que “as pistas estavam ali o tempo todo, e se você não gostou de como aconteceu a culpa é sua por não prestar atenção”, não é bem assim que as coisas funcionam (ou deveriam funcionar).

Um giro de 180° na personalidade de um personagem, ainda que algumas dicas já tivessem sido plantadas, pode ser efetivo em termos de twist, mas deixa um sabor amargo de história mal contada e de mau desenvolvimento. Como o canal Trope Anatomy bem explicou, foreshadowing não é desenvolvimento de personagem.

Quando digo que não acredito que Martin tenha o mesmo intuito nos livros, não estou me referindo à ideia de Daenerys realizar atos cruéis, mas a como isso ocorrerá. Não me parece razoável que o autor trate algo desse calibre como uma simples reviravolta para chocar e deixar os leitores boquiabertos de surpresa.

Nesse caso, o investimento do leitor na personalidade da personagem é estimulado por dezenas de capítulos com ponto de vista ao longo de diversos livros. Isso acaba por quase exigir que um ato que ela provavelmente não praticaria no passado, mas que realizará em dado momento futuro, tenha fundamento não só em indícios prévios, mas em experiências, interpretações e interações significativas (ainda que pouco tempo passe). Não deixa de ser uma reviravolta, mas ela não é instantânea.

Para que um arco trágico de Daenerys ou de qualquer outro personagem funcione de fato e com sucesso, todo o desenvolvimento até o final deve ser natural e orgânico, de forma que o leitor (ou espectador) percebam aquele fim como inevitável.

E então?

Daenerys, por Tomasz Jedruszek.

Como leitoras e leitores a essa altura devem ter percebido, este texto foi menos um ensaio bem estruturado e mais uma coleção de várias divagações e reflexões sobre a personagem e seu futuro, mas isso não quer dizer que os pontos apresentados não se interligam.

O ponto central das ideias apresentadas aqui é aquele que se aplica a várias linhas narrativas de Game of Thrones que estarão presentes também em As Crônicas de Gelo e Fogo: o desenvolvimento importa, e muito.

Assim, acredito que a Daenerys que Martin originalmente idealizou vai também realizar nos livros várias das ações de sua correspondente televisiva, mas as motivações e o trajeto para chegar a certos eventos e reviravoltas terão uma exploração mais profunda e que parecerá mais natural. As relações e interações da rainha Targaryen com os Outros e com os outros serão fundamentais para seu destino último, e não serão apenas abordadas de passagem.

Tenho plena consciência de que se o destino da Daenerys for mesmo esse, ele desagradará sua base de fãs mais fanáticos. Por mais pleonástico que isso possa parecer, me refiro aqui ao comportamento dos que consomem a obra como torcedores, de forma parcial para seus favoritos, de maneira que qualquer destino que não seja a “vitória” deles (como se se tratasse realmente de uma competição com vencedores e perdedores) é considerada uma má história.

Qualquer um que acompanha as declarações de Martin e sua escrita, por outro lado, pode chegar à conclusão de que ele não se importa e não se importará com isso ao escrever sua história. O autor não está (e não deveria estar) preocupado em atender a segmentos específicos da base de fãs com seus personagens e seus destinos: ele se propôs a escrever um épico de guerra com um pano de fundo fantástico e é o que está fazendo. Como ele mesmo já disse, “tentar agradar a todos é um erro terrível“.

Daenerys Targaryen será sem dúvida lembrada como uma das personagens que mais impacto causou no universo desse épico, tanto dentro dele (para os personagens) quanto fora (para os leitores). Seja qual for seu destino, ela será uma personificação do “coração humano em conflito consigo mesmo”, um dos motes de escrita de GRRM, e seu apelo enquanto personagem, para mim, reside justamente aí.

 

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A única maneira de ser valente: a coragem de Quentyn Martell https://www.geloefogo.com/2020/01/a-unica-maneira-de-ser-valente-a-coragem-de-quentyn-martell.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-unica-maneira-de-ser-valente-a-coragem-de-quentyn-martell https://www.geloefogo.com/2020/01/a-unica-maneira-de-ser-valente-a-coragem-de-quentyn-martell.html#comments Tue, 07 Jan 2020 19:28:39 +0000 https://www.geloefogo.com/?p=105902 — Pode um homem continuar a ser valente se tiver medo? — Esta é a única maneira de ser valente. […]

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— Pode um homem continuar a ser valente se tiver medo?

— Esta é a única maneira de ser valente.
(A Guerra dos Tronos, capítulo 1, Bran.)

A conversa entre Bran e seu pai, Eddard Stark, logo quando somos apresentados aos dois personagens no início de A Guerra dos Tronosé uma das mais marcantes de As Crônicas de Gelo e Fogo, e frequentemente é lembrada como uma das mais bonitas já escritas por Martin. E como vou defender neste texto, ela encontra ressonância durante toda a sua obra, e ler as Crônicas com ela em mente é fundamental para moldar nossa interpretação de uma série de personagens, entre eles o bastante ignorado e muitas vezes considerado burro, covarde ou despropositado, Quentyn Martell.

Quentyn Martell, por Kirkpatrick.

Mas para que possamos avançar para discutir o caso de Quentyn, gostaria primeiro de apontar algumas coisas sobre como a bravura aparece em Martin. Em primeiro lugar, esse parece ser um tema tão caro para o autor, especialmente porque assume tons autobiográficos. Quando perguntando sobre personagens que tenham mais a ver consigo, George já mencionou um personagem das Crônicas, Samwell Tarly, e também seu primeiro herói de Wild Cards, O Grande e Poderoso Tartaruga (em Rretrospectiva da Obra).

Para quem conhece tanto Sam quanto Thomas, é gritante o quanto os dois se parecem. Ambos são ridicularizados pela sua estética, são vítimas de bullying, contam com apoio de amigos e são tidos como covardes. Sam é muito resistente a quaisquer experiências novas porque tem medo de tentar, após uma vida de abusos sofridos pelo pai. Thomas, quando ganha seus superpoderes de telecinese, se esconde dentro de um fusca quando vai atuar como super herói. Mas ambos, apesar do pavor que sentem, enfrentam os desafios. E segundo Martin, é apenas assim que podem ser verdadeiramente valentes.

Para Sam e Thomas, a evolução em direção a uma postura mais corajosa pode ser vista como uma conquista, afinal eles superaram seus limites e podem ajudar os outros, são heróis. Sam é capaz de cuidar de Gilly e de seu filho porque não desiste face às adversidades. Thomas se torna um ás de prestígio no universo de Wild Cards, um herói misterioso e reconhecido pela população. Eles venceram o medo, algo que, como Syrio Forel nos ensinou, “corta mais profundamente que espadas”. Mas esse não é o caso de todos os personagens de Martin, e para entendermos como alguns atos de coragem, como o de Quentyn, podem estar também relacionados com trauma e fracasso, precisamos voltar para algumas histórias mais sombrias.

No início dos anos 70, George havia passado por sérios problemas emocionais por conta do término do seu primeiro relacionamento amoroso mais intenso. Nessa época, muitos de seus personagens mais marcantes, como Johnny em Esta Torre de CinzasRobb em Uma Canção para Lya, Dirk em A Morte da Luz e o protagonista sem nome de O Segundo Tipo de Solidão sofreram do mesmo problema, e o enredo de todas essas histórias é pautado pela frustração de um amor perdido. Conforme o autor já admitiu diversas vezes, essas histórias são fruto de sua própria desilusão. E em alguns desses casos, o desajuste social é uma marca desses personagens, que idealizam o amor perfeito, e, sem ele, não conseguem se ver como parte da sociedade. É por isso que Johnny e o protagonista sem nome de O Segundo Tipo de Solidão optaram pelo isolamento. O primeiro se isola em uma floresta longe da colônia humana no seu planeta, e o outro aceita um emprego para trabalhar no espaço, longe de qualquer forma de vida por quatro anos.

Nesses dois casos, esses atos impulsivos não têm resultados tão otimistas quanto os de Samwell ou Thomas, mas acabam aprofundando o trauma vivido pelos personagens. É verdade que os dois atos derivam do medo, e portanto, podem, à primeira vista, ser entendidos como valentia. Mas nenhum dos dois enfrentou de fato o seu medo, o pavor de viver em uma sociedade sem o suporte de suas ex-companheiras, Crystal e Karen. Foram atos irresponsáveis e impensados, frutos da pressão colocada sobre ambos, muito parecido com o que acontece com Quentyn no final de A Dança dos Dragões.

Em um de meus textos favoritos, Quentyn’s Duty and Destiny (“O Dever e o Destino de Quentyn”), Adam Feldman argumenta que Quentyn é mais um dos inocentes que vira uma vítima colateral das ambições de vingança de Doran Martell. É exatamente esse o Quentyn que conhecemos: alguém preso em sua responsabilidade, no seu medo de decepcionar a família, mas não alguém que anseia pelo heroísmo ou pela missão que lhe é dada. Feldman aponta, inclusive, que o príncipe nenhuma vez sequer pensa sobre o destino de sua tia Elia e de seus primos, mas muitas vezes pensa em voltar para Dorne como um fracasso. A passagem destacada pelo autor é significativa:

Rastejar de volta para Lançasolar derrotado, com o rabo entre as pernas? A decepção de seu pai seria mais do que Quentyn poderia suportar, e o desprezo das Serpentes de Areia seria fulminante. Doran Martell colocara o destino de Dorne em suas mãos, e ele não podia falhar, não enquanto estivesse vivo para seguir adiante.
(A Dança dos Dragões, capítulo 6, “O Homem do Mercador”)

A sua natureza desajustada, assim como Samwell, Thomas e Johnny, é apresentada logo no início de sua jornada. Aos dezoito anos, Quentyn não é um guerreiro habilidoso, sua inabilidade com mulheres o condenou a uma grande desilusão amorosa e ele não possui grandes ambições como a irmã, de quem possui uma personalidade muito divergente. Apesar de tudo indicar que ele não era a escolha ideal para cruzar o mundo para encontrar e se casar com Daenerys Targaryen, as circunstâncias e os desejos de Doran o condenaram a essa missão.

Quentyn Martell
Quentyn Martell. Arte: Kim Sokol. © Fantasy Flight Games.

E a verdade sobre toda a trajetória de Quentyn é que ele tem medo. Medo das consequências de falhar com o pai e medo dos desafios que encontra no meio do caminho. Não apenas dos horrores que vê quando passa pela cidade dizimada de Astapor, mas também daquela que é o objetivo de sua missão, Daenerys, a causadora do caos astapori. Quando se conhecem, Quentyn é tratado com respeito, mas também com condescendência por aquela com quem pretendia se casar. Apesar das más notícias de que Daenerys já estava prometida a Hizdarh, a rainha o recebe em sua corte, mas não sem fazer uma piada com o codinome “sapo” que Quentyn vinha usando.

A atitude de Daenerys em relação a Quentyn se mantém quando ela o leva para conhecer seus dragões e o aconselha que deixe Meereen. Quando a rainha o recorda de que ela também é um dragão, Quentyn está preso entre dois temores, o seu fracasso e o que precisa fazer para o sucesso. A segunda opção parece ainda mais assustadora pois está materializada nas figuras dos dragões com quem Daenerys metaforicamente se identificou.

Os dragões esticavam o pescoço de um lado para o outro, olhando para eles com olhos queimando. Viserion havia quebrado uma corrente e derretido as outras. Pendurava-se do teto do fosso como um imenso morcego branco, suas garras penetrando profundamente nos tijolos queimados e em ruínas. Rhaegal, ainda acorrentado, roía a carcaça de um touro. A pilha de ossos no chão do fosso estava mais profunda do que da última vez em que ela estivera ali, e as paredes e o chão estava negros e acinzentados, mais cinzas do que tijolos (…).

O príncipe dornês estava branco como leite.
(A Dança dos Dragões, capítulo 50, Daenerys VIII.)

Apesar do perceptível pavor do príncipe, como Daenerys nota, a sua decisão é o enfrentamento. Quentyn decide ficar em Meereen, o que Eddard definitivamente consideraria uma atitude de coragem.

Após o incidente com Drogon na arena, a situação de Quentyn se torna ainda pior. Se Daenerys já era intimidadora o suficiente, mas ainda assim, a única chance de Quentyn não fracassar, a sua ausência acaba tornando sua estadia na cidade ghiscari quase que uma prisão. Mas mesmo em face a essa situação, o medo da rejeição é sua primeira preocupação. Não há menções ao desejo de ser o rei de Daenerys, mas à recepção que teria se desistisse:

Seria encantador ver o Sangueverde novamente, visitar Lançasolar e os Jardins das Águas, respirar o doce ar fresco da montanha em Yronwood, em vez dos humores quentes, úmidos e infectos da Baía dos Escravos. Seu pai não diria uma palavra de reprovação, Quentyn sabia, mas o desapontamento estaria em seus olhos. Sua irmã o desprezaria, as Serpentes de Areia zombariam dele com sorrisos tão afiados quanto espadas, e Lorde Yronwood, seu segundo pai, que enviara seu próprio filho para mantê-lo a salvo…
(A Dança dos Dragões, capítulo 60, “O Pretendente Rejeitado”.)

É nesse contexto que Quentyn elabora o plano para roubar um dos dragões e provar seu valor. Aqui, é recorrente a acusação de “burrice” do personagem, de ser um plano absurdo, que obviamente não funcionaria, mas a verdade é que a parte racionalmente complicada funciona. Já sobre domar um dragão, me parece que nós, leitores, sabemos tão pouco quanto Quentyn para acusá-lo de irracional. O que é sabido pelos personagens e pelos leitores é que há alguma relação com sangue vindo da Antiga Valíria com a capacidade de montar um dragão, mas a que grau isso funciona, nunca foi objeto de comprovação. Sendo assim, um menino desesperado, em sua tentativa final de provar seu valor a despeito de todos os seus medos toma uma atitude absolutamente arriscada, mas não impossível.

Quentyn e os dragões de Daenerys. Ilustração: Eric Velhagen, para o calendário oficial de A Song of Ice and Fire 2018.

No entanto, diferente de Samwell, que nos momentos de desespero consegue se sair bem em situações completamente inusitadas, o grande momento de bravura de Quentyn é falho. Após ser atingido por fogo de dragão, o príncipe agoniza por três dias e morre, reverberando o que Feldman aponta como sua função temática, enfatizar como inocentes se tornam vítimas dos jogos dos poderosos. Não é por acaso que a descrição do cadáver de Quentyn é uma das mais gráficas e sentimentais de todos os livros:

A maior parte da carne do príncipe tinha se soltado, e era possível ver o crânio em baixo. Seus olhos eram piscinas de pus. Ele deveria ter ficado em Dorne. Devia ter permanecido um sapo. Nem todos os homens são feitos para dançar com dragões.
(A Dança dos Dragões, capítulo 70, “A Mão da Rainha”.)

A percepção de Barristan sobre o príncipe é especialmente melancólica, e para nós, leitores, que sabemos o processo psicológico pelo qual Quentyn passou até que tomasse um ato extremo, e como argumentei, de extrema coragem, o sentimento de injustiça da situação é ainda maior. No momento em que tudo parecia perdido e desistir seria a única escolha viável, Quentyn encontrou bravura o suficiente para articular e executar um plano, e isso sem dúvidas faz dele um dos personagens mais trágicos de Martin, e um daqueles que mais tem capacidade de provocar empatia em quem entende e se identifica com seus desejos, limitações e medos.

Sendo assim, Quentyn condensa um pouco das duas abordagens dicotômicas de Martin para os atos de coragem, o triunfo e a realização pessoal que vemos em Sam e Thomas, afinal, até o fim, o menino se recusa a aceitar o caminho mais fácil, a derrota e a humilhação, mas também, o trauma, o resultado da pressão e do desajuste que vemos em Esta Torre de Cinzas e O Segundo Tipo de Solidão atingindo seu ápice, quando a morte é o resultado de sua tentativa desesperada de resolver seus problemas.

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O direito de vingança: o epílogo de ‘A Tormenta de Espadas’ https://www.geloefogo.com/2019/11/o-direito-de-vinganca-o-epilogo-de-a-tormenta-de-espadas.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-direito-de-vinganca-o-epilogo-de-a-tormenta-de-espadas https://www.geloefogo.com/2019/11/o-direito-de-vinganca-o-epilogo-de-a-tormenta-de-espadas.html#respond Wed, 13 Nov 2019 15:40:34 +0000 https://www.geloefogo.com/?p=104676 Meses atrás, publiquei aqui minha análise do prólogo de A Fúria dos Reis. Na ocasião, alguns leitores sugeriram que fizéssemos, aqui […]

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Senhora Coração de Pedra
A Senhora Coração de pedra, por Marta Sokołowska.

Meses atrás, publiquei aqui minha análise do prólogo de A Fúria dos Reis. Na ocasião, alguns leitores sugeriram que fizéssemos, aqui no site, uma série de textos sobre o prólogos e epílogos de todos os livros de As Crônicas de Gelo e Fogo. Mantivemos essa sugestão entre os nossos planos, e este texto é o que resulta dela.

Aqui, me proponho a analisar o epílogo do terceiro livro, A Tormenta de Espadas, tendo como foco a temática da vingança, tão presente nos livros e nas obras de Martin. Merrett me parece ser um do casos mais exemplares do tratamento que o autor dá para essa ideia, e é por isso que o escolhi para essa abordagem.

George R. R. Martin e a vingança

A vingança é um tema bastante caro ao autor, que teve sua formação como escritor bastante ligada à Nova Onda da Ficção Científica, tendo como principais influências, autores como Ursula K. Le Guin, Roger Zelazny e Samuel Delany. Concomitante aos movimentos sociais pacifistas nos Estados Unidos, às críticas à Guerra do Vietnã, às lutas por direitos civis e contrárias ao colonialismo, a Nova Onda é conhecida por inserir debates sociais dentro da ficção científica, preocupada em ter a literatura como um meio para discutir a sociedade.

A Senhora Coração de Pedra. Arte: Marc Simonetti.

Em In the House of the Worm, publicada em 1974, Martin escreve sobre a busca de vingança de Annelyn, um menino arrogante, contra o Meatbringer. No pano de fundo, os seres humanos nesse planeta pós-apocalíptico, travam uma guerra de séculos com uma raça que vive nas profundezas das cavernas, os grouns. No desenrolar da história, a empreitada de Annelyn acaba causando a morte de todos os seus amigos, e quase a sua própria. No entanto, ao sobreviver, ele descobre como os motivos de uma querela sem fim acabam se perdendo com o tempo, e com isso, o seu sentido, apenas normalizando a violência.

Em As Crônicas de Gelo e Fogo, há também as vinganças como as de Doran e Oberyn Martell contra Tywin Lannister, ou a trama da “justiça poética” que recai sobre Theon Greyjoy, ambos casos que mereceriam análises próprias. Mesmo sem discuti-los a fundo nesse momento, acredito que uma leitura detalhada das duas situações revele uma posição crítica da violência e momentos em que a sede de vingança apenas se retroalimenta e desumaniza o outro. Adam Feldman escreveu sobre esse tema no caso de Doran e Adam Qureshi sobre o caso de Theon. Isso é um dos temas centrais também no enredo de Arya e Tyrion.

Sendo assim, me parece que observar com cuidado um desses casos pode nos ajudar a vê-los como um conjunto no futuro, para entendermos como a literatura de Martin apresenta a ideia da vingança, e que tipo de propostas ela faz para nossas visões de mundo e valores.

Focalizador: por que Merrett?

De acordo com Gerard Genette, um dos maiores especialistas em estudos em narratologia, no livro Narrative Discourse Revisisted (1983), focalização é:

Uma restrição do “campo”, uma seleção de informações narrativas em relação ao que era tradicionalmente chamado de onisciência (tradução minha).

Sendo assim, focalização é um termo que substitui o “ponto de vista”. A narração de As Crônicas de Gelo e Fogo é feita em terceira pessoa, mas há uma restrição a esse narrador, pois ele é focalizado em diferentes personagens ao longo da narrativa. No caso especial dos prólogos e epílogos, e em parte, o que motiva essa série de posts focados neles, temos focalizadores inéditos, personagens que têm apenas um capítulo sobre o seu ponto de vista.

A escolha deles, porém, não é por acaso, nem tem a ver apenas com onde o autor quer que o foco de sua narrativa esteja. Ser um focalizador também torna os pensamentos e emoções desse personagem acessíveis ao leitor. O epílogo de A Tormenta de Espadas poderia ter um significado muito diferente se fosse visto através dos olhos de Limo ou da Senhora Coração de Pedra. No entanto, a escolha é um filho de Walder Frey, arquiteto do Casamento Vermelho, evento que levou à morte de dois protagonistas, e advindo de uma família que até então, era representada como o que de mais desprezível havia em Westeros.

Até o momento em que aparece como o focalizador no epílogo, Merrett Frey havia sido mencionado apenas três vezes na obra, e em nenhuma delas apresentara algum feito muito notável. Ele era, até então, mais um entre os muitos Freys. Os seus irmãos, sobrinhos, primos e demais parentes, no entanto, já haviam sido largamente desenvolvidos. Seu filho, “Pequeno Walder” era uma criança cruel durante sua estadia como protegido em Winterfell. Seu irmão menor, Elmar, era rude com Arya (que estava disfarçada) enquanto escudeiro de Roose Bolton. E estas são apenas as crianças.

Seus irmãos, Ryman, Lothar, Walder Negro e Walder Rivers já haviam sido representados como grosseiros ou dissimulados. Em alguma medida, arquitetos da traição que Robb sofreu, com aval de seu pai e senhor da casa Frey, Walder. Apesar de exceções, como Roslin, Cleos e Grande Walder, a família era majoritariamente apresentada como ardilosa, rancorosa e de lealdade questionável. E para além de tudo isso, sua aparência física era motivo de comparações que beiram o ridículo, com a ênfase na “cara de fuinha” dos membros da família sendo inclusive reiterada. Sendo assim, o leitor possuía diversos motivos para não sentir empatia por eles, e especialmente após o Casamento Vermelho, torcer para que coisas ruins acontecessem a eles como uma forma de vingança pelas injustiças sofridas por Robb, Catelyn e a causa nortenha.

Quando conhecemos Merrett, portanto, temos todos os motivos do mundo para acreditar que ele não seja uma boa pessoa. Talvez alguém que mereça algum tipo de punição, dependendo do tipo de leitura feita até esse momento. Mas a primeira coisa que descobrimos sobre ele é, na verdade, uma tragédia pessoal:

Eu dia esperei me tornar o maior cavaleiro que algum dia baixou uma lança para o ataque. Os deuses roubaram-me isso. Por que não haveria de beber uma taça de vinho de vez em quando? Ajuda minhas dores de cabeça. Além disso, meu pai despreza-me, meus filhos são inúteis. O que tenho eu que me leve a ficar sóbrio?
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

Após ter contraído doenças sexualmente transmissíveis quando jovem, em excursão para derrotar a Irmandade da Mata do Rei, Merrett sofreu um acidente em uma justa, que o deixou com sequelas para o resto da vida: ele sofre de dores de cabeça crônicas que o impediram de seguir lutando, e atrapalham a maior parte de suas atividades. O ambiente hostil das Gêmeas também agravou seu fracasso em encontrar alternativas, uma vez que Walder nunca demonstrou genuína preocupação com ele e seus irmãos, que vivem em estado de competição uns com os outros.

Merrett Frey e família, por amuelia.

O que Merrett demonstra é uma vida marcada pela desilusão e por uma sensação de inevitabilidade do fracasso, uma vez que não vê oportunidades para um recomeço:

Não possuía terras nem riquezas que fossem suas. Possuía as roupas do corpo, mas não muito mais, nem mesmo o cavalo que montava. Não era suficientemente inteligente para ser um meistre, não era suficientemente piedoso para septão ou selvagem o bastante para mercenário.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

Mas naquele momento em específico, ele vê uma oportunidade de retomar o respeito de seus familiares. Sua missão é resgatar Petyr Frey, também conhecido como Petyr Espinha. Ele fora sequestrado por bandidos, algo que vem assolando as Terras Fluviais, especialmente em tempos de guerra. Merrett está levando a recompensa e espera que sua tarefa seja fácil, e não havia motivo para pensar diferente. Além de tudo, é sua única esperança:

Se trouxer o Petyr para casa casa em segurança, minha sorte mudará.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

No entanto, ao chegar no resgate, ele é surpreendido pelo cadáver de Petyr já enforcado, em uma armadilha dos fora-da-lei para pegá-lo também. Quando Merrett é posto com a corda no pescoço, surge uma figura encapuzada, que revela ser a Senhora Coração de Pedra, Catelyn Tully trazida de volta à vida. Ao fim do livro, ela ordena o enforcamento de Merrett.

Ela se lembra

Se Merrett era um personagem com o qual a indisposição do leitor era induzida, um conflito entre ele e Catelyn, esposa de Eddard, mãe das crianças Stark e ponto de vista que acompanhamos por três livros, parece ser fácil de tomar partido. Mas será que a Catelyn que encontramos aqui é a mesma que conhecíamos? George respondeu essa pergunta em correspondência com um leitor:

A morte muda as pessoas. Não, eu não acho que Catelyn seja quem ela era, não mais do que Lorde Beric…

Aliás, não haverá mais capítulos pelo ponto de vista dela nos próximos livros, o que pode indicar algo.

Muito obrigado, como de costume. Fico contente que você tenha gostado do livro.

(Uncat. So Spake Martin. Westeros.org. 22 de agosto de 2000. Tradução minha.)

Embora não tenha explicitado qual a sua intenção ao fazer recair essa mudança drástica sobre a personagem, a mudança é perceptível o suficiente no texto para que se observe não apenas que ela mudou, mas o como ela mudou. Até sua morte no Casamento Vermelho, Catelyn é ativamente uma das personagens que tem menos gosto pela guerra e os conflitos. Diversas vezes, ela demonstra que queria ir pra casa, incentiva Robb e seus vassalos a não terem gosto pela vingança, e quando esta é oferecida a ela, sua reação não é entusiasmada:

— Sua dor é minha, Cat — disse (Edmure) quando se separaram. — Quando soubemos o que aconteceu a Lorde Eddard… Os Lannister pagarão, juro, terá a sua vingança.

— Isso me trará Ned de volta? – ela disse em tom cortante. A ferida ainda era recente demais para palavras mais suaves. (…)
(A Guerra dos Tronos. Capítulo 71, Catelyn XI. Tradução de Jorge Candeias.)

E mesmo durante o Casamento Vermelho, como uma última cartada, ela apela para os valores familiares de Walder Frey para convencê-lo a poupar Robb:

— Lorde Walder! — gritou. — LORDE WALDER! – O tambor batia lento e sonoro, fim bum fim. — Basta — disse Catelyn. — Basta, eu clamo. Pagou traição com traição, que fique por aqui. – Quando encostou o punhal na garganta de Guizo, a memória do quarto de doente de Bran voltou, com o toque do açona própria garganta. O tambor continuava bum fim bum fim bum fim bum. — Por favor — disse. — Ele é meu filho. O meu primeiro filho, e último. Deixe-o ir. Deixe-o ir e eu juro que esqueceremos isto… esqueceremos tudo que fez aqui. Juro pelos deuses antigos e pelos novos, nós… nós não buscaremos vingança.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 51, Catelyn VII. Tradução de Jorge Candeias.)

Merrett Frey hangs
“O Enforcamento de Merrett Frey”, arte de drbrunch.

Já quando reaparece, sob a identidade de Senhora Coração de Pedra, Catelyn toma atitudes diferentes. Além dos sinais físicos do apodrecimento do corpo quando foi ressuscitada, a sua mente também sofreu severos traumas, resultado da morte de Robb (que acreditava ser seu único filho restante), sua causa e da sua própria experiência com a morte. Com a garganta cortada, ela se expressa em poucas palavras, e todas as vezes que o faz, está falando de vingança. Destruir os Frey, Bolton e Lannister por aquilo que fizeram a ela e à sua família.

No entanto, com o que sabemos de Merrett até aqui, é possível questionar se ele deveria de fato ser alvo da obsessão por vingança de Catelyn. Mesmo antes de ser ameaçado, o filho de Walder pensa consigo mesmo sobre como sua parte no Casamento Vermelho foi pequena, e mesmo nela, foi incompetente. Merrett é, também, uma vítima de suas circunstâncias, e numa sociedade altamente patriarcal, não lhe cabia questionar as ordens de seu pai. Prestes a ser enforcado, ele mesmo relembra, num apelo:

Foi meu pai que fez isso. Tudo o que fiz foi beber. Não mataria um homem por beber. (…) O Casamento Vermelho foi obra de meu pai, e de Ryman e de Lorde Bolton.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

Ainda mais questionável que o assassinato de Merrett, é o da vítima anterior, Petyr Frey. Não apenas não há motivos para considerarmos que ele seja culpado de nada individualmente, afinal, ele é pouco mais velho que Robb, mas também, o narrador opta por descrever com detalhes o cadáver, de maneira a humanizá-lo:

Petyr Espinha pendia do galho de um carvalho, com um nó corredio bem apertado em volta de seu pescoço longo e esguio. Os olhos saltavam de um rosto negro, olhando acusadoramente para Merret. Chegou tarde demais, pareciam dizer. Mas não tinha chegado. Não tinha! Veio quando lhe tinham dito para vir.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

Esse desvio de Catelyn pode não ficar evidente em uma primeira leitura quando se trata de Freys, mas definitivamente se intensifica em O Festim dos Corvos, quando ela decide enforcar Brienne e Podrick. No entanto, as marcas de que a sua vingança estava se tornando indiscriminada já estavam plantadas desde sua primeira aparição, um contraste com a Catelyn que o leitor conheceu enquanto viva.

O que nos leva novamente à questão da perspectiva: para a Senhora Coração de Pedra, mais do que vingança, o que se está fazendo é justiça. Se o leitor ignorar a focalização de Merrett e o enfoque no sofrimento e no grotesco dos assassinatos (ou glamurizá-los), também poderá ter essa opinião. No entanto, devemos nos questionar, nos casos de Merrett, Petyr, Ryman, Podrick e Brienne, que tipo de resolução de conflitos está sendo promovida pelas ações de Catelyn? Há algum senso de justiça em castigar arbitrariamente, apontando para uma razão unicamente emocional? Parte da resposta para isso vem em um discurso de Ellaria Sand:

Posso levar um crânio para a cama, comigo, para me dar conforto à noite? Ele me fará rir, me escreverá canções, cuidará de mim quando eu estiver velha e doente?
(A Dança dos Dragões. Capítulo 34, O Sentinela. Tradução de Márcia Blasques.)

Conclusões (e Game of Thrones?)

Em consonância com os debates sociais propostos pela Nova Onda da Ficção Científica, Martin tem uma abordagem bastante crítica da vingança e da violência como forma de resolver conflitos. No caso de Merrett e Catelyn, e autor utiliza diversas técnicas narrativas para dar enfoque nos aspectos negativos daquela cena. Entre eles, descrição detalhada dos horrores ali presentes, focalizar a narrativa no personagem que é a vítima e criar uma incoerência entre a maneira que Catelyn pensava enquanto viva, com as atitudes que está tomando no momento, e isso, aliado à sua deterioração física.

Quando pensei nesse texto, foi em face de uma cena de vingança contra os Frey apresentada na adaptação televisiva dos livros de Martin, Game of Thrones, onde a personagem Arya Stark assassina todos os envolvidos no Casamento Vermelho e sai triunfante das Gêmeas, aliada a uma trilha sonora e uso de câmera que retratam a justiça sendo feita na ocasião.

Como preferi me ater ao epílogo, para ser fiel a série de posts que estamos escrevendo aqui no site, convido o leitor à reflexão: as noções de vingança em As Crônicas de Gelo e Fogo e em Game of Thrones são muito diferentes? Eu acredito que sim, mas é sempre muito frutífero deixar o debate em aberto, para que possamos pensar juntos e aprender uns com os outros.

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Os descendentes de Sor Duncan em ‘As Crônicas de Gelo e Fogo’ https://www.geloefogo.com/2019/09/os-descendentes-de-sor-duncan-em-as-cronicas-de-gelo-e-fogo.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-descendentes-de-sor-duncan-em-as-cronicas-de-gelo-e-fogo https://www.geloefogo.com/2019/09/os-descendentes-de-sor-duncan-em-as-cronicas-de-gelo-e-fogo.html#comments Fri, 06 Sep 2019 23:47:43 +0000 https://www.geloefogo.com/?p=106780 George R. R. Martin já disse que pelo menos um descendente de Sor Duncan, o Alto, pode ser encontrado em As Crônicas de Gelo e Fogo. Ele também confirmou que Brienne é um deles, mas ela pode não ser a única. Destrinchamos os possíveis descendentes de Dunk e suas pistas.

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Duncan e seus possíveis descendentes. Créditos das artes: Ed Curtis, Marc Simonetti, Andreia Ugrai, Miguel Regodón, C. Griffin e Paolo Puggioni.

Os contos de Dunk e Egg foram a primeira obra derivada de As Crônicas de Gelo e Fogo criada por George R. R. Martin, muito antes dos livros de história imaginária (O Mundo de Gelo e Fogo e Fogo & Sangue). O primeiro conto do cavaleiro andante Duncan, o Alto, e seu escudeiro Aegon “Egg” Targaryen foi escrito por GRRM no intervalo entre as publicações de A Guerra dos Tronos (A Game of Thrones) e A Fúria dos Reis (A Clash of Kings), ainda em 1998.

Martin, na verdade, credita o conto como impulsionador da popularidade da série principal. A história foi publicada originalmente na antologia Legends, de Robert Silverberg, que incluía contos de vários autores consagrados. À época, muitos leitores tiveram seu primeiro contato com Westeros através de O Cavaleiro Andante nessa coletânea, e daí partiram para As Crônicas de Gelo e Fogo.

Depois da primeira história, mais duas foram publicadas: A Espada Juramentada, em 2003, e O Cavaleiro Misterioso, em 2010 (anos mais tarde elas seriam reunidas em um volume único, O Cavaleiro dos Sete Reinos). Como os contos foram criados e publicados durante a escrita dos livros da série principal, é possível para o leitor encontrar algumas coincidências e relações temáticas e de tramas entre a saga de Dunk e Egg e o épico de Gelo e Fogo, e que ficam mais notáveis quando se leva em conta a época em que cada um deles foi escrito.

Como as aventuras de Duncan não se passam muito tempo antes dos eventos das Crônicas – se levarmos em conta que há histórias de milhares de anos sobre Westeros e Essos – não demorou para que os leitores começassem a questionar relações bastante diretas entre as duas séries. Uma dúvida que surgiu bem no começo foi: será que podemos encontrar descendentes de Duncan em As Crônicas de Gelo e Fogo? A resposta, segundo George R. R. Martin, é que sim. Que tal especularmos – com vários níveis de certeza – quem seriam eles? Embarque conosco nesse pequeno salto temporal por Westeros.

Duncan, Egg e Cascodoce. Arte: Ted Nasmith.

As falas de George R. R. Martin

Como leitores e leitoras que acompanham nossos textos no Gelo & Fogo há algum tempo devem saber, em meus artigos procuro sempre, em primeiro lugar, buscar as fontes textuais e as declarações de George R. R. Martin a respeito do assunto. Neste caso não será diferente, até porque ele já disse algumas coisas bem interessantes a respeito.

Logo depois da publicação de O Cavaleiro Andante, ainda em 1998, alguns leitores já perguntaram a GRRM se Duncan havia constituído família e se ela poderia ser encontrada nas Crônicas. A resposta evasiva de Martin revela que ele ainda não havia pensado muito no assunto naquela época:

[sandrews pergunta se Duncan, do Cavaleiro Andante, foi pai de uma família, se a família existe na época dos livros, por que Aemon Targaryen não apareceu na história, e se Dany tem algum parente em Lys por causa do exílio de Aerion Chamaviva.]
Martin: As respostas para (i) e (ii) vão ter que esperar até que eu escreva mais histórias de Dunk e Egg, ou possivelmente até volumes posteriores em AS CRÔNICAS DE GELO E FOGO.
(Muitas Perguntas. Assim Falou Martin. Geloefogo.com, originalmente em Westeros.org. 14 de outubro de 1998.)

Aparentemente ele foi gradualmente passando a considerar essa ideia, porém, e alguns meses mais tarde o tom já foi diferente:

[ALANMAC perguntou se algum dos descendentes de Dunk aparecem em As Crônicas de Gelo e Fogo]
Martin: Oh, talvez.
(Descendentes de Dunk. Assim Falou Martin. Geloefogo.com, originalmente em Westeros.org. 7 de janeiro de 1999.)

Essa resposta, por mais curta que seja, já parecia indicar que Martin via com bons olhos a ideia de incluir algum descendente de Duncan na série principal. No ano seguinte, durante a turnê de autógrafos de A Tormenta de Espadas, a coisa ficou mais séria:

Tomei coragem para deixar escapar uma perguntinha de Gelo e Fogo, que era se encontraríamos algum descendente de Dunk nas Crônicas. Ele disse que sim.
(Mysterious Galaxy Signing. So Spake Martin. Westeros.org. 8 de novembro de 2000. Tradução minha.)

Desta vez a resposta foi bem direta e não deixou dúvidas: sim, encontraríamos algum descendente de Sor Duncan em As Crônicas de Gelo e Fogo. Ainda havia a dúvida, porém, se isso já havia ocorrido nos livros publicados ou se só teria lugar nos volumes futuros. Anos mais tarde, essa dúvida foi sanada no mínimo quanto a O Festim dos Corvos:

Perguntei se ele algum dia iria dizer qual personagem é descendente de Dunk. Recebi uma resposta meio azeda, “Dei uma dica bem forte no livro novo”, ao que respondi timidamente “É, mas eu li muito rápido, em três dias” Eu disse a ele que suspeitava de Brienne, mas que achava que ela era muito óbvia e que ele seria mais sutil, e ele disse “Você acha?”. Malandro reticente.
(US Signing Tour. So Spake Martin. Westeros.org. 10 de novembro de 2005. Tradução minha.)

A partir daí as coisas mudaram de figura, porque os leitores ficaram ainda mais ávidos quanto à questão e passaram a vasculhar o Festim mais especificamente. Ao longo dos anos, tornou-se uma “verdade não-confirmada” no fandom que a personagem em questão seria Brienne de Tarth (por motivos que abordaremos mais adiante). Em 2016 veio a confirmação: durante uma sessão de leitura na Balticon, GRRM foi perguntado se seria explicado como Brienne descende de Duncan, e respondeu que “sim, no momento certo“.

Os (possíveis) descendentes

Agora que já sabemos que há descendentes de Duncan em As Crônicas de Gelo e Fogo, e que pelo menos um deles pode ser encontrado em O Festim dos Corvos, vamos investigar quem seriam os principais candidatos, com base no texto dos livros. Antes de começarmos, é bom lembrarmos de algumas das principais características de Dunk.

A enorme estatura e a grande força física são dois atributos notáveis do cavaleiro à primeira vista. Duncan, que nasceu na Baixada das Pulgas, em Porto Real, foi criado por um cavaleiro andante chamado Arlan de Centarbor, que, embora fosse um bom senhor, costumava também fazer pouco da inteligência de seu escudeiro em certos momentos. Isso se reflete na personalidade humilde de Dunk, que quando se vê falhando em alguma tarefa lembra-se das palavras de Sor Arlan. Ele também é muitas vezes inocente e ingênuo, embora também obstinado, corajoso e caridoso.

Em muitos debates sobre esse assunto nos fóruns e sites de discussão, alguns leitores mencionam que Martin teria dito certa vez que existem quatro descendentes de Dunk em As Crônicas de Gelo e Fogo, e muitas vezes até tentam especular quem seriam eles com base nesse número. No entanto, não consegui de forma alguma encontrar na web alguma fonte primária de George dizendo isso, motivo pelo qual não tomarei essa alegação como verdadeira. Pelas falas de Martin não é possível determinar ao certo quantos descendentes de Duncan há nos livros, apenas que com certeza um existe.

Hodor e Bran. Arte: Miguel Regodón

Hodor

Um dos candidatos a ter em Duncan um ancestral é Walder, o simplório e muito alto cavalariço de Winterfell a quem todos chamam de Hodor. Desde A Guerra dos Tronos, o leitor já sabe que Hodor descende de outra figura emblemática de Winterfell: ninguém menos que a Velha Ama, que é sua bisavó.

Até o momento não há outras informações sobre a família de Hodor ou da Velha Ama, mas uma visão de Bran em A Dança dos Dragões pode indicar a relação deles com Duncan. Após ingerir a pasta de represeiro – que muitos acreditam ter também sangue de Jojen Reed, mas isso é assunto para outro artigo – e ter seus poderes de vidente verde potencializados, Bran experimenta uma série de visões pela árvore-coração de Winterfell.

Entre as visões, que aparecem em rápida sucessão, da mais recente para a mais antiga, o menino assiste ao pai Eddard em oração diante do represeiro, um menino e uma menina brincando de combate com pedaços de pau (que se acredita serem Benjen e Lyanna), e na sequência:

Depois disso, os vislumbres vieram cada vez mais rápidos, até Bran se sentir perdido e enjoado. Não viu mais seu pai, nem a menina que se parecia com Arya, mas uma mulher em gravidez adiantada emergiu nua e pingando da lagoa negra, ajoelhou-se diante da árvore e implorou aos deuses por um filho que a vingasse. Então veio uma garota de cabelos castanhos, esguia como uma lança, que ficou na ponta dos pés para beijar os lábios de um jovem cavaleiro tão alto quanto Hodor.
(A Dança dos Dragões. Capítulo 34, Bran III. Tradução de Marcia Blasques. Negrito meu.)

Nos três contos já publicados, o cavaleiro andante ainda não viajou por terras nortenhas, mas George R. R. Martin já comentou algumas vezes que iniciou a escrita de um quarto conto que se passaria no castelo dos Stark.  O título provisório dessa história seria The She-Wolves of Winterfell (“As Lobas de Winterfell”), e ela seria publicada na antologia Mulheres Perigosas, mas Martin acabou não terminando o conto a tempo e ele foi substituído por A Princesa e a Rainha, um excerto do material de história imaginária que posteriormente apareceu em versão completa em Fogo & Sangue.

As evidências para a relação entre Hodor e Duncan são circunstanciais, é verdade, mas combinam com o modo de Martin de dar pistas. Dada a menção a um cavaleiro e o fato de que essa visão cronologicamente poderia coincidir com uma época em que Duncan está vivo, acredita-se que ele seria a figura que está beijando a jovem esguia diante do represeiro. A partir daí se faz, através da comparação feita por Bran da altura do homem com a de Hodor, uma ligação com este personagem, via Velha Ama (que também estaria viva à época da visão).

Grenn, por Andreia Ugrai. © Fantasy Flight Games.

Grenn

Outro personagem residente do Norte à época dos eventos de As Crônicas de Gelo e Fogo também pode ser um descendente de Dunk, mas este por um embasamento diferente. Grenn, um recruta que entra para Patrulha da Noite com Jon Snow e Sam Tarly, tem algumas características semelhantes ao cavaleiro andante que viveu mais ou menos 100 anos antes.

O texto dos livros não informa a origem geográfica ou o passado de Grenn, mas a impressão geral que Jon Snow tem dele, pelo menos à primeira vista, é a de que ele é lento e desajeitado. Os colegas patrulheiros com frequência fazem piadas com seu aspecto e a aparente lentidão de raciocínio, características que Duncan, em seus contos, também diz aplicarem-se a si mesmo.

A maior evidência, porém, está em uma piada recorrente que Pyp faz sobre Grenn:

– Os Outros ficaram com a sua bota, Matador?
Ele também?
– Foi a lama. Não me chame disso, por favor.
– Por que não? – Grenn parecia honestamente surpreso. – É um bom nome, e arranjou-o com justiça.
Pyp costumava provocar Grenn por ter a cabeça dura como a muralha de um castelo, portanto Sam explicou pacientemente.
– É só uma maneira diferente de me chamarem de covarde – disse, apoiado na perna esquerda e esforçando-se para enfiar o pé direito novamente na bota lamacenta. – Estão caçoando de mim, da mesma maneira que caçoam do Bedwyck quando o chamam de Gigante.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 33, Samwell II. Tradução de Jorge Candeias. Negrito meu.)

Pode se tratar apenas de uma expressão comum em Westeros, mas ela é fortemente associada a Duncan. Sempre que julga que fracassou em algo, ele se lembra de como Sor Arlan de Centarbor, seu falecido mestre, dizia que ele tinha a cabeça tão dura quanto a muralha de um castelo. A expressão é repetida nos contos de Dunk & Egg nada menos que 19 vezes.

O mais interessante é que a menção a Pyp se referir a Grenn dessa maneira só surge a partir de A Tormenta de Espadas, publicado em 2000. A data coincide com a época em que Martin passou a responder “sim” quando perguntado se seria possível encontrar descendentes de Duncan nas Crônicas.

Paul Pequeno e outro patrulheiro. Arte: Paolo Puggioni. © Green Ronin Publishing

Paul Pequeno

O Norte ainda esconde outro patrulheiro com um caso similar ao de Grenn: Paul Pequeno. Suas duas características mais notáveis são ser um bocado simplório intelectualmente e sua enorme estatura. Ele faria parte do motim organizado por Chett e outros patrulheiros contra Jeor Mormont, não tivesse antes sido morto por um Outro e transformado em uma criatura.

Enquanto os rebeldes planejam a insurreição, em que o papel de Paul seria o de assassinar o próprio Senhor Comandante, e o seguinte diálogo tem lugar:

– Chett – disse Paul Pequeno enquanto avançavam penosamente por uma trilha pedregosa, aberta por animais entre árvores-sentinela e pinheiros marciais –, e o pássaro?
– De que merda de pássaro você está falando? – A última coisa de que precisava agora era de um cabeça oca perguntando de um pássaro.
– O corvo do Velho Urso – disse Paul Pequeno. – Se o matarmos, quem vai dar comida ao pássaro?
– Quem liga pra isso? Mate o pássaro também, se quiser.
– Não quero fazer mal a pássaro nenhum – disse o enorme homem. – Mas aquele é um pássaro que fala. E se ele contar a alguém o que fizemos?
Lark, o homem das Irmãs, soltou uma gargalhada.
Paul Pequeno, cabeça-dura como a muralha de um castelo – caçoou.
– Fica quieto – disse Paul Pequeno, num tom que denotava perigo.
(A Tormenta de Espadas. Prólogo. Tradução de Jorge Candeias. Negrito meu.)

Temos novamente, portanto, o caso de um gigante com fama de pouco inteligente sendo chamado pela expressão característica de Duncan.

Por acaso ou não, em uma busca das ocorrências da expressão “thick as a castle wall” (“cabeça dura como a muralha de um castelo”) em todos os livros já publicados, os resultados, além das 19 menções de Duncan, são apenas em referência aos personagens citados aqui, o que aumenta ainda mais a possibilidade de se tratar realmente de uma pista de GRRM.

Brienne de Tarth. Arte: C. Griffin. © Fantasy Flight Games.

Brienne de Tarth

Por último, Brienne de Tarth, cujo caso já passou do status de teoria, já que houve confirmação pelo próprio George R. R. Martin. Ainda assim é interessante sabermos quais foram as dicas que ele deixou para que os leitores descobrissem que ela tem um ancestral em Duncan. Os indícios mais fortes, como o próprio autor disse durante uma sessão de autógrafos de O Festim dos Corvos, estão neste volume.

No quarto livro, Brienne é enviada por Jaime Lannister em busca de Sansa Stark, para que ele cumprisse sua promessa a Catelyn. Além da espada de aço valiriano Cumpridora de Promessas e uma carta assinada pelo Rei Tommen, Jaime deixa para ela um escudo com as armas da Casa Lothston, que ele encontrara na armaria de Harrenhal. A fama dos Lothston, porém, não é das melhores: a Casa havia sido a sexta a governar Harrenhal, mas, como as anteriores, caíra em desgraça, como a donzela de Tarth não tarda a descobrir.

Quando ela chega a Valdocaso, o capitão do portão diz que sua irmã pode fazer uma nova pintura no escudo, para substituir o morcego da desgraçada casa. Brienne vai até a residência dela, onde pede a ela que pinte o escudo com armas que vira há anos na armaria de seu pai, em Tarth. Ao final do capítulo, ela reflete sobre o brasão em questão:

A irmã do capitão foi encontrá-la na sala comum, bebendo uma taça de leite e mel, com três ovos crus atirados lá para dentro.
– Fez um belíssimo trabalho – disse, quando a mulher lhe mostrou o escudo recém-pintado. Era mais um quadro do que um brasão propriamente dito, e vê-lo a levou de volta através de longos anos até a escuridão fria do armeiro do pai. Recordou como fizera passar as pontas dos dedos pela tinta lascada que se desvanecia, pelas folhas verdes da árvore e ao longo do trajeto da estrela cadente.
(O Festim dos Corvos. Capítulo 9, Brienne II. Tradução de Jorge Candeias. Negrito meu.)

Reprodução do escudo de Sor Duncan, o Alto, por Ed Curtis. Fonte: George R. R. Martin, site oficial.

Trata-se, obviamente, das armas de Sor Duncan, criadas por ele, Egg e Tanselle, evocando o momento em que Duncan estava escorado em um olmo à beira da lagoa e viu uma estrela cadente no céu, além da memória de Sor Arlan:

A garota olhou para o escudo e então para ele.
– O que quer pintado?
Dunk não havia pensado nisso. Se não o cálice alado do velho, então o quê? Sua cabeça estava vazia. Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo.
– Não… não tenho certeza. – Suas orelhas estavam ficando vermelhas, percebeu, infeliz. – Deve achar que sou um completo bobo.
Ela sorriu.
– Todos os homens são bobos, e todos os homens são cavaleiros.
– Que cor de tinta você tem? – ele perguntou, esperando que aquilo lhe desse alguma ideia.
– Posso misturar as tintas para fazer qualquer cor que desejar.
O marrom do velho sempre parecera sem graça para Dunk.
– O fundo deve ser da cor do pôr do sol – disse de repente. – O velho gostava do pôr do sol. E o símbolo…
– Um olmo – Egg falou. – Um grande olmo, como aquele na lagoa, com tronco marrom e galhos verdes.
– Sim – Dunk concordou. – Isso deve servir. Um olmo… mas com uma estrela cadente em cima. Pode fazer isso?
A garota assentiu.
– Dê-me o escudo. Vou pintá-lo esta noite mesmo e devolvo para você de manhã.
(O Cavaleiro Andante. In: O Cavaleiro dos Sete Reinos. Tradução de Marcia Blasques. Negrito meu.)

Isso não significa que as pistas se resumem ao quarto livro, porém. Como nos outros casos, a ideia de fazer de Duncan um ancestral de Brienne parece ter surgido a GRRM durante a escrita de A Tormenta de Espadas. Mais uma vez, a fala de Sor Arlan a Dunk é repetida:

– Isso foi indigno – murmurou. – Fui estropiado e estou amargo. Perdoe-me, garota. Protegeu-me tão bem quanto qualquer homem poderia proteger, e melhor do que a maioria.
Ela enrolou sua nudez numa toalha.
– Está zombando de mim?
Aquilo voltou a enfurecê-lo.
Terá uma cabeça tão dura como a muralha de um castelo? Isso foi um pedido de desculpas. Estou farto de lutar com você. O que diz de fazermos uma trégua?
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 37, Jaime V. Tradução de Jorge Candeias. Negrito meu.)

O fato de essa fala ser usada também com Brienne se torna ainda mais interessante à luz da confirmação de sua ascendência por GRRM. Acaba por emprestar força à ideia de que nas outras ocorrências dela, com os outros personagens, tratava-se mesmo de uma pista deixada pelo autor, e não apenas a repetição de uma expressão comum em Westeros (embora habilmente funcione a esse nível também).

O caso de Brienne é ainda mais interessante por se tratar de uma casa nobre, ao contrário dos outros candidatos a descendentes, pois acaba por significar a bastardia da linhagem da Casa de Tarth, ainda que esse fato não seja público em Westeros. Duncan nunca se casou, e depois foi nomeado para a Guarda Real, chegando ao cargo de Senhor Comandante, que ocupou até a morte. Isso significa que a união dele com alguma mulher Tarth foi extraconjugal.

O que não sabemos é se essa Tarth já era casada, o que significaria que a paternidade de um eventual filho seria publicamente atribuída ao marido, ou se era solteira, o que resultaria em uma criança publicamente bastarda (que poderia ou não ser posteriormente legitimada). Como George já disse que no “momento certo” veremos a explicação de como Brienne descende de Duncan, podemos esperar algum esclarecimento quanto a isso.

Outros?

Não sabemos quantos seriam os descendentes de Duncan em Westeros e nos livros das Crônicas, mas é possível que outros existam também (é claro, presumindo que os citados realmente o são). Alguns candidatos frequentemente citados entre os leitores são personagens famosos por sua estatura, como os irmãos Gregor e Sandor Clegane, por exemplo.

Não há nenhum argumento que de fato impeça que outros personagens também sejam descendentes de Duncan, mas tampouco existem mais evidências nesse sentido como há para os quatro personagens mencionados anteriormente. No caso dos citados acima, além das coincidências físicas, as personalidades deles também são coerentes com a de Duncan, o que também seria uma forma de o autor deixar pistas para seus leitores.

E você, tem mais algum candidato a descendente de Duncan a propor? Considera que os argumentos elencados aqui não são suficientemente fortes? Compartilhe, discuta e debata nos comentários. Até mais!


O Cavaleiro dos Sete Reinos, coletânea que inclui os três contos de Dunk e Egg já publicados, pode ser adquirida por R$ 24,90 na Amazon.

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Um segredo da última cena de ‘Gelo & Fogo’ na HQ de ‘A Game of Thrones’ https://www.geloefogo.com/2019/04/um-segredo-da-ultima-cena-de-gelo-fogo-na-hq-de-a-game-of-thrones.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=um-segredo-da-ultima-cena-de-gelo-fogo-na-hq-de-a-game-of-thrones https://www.geloefogo.com/2019/04/um-segredo-da-ultima-cena-de-gelo-fogo-na-hq-de-a-game-of-thrones.html#comments Wed, 17 Apr 2019 22:50:25 +0000 https://www.geloefogo.com/?p=98733 Daniel Abraham, roteirista da graphic novel de A Guerra dos Tronos, revelou que Martin lhe contou um segredo sobre o fim dos livros, e ele está na HQ.

O post Um segredo da última cena de ‘Gelo & Fogo’ na HQ de ‘A Game of Thrones’ apareceu primeiro em Gelo & Fogo.

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HQs de A Guerra dos Tronos
Capas e quadros das HQs de A Guerra dos Tronos. Arte: Tommy Patterson e Mike S. Miller

As Crônicas de Gelo e Fogo são adaptadas para os quadrinhos desde 2011, ano da primeira edição de A Guerra dos Tronos no formato graphic novel. Um fato relacionado com essa HQ que nem todos conhecem, porém, é que ela esconde um segredo sobre o final dos livros, revelado por George R. R. Martin a Daniel Abraham, roteirista responsável pela adaptação.

Abraham, colaborador frequente de Martin, revelou que teve que retrabalhar uma passagem do livro, porque o autor disse que ela seria importante para a última cena de A Dream of Spring (“Um Sonho de Primavera”), último livro de As Crônicas de Gelo e Fogo. Desde então, a tentativa de descobrir qual seria essa passagem gerou muitos debates e discussões entre leitores em fóruns na Web.

Essa questão é interessante por si só, e se torna ainda mais diante do fato de que o fim de outra adaptação, esta para a TV, está chegando: no dia 19 de maio de 2019, o mundo conhecerá o final de Game of Thrones. Embora Martin já tenha dito que o final do show terá diferenças em relação aos livros, uma cena tão importante provavelmente também estaria na TV, não é? E será que a tal cena final também estará em GoT?

Que tal, então, analisarmos o que Abraham realmente disse a respeito, e buscarmos outras dicas que podem ajudar na investigação de qual seria essa misteriosa passagem sobre o fim da história? Acompanhe conosco essa pequena viagem.

A fala de Daniel Abraham

Daniel Abraham é um escritor de fantasia e ficção científica, que já foi indicado aos prêmios Hugo, Nebula e World Fantasy, e em conjunto com Ty Franck (que era assistente pessoal de Martin) assina a série de livros The Expanse, que também ganhou uma adaptação televisiva. Daniel tem um longo histórico de colaboração com George R. R. Martin.

Antes de roteirizar a graphic novel de A Guerra dos Tronos, Abraham fora responsável pela adaptação de Sonho Febril e O Troca-Peles (outras duas história de GRRM) para os quadrinhos também. Além disso, é coautor de Caçador em Fuga, em conjunto com George e Gardner Dozois, e participou do universo compartilhado de Wild Cards.

James S. A. Corey
Daniel Abraham (direita), com Ty Franck, seu colega no pseudônimo James S. A. Corey, autores de The Expanse. Ambos já trabalharam com GRRM. Foto: Wikimedia Commons.

Não é surpresa, portanto, que ele tenha sido o escolhido para roteirizar a graphic novel de As Crônicas de Gelo e Fogo, e que Martin tenha confiado a ele informações privilegiadas para esse trabalho. Daniel revelou a questão sobre a passagem específica incidentalmente, em uma entrevista ao CBR.com, depois de ser perguntado sobre o processo criativo de trabalhar com George na adaptação:

Conversei com George bastante no processo. Os maiores problemas que tivemos foram questões de continuidade. Existem coisas nessa história que só ele sabe, e que não são todas óbvias. Houve uma cena que tive que retrabalhar porque há uma fala em particular – e não dá para saber só de bater o olho – que é importante na última cena de A Dream of Spring. Para esse tipo de problema, não existe substituto para simplesmente falar com o próprio homem.

É fato sabido entre os leitores que muitos dos presságios e foreshadowing de toda a história estão em A Guerra dos Tronos. Elio García e Linda Antonsson comentaram a esse respeito, e também da própria situação envolvendo Abraham e a adaptação, em uma entrevista há alguns anos:

Sabemos que a primeira intenção de Martin era escrever uma trilogia, então devemos assumir que um terço das pistas que nos levam ao final estão no primeiro livro?

Elio M. García Jr: Quando ele estava terminando o primeiro livro, ele percebeu que não era uma trilogia, mas uma série de quatro livros, então até parte de A Fúria dos Reis foi escrita originalmente para A Guerra dos Tronos, mas quando ele começou o segundo livro, ele disse: “Espera, isto está ficando ainda mais longo!”, então ele parou por um instante e visualizou a história toda antes de decidir finalmente que haveria seis livros, embora agora, por um bom tempo, ele tenha dito sete. Ainda assim, você tem razão. Uma boa parte das pistas sobre várias coisas que acontecerão no final mesmo estão no primeiro livro. Por exemplo, Daniel Abraham fez uma série de histórias em quadrinhos adaptando A Guerra dos Tronos e tem uma coisa interessante que George disse a ele: “Você tem que manter essa frase porque essa frase é importante para o que acontece no final.

Linda Antonsson: A última cena mesmo… Então tem algo no primeiro livro que encontrará eco ali.

De qualquer forma, pela resposta de Abraham, observamos que ele não percebera a importância de uma passagem em especial, foi informado da relevância dela por Martin, e teve de retrabalhar a cena por essa razão. Isso significa, é claro, que o “segredo” em questão não é exclusivo da HQ, e está também no próprio livro de A Guerra dos Tronos. E aí começa a curiosidade: afinal, que cena é essa?

Critérios de busca

HQ A Guerra dos Tronos vol 1
Volume 1 da HQ de A Guerra dos Tronos

Para tentarmos investigar que fala seria essa, é bom dissecar a declaração de Daniel. A entrevista é de setembro de 2011, quando a primeira edição da graphic novel foi publicada. Ele, é claro, havia escrito os roteiros algum tempo antes, mas essa data revela que Abraham ainda não estava muito adiantado na adaptação. Isso significa que a passagem tem lugar no começo de A Guerra dos Tronos, e está no volume um ou dois da HQ.

É importante observar também que ele revela que é uma fala. Não é, então, um pensamento de algum personagem. Além disso, Abraham diz que a passagem não é especialmente notável à primeira vista (“e não dá para saber só de bater o olho”). Assim, pode ser uma fala bastante simples e aparentemente sem muita importância.

Isso não quer dizer, porém, que seja impossível descobrir qual é. Devemos levar em conta que essa é impressão de Abraham sobre a fala em questão. Pode ser que a fala já fosse objeto de atenção de fãs que já leram e releram os livros várias vezes e discutiram sobre eles online. De qualquer forma, existe um número limitado de falas na HQ em relação ao livro, e saber que uma delas tem essa importância já faz toda a diferença.

De qualquer forma, Daniel disse também que teve que retrabalhar a cena, e isso pode significar duas coisas diferentes. As possibilidades são que, no roteiro inicial (antes da intervenção de Martin), Abraham tivesse abordado a fala de forma que uma parte essencial dela fora perdida, ou pode ser que ele tivesse suprimido a passagem completamente.

Está em Game of Thrones?

Partindo um pouco para a especulação, existe a dúvida sobre se a fala está na série de TV ou não. A adaptação de Abraham para os quadrinhos aconteceu de forma independente de Game of Thrones. Na entrevista ao CBR ele deixa isso bem claro, dizendo:

Eu já estava com vários scripts quando a coisa da HBO saiu, e fico bastante satisfeito que já estivesse. Eu já havia tomado um monte de decisões que eram um pouco diferentes do que eles estavam fazendo, e essa distância é importante para mim. A série é um trabalho ótimo, e eu a admiro, mas meu trabalho não é adaptar uma série de TV. É abordar o livro original. É realmente onde está meu foco.

Acontece, porém, que se George fez questão de alertar Daniel Abraham para essa fala em especial, seria razoável presumir que ele faria o mesmo com David Benioff e D. B. Weiss, os produtores da adaptação televisiva. É claro que Martin nunca teve poder decisório em Game of Thrones e sempre atuou mais como um consultor, mas na primeira temporada a proximidade dele como a série era notadamente maior do que se tornou ao longo dos anos.

Essa questão é controversa nos fóruns, mas pessoalmente acredito que a fala está também na série de TV, seja por intervenção de Martin ou porque simplesmente os roteiristas não a excluíram (ou alteraram) desde o começo, como Abraham fizera. É bom lembrarmos que Benioff já disse que o terceiro “momento chocante” dos planos revelados por George R. R. Martin a ele e Weiss é do “final mesmo“.

Abraham e os finais

Outra informação que pode se relacionar com o mistério surgiu por acaso em 2014, quando Anne Groell, a editora de Martin na Bantam, participou de uma sessão de perguntas e respostas no Suvudu. Ela foi questionada se sabia o final da história, como os produtores de Game of Thrones, e respondeu o seguinte:

Não. O George é um sujeito bem reservado, e guarda bem seus segredos. Sei de algumas coisas de Os Ventos do Inverno, mas principalmente porque tivemos que encurtar alguns elementos do livro [A Dança dos Dragões] porque já estava ficando muito longo, e ele tinha que revelar alguns segredos, então pude ajudá-lo a redirecionar partes do enredo um pouco. Sei o ponto final da história de Bran — e Daniel Abraham, que vem adaptando a graphic novel de A Game of Thrones para mim, sabe onde Tyrion termina. (Tenho inveja disso!) […] Tive um almoço muito divertido com Daniel, em que nós claramente não contamos um ao outro o que sabíamos.

Essa revelação de Groell gerou um certo consenso nas discussões sobre a fala misteriosa, nos fóruns e no reddit, no sentido de que ela se relacionaria com Tyrion (fosse proferida por ele mesmo ou por outro personagem em diálogo com ele). Restringir o universo de falas possíveis apenas a cenas que envolvem um único personagem facilitaria muito a busca.

Acontece que existe outra declaração de Abraham, menos conhecida, que complica um pouco as coisas nesse sentido. No livro Além da Muralha (Leya, 2015), uma coletânea de ensaios de vários autores sobre As Crônicas de Gelo e Fogo, Abraham escreveu sobre a processo de adaptação da HQ, e diz o seguinte:

Mas As Crônicas de Gelo e Fogo não é uma série aberta. Ela tem uma conclusão para a qual se move e, de fato, a última sequência do último livro já foi decidida.

[…]

Para mim, o fato mais importante sobre As Crônicas de Gelo e Fogo é que elas irão acabar. Daenerys Targaryen terá uma última cena e uma última palavra. Graças à minha participação nesse projeto, conheço o destino de vários personagens principais, e tenho uma boa ideia do ponto final do enredo.

A primeira passagem revela que Daniel sabe mesmo sobre a última sequência do último livro, mas a segunda deixa claro que ele não sabe apenas o final de Tyrion, mas de vários dos personagens principais de As Crônicas de Gelo e Fogo. Assim, restringir a busca pela fala apenas a passagens que envolvam Tyrion não é realmente uma boa ideia.

Em outra entrevista, esta para o MTV Geek, ele deixa claro que sabe mesmo coisas sobre o final de uma forma geral, uma vez que isso foi necessário para poder escolher o que seria mantido ou cortado no processo de adaptação:

Quais foram alguns dos outros desafios de levar essa obra às páginas dos quadrinhos?

Daniel Abraham: Extrair spoilers de George. Houve ocasiões em que precisei comprimir algumas partes de ação ou reduzir o número de personagens em uma cena, de forma que a página não ficasse tão confusa de se olhar, mas para isso acontecer, eu preciso saber o que é crítico para o enredo e o que não é. Como resultado, eu sei algumas coisas sobre como a série termina, e o que algumas das profecias no texto significam, coisas que eu levaria um tiro se contasse.

Candidatas?

Tudo bem, já vimos o que Abraham e outras pessoas disseram, mas afinal, que fala é essa? A verdade é que ninguém nunca chegou a uma conclusão definitiva sobre isso, embora muitas tenham sido sugeridas pelos fãs nas discussões online. Compilei aqui algumas passagens da HQ que imagino que possam estar relacionadas com a última cena de A Dream of Spring.

– Deveríamos regressar – insistiu Gared quando os bosques começaram a escurecer ao redor do grupo.

A primeira fala de todas em As Crônicas de Gelo e Fogo, do prólogo, e que foi reproduzida fielmente na adaptação da graphic novel. Se a história terminasse com um diálogo igual, mesmo que em circunstâncias não idênticas, isso poderia indicar uma natureza cíclica da história (que foi referenciada por Martin em alguns outros trechos). A cena, porém, foi alterada em Game of Thrones, e essa fala não é a primeira proferida na série de TV.

– Os invernos são duros – admitiu Ned. – Mas os Stark os suportarão. Sempre os suportamos.

Um diálogo entre Eddard e Robert Baratheon nas criptas de Winterfell. Os Starks são a primeira família apresentada em A Guerra dos Tronos, e não seria nada estranho que eles também protagonizassem também a última cena. O título do último livro trata a primavera como um sonho, e realmente seria um pouco estranho que o inverno chegasse e já terminasse ao fim da história, mesmo com a natureza inconstante das estações em Westeros. É uma frase bem marcante, porém, o que torna um pouco improvável que Abraham a ignorasse de início.

Costurará durante todo o inverno. Quando chegar o degelo da primavera, encontrarão seu corpo ainda com uma agulha bem presa entre os dedos congelados.

Um dos palpites favoritos dos leitores, pois poderia narrar metaforicamente todo o destino de Arya durante o inverno westerosi. A agulha a que Jon se refere nesta cena é realmente de costura, e só depois é que ele presenteia a irmã com a espada de mesmo nome, com a qual ela supostamente “costuraria” (mataria gente) durante o inverno. Um destino fatal para Arya também não seria exatamente inesperado. A fala, entretanto, também não está na série de TV.

Jaime sorriu.
– Espero que não esteja pensando em vestir o negro, querido irmão.
Tyrion soltou uma gargalhada.

Tyrion na Muralha? Não acho uma hipótese absurda. A descida de Tyrion a uma alma mais “obscura” e a tomada de atitudes mais moralmente questionáveis ficou notável em A Dança dos Dragões. Em Game of Thrones, embora ao invés disso ele tenha sido simplesmente relegado a um papel menos proeminente depois da falta dos livros, o destino dele na oitava temporada parece também não ser muito heróico (ou pelo menos não seria visto assim aos olhos do mundo). Só não sei se um destino de patrulheiro para Tyrion seria algo presente na última cena da história.

– Vou sentir sua falta, irmãzinha.
De repente, ela pareceu quase chorar.
– Queria que viesse conosco.
– Por vezes, estradas diferentes vão dar no mesmo castelo. Quem sabe?

Mais um diálogo entre Jon e Arya. Um reencontro dos Stark no futuro em Porto Real (para onde Arya se dirigia nesse momento) seria possível? Quem sabe? De qualquer forma, seria bem plausível que os lobos juntos – em qualquer “castelo” que fosse – fossem parte da última sequência de toda a história. É de se notar, porém, que houve uma pequena alteração do texto do livro para o quadrinho.

– Não quero mais histórias – Bran exclamou, com petulância na voz. […] – Detesto suas histórias estúpidas.
A velha mulher mostrou-lhe um sorriso sem dentes.
– Minhas histórias? Não, meu pequeno senhor, minhas, não. As histórias são, antes de mim e depois de mim, e antes de você também.
[…]
– Não me interessa saber de quem são as histórias – Bran respondeu –, eu as detesto – […]
– Sei uma história sobre um garoto que detestava histórias – a Velha Ama insistiu com seu sorrisinho estúpido, enquanto as agulhas se moviam, clic, clic, clic, e Bran sentiu-se capaz de gritar com ela.

É o que diz a Velha Ama a Bran, pouco antes da famosa fala “Ah, minha querida criança de verão…”. O primeiro capítulo de A Guerra dos Tronos é de Bran, se excetuarmos o prólogo, e também foi o primeiro que veio à mente de George R. R. Martin quando ele começou a escrever a série. Bran é, também, dono do arco mais mágico da história, que se relaciona com os “grandes mistérios” de gelo e fogo.

Sempre tendi a acreditar que um capítulo dele é que será o último em As Crônicas de Gelo e Fogo, ou algo que no mínimo faça referência a ele. Quem sabe a Velha Ama não sobrevive a todos os eventos e conta uma história sobre um garoto que detestava histórias, talvez a um novo Brandon? Ou para o próprio Bran?

Escrevendo o artigo e repassando a HQ cena por cena, essa passagem me convenceu mais do que qualquer das outras (até pela configuração do quadrinho, e por ser uma fala aparentemente bem bobinha). Por acaso, foi durante durante a pesquisa, quando até já tinha listado a fala como uma das possíveis, que encontrei a entrevista de Daniel no MTV Geek (que citei acima), e há outra resposta nela muito interessante:

Quais foram alguns dos personagens para os quais você foi atraído durante a escrita do livro [de histórias em quadrinhos]?

Daniel Abraham: Escolha difícil. Gostei de todos os personagens como leitor, anos antes de começar a adaptação. Quem não gosta de Jon ou Dany ou Tyrion? A coisa que adaptar os livros me fez apreciar mais foram os personagens menores. A Velha Ama, por exemplo, é na verdade uma personagem misteriosa e fascinante, mas ela é parte de uma grande tapeçaria. É fácil deixá-la passar, e pessoas como ela.

Acredito, assim, que a “passagem secreta” que se relaciona com a última cena de Um Sonho de Primavera, possivelmente em um capítulo de Bran, esteja nesse diálogo entre ele e a Velha Ama, em que ela fala sobre a natureza das histórias e como elas existem e são contadas independentemente do tempo, talvez especialmente sobre uma história que começou com um garoto que detestava histórias, As Crônicas de Gelo e Fogo.

Talvez descubramos no dia 19 de maio, com o fim de Game of Thrones. Ou não, e aí teremos que esperar até que George escreva e publique A Dream of Spring. Aguardemos… Enquanto isso, nossos comentários estão abertos para discussões e debates sobre essa misteriosa fala.


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