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Informações sobre a obra de George R. R. MartinSat, 22 Oct 2022 01:29:38 +0000pt-BR
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1 https://wordpress.org/?v=6.1.6140837471Showrunners de ‘House of the Dragon’ explicam origem da profecia de Aegon Targaryen
https://www.geloefogo.com/2022/08/showrunners-comentam-revelacao-bombastica-do-primeiro-episodio.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=showrunners-comentam-revelacao-bombastica-do-primeiro-episodio
https://www.geloefogo.com/2022/08/showrunners-comentam-revelacao-bombastica-do-primeiro-episodio.html#commentsMon, 29 Aug 2022 14:14:09 +0000https://www.geloefogo.com/?p=109397Em meio a toda a repercussão do retorno do mundo de Westeros às telas com “The Heirs of the Dragon”, […]
Em meio a toda a repercussão do retorno do mundo de Westeros às telas com “The Heirs of the Dragon”, primeiro episódio de House of the Dragon, a cena em que Viserys I Targaryen revela à filha Rhaenyra uma profecia de Aegon I, o Conquistador, sobre o futuro da humanidade e o papel de sua linhagem nela foi certamente a mais discutida entre os fãs, particularmente os leitores das obras de George R. R. Martin, diante do fato de que Fogo & Sangue, livro que a série adapta, não faz menção dela. Na última semana, os showrunners Ryan Condal e Miguel Sapochnik comentaram o assunto e explicaram como e por que essa profecia foi incluída em House of the Dragon.
Viserys diz o seguinte à filha:
Nossos registros históricos nos contam que Aegon olhou para o lado do Água Negra a partir de Pedra do Dragão e viu uma terra rica, pronta para ser capturada. Mas não só a ambição foi o que o motivou a conquistar. Foi um sonho. E exatamente como Daenys previu o fim de Valíria, Aegon previu o fim do mundo dos homens. Ele começará com um inverno terrível, que soprará do norte distante. Aegon viu uma escuridão absoluta sendo carregada por esses eventos. E o que quer resida ali, destruirá o mundo dos vivos. Quando esse Grande Inverno chegar, Rhaenyra, toda Westeros deverá combatê-lo. E se o mundo dos homens quiser sobreviver, um Targaryen deve estar sentado no Trono de Ferro. Um rei ou rainha fortes o bastante para unir o reino contra o frio e a escuridão. Aegon chamou seu sonho de “A Canção de Gelo e Fogo”. Esse segredo é passado de rei para herdeiro desde a época de Aegon. Agora você tem de me prometer carregá-lo e protegê-lo. Prometa-me, Rhaenyra. Prometa.
O motivo da fala gerar tanta polêmica é que nada disso está presente nos livros publicados por George R. R. Martin, muito menos tão abertamente e em tantos detalhes. Embora o próprio autor tivesse aludido a algo semelhante fora dos livros, mencionando como “especulação de muita gente” a ideia de Aegon ter previsto uma ameaça vinda do Norte e isso ter motivado a Conquista, num vídeo de marketing de 2018 para promover a publicação de Fogo & Sangue, o livro propriamente dito não faz menção a isso.
Isso por si só já seria motivo para questionamentos, mas eles surgiram também por conta das dificuldades logísticas que isso representaria, diante do que se sabe sobre a história dos Targaryen e sua nem sempre pacífica e tranquila sucessão. Quanto a Aegon ter passado o segredo para Aenys, seu herdeiro, não haveria problemas, mas como Maegor, que efetivamente tomou o Trono à força teria ficado sabendo da profecia? Maegor não teve herdeiros, sendo sucedido por Jaehaerys I, que era filho de Aenys, mas não seu herdeiro designado (que era Aegon). Em menos de 50 anos de dinastia, a transmissão do tal segredo já causava mais problemas e dúvidas, o que deixou diversos fãs reticentes quanto à questão.
Mesmo antes da estreia do primeiro episódio, porém, Ryan Condal já tinha sido rápido em tentar tranquilizar os leitores de que não estaria cometendo nenhuma “heresia” quanto ao cânone de As Crônicas de Gelo e Fogo (nas palavras dele mesmo). Em entrevista à Variety, que contou também com a presença de George R. R. Martin, Condal disse que aquilo vinha do autor dos livros. George não negou essa afirmação, dando respostas mais vagas sobre profecias em seus livros publicados e dando exemplos de Targaryens em suas obras que têm contato com elas, e dizendo que a questão será mais abordada nos livros seguintes.
O que não tinha ficado claro, no entanto, era o que exatamente tinha “vindo de George”. Seria toda a cena entre Viserys e Rhaenyra? Seria o envolvimento da adaga de osso de dragão e aço valiriano no segredo? Seria o legado transmitido de rei para herdeiro? Martin teria ativamente dado a ideia dos produtores inserirem isso na série? Após a exibição do episódio, porém, ficou claro que nada disso era o caso.
Ainda no Inside the Episode, featurette da HBO disponibilizado no YouTube logo após a exibição do episódio, em que os produtores comentam cenas e decisões da série, eles já haviam indicado que isso havia sido incluído por eles mesmos. Sapochnik diz o seguinte:
Viserys é obcecado com a ideia de que o fim do mundo pode estar logo ali na esquina. Sentimos que essa seria uma ótima maneira de acrescentar um certo peso à ideia de Rhaenyra se tornar rainha. Ao invés de querer fazer isso por ambição, ela estaria recebendo uma responsabilidade de unir todo mundo para combater o iminente problema dos Caminhantes Brancos — que, na verdade, sabemos que só apareceriam dali a 170 anos.
Condal completa:
Essa ideia de Aegon, que acreditava na Canção de Gelo e Fogo e acreditava na profecia que uniria o reino contra o frio e a escuridão vindos do Norte, ter imbuído seu segredo no aço da adaga valiriana… Nós achamos que seria uma maneira legal de ligar as duas séries [House of the Dragon e Game of Thrones].
Por essas falas já fica claro que havia uma intenção ativa por parte dos produtores de usar essa profecia para acrescentar uma motivação à personagem de Rhaenyra, e também uma motivação externa (ligar mais diretamente as duas séries da HBO) ao incluir a profecia na adaga que viria a causar a ruína do Rei da Noite da TV.
Na segunda-feira, 21, porém, as coisas ficaram ainda mais claras. Em matéria de Kim Renfro para a Insider, Condal revela que o que exatamente veio de George R. R. Martin não foi toda a profecia, mas apenas a menção a Aegon ser um “sonhador”, e todo o resto foi realmente inventado por ele e Sapochnik para a nova série. Ele explicou:
O detalhe que George nos deu bem no início do desenvolvimento da história foi que o próprio Aegon, o Conquistador, era um sonhador, e que foi isso que motivou a conquista. Ele mencionou isso casualmente na conversa, como geralmente faz com informações gigantes como essa.
Isso realmente mudou nossa forma de ver o reinado Targaryen e tudo que ele representava. O fato de Aegon ter esse conhecimento — ou acreditar ter, porque era só um sonho, não se sabe se vai acontecer —, mas ele ter empreendido a Conquista pensando ser um problema iminente. A ironia dramática disso é que sabemos que, com o intervalo de 300 anos, demora um bocado para essa profecia se tornar realidade.
Pegamos a ideia do George e a alteramos dramaticamente para House of the Dragon. A ideia de que em algum ponto na vida de Aegon, quando ele ficou mais velho, ele teria percebido que os Caminhantes Brancos não viriam “jantar” durante a vida dele.
Resolvemos que se ele acreditava nisso o bastante pra conquistar Westeros, certamente acreditaria o bastante pra passar adiante. Tornamos isso o legado que os Targaryen passam de rei a herdeiro, como lembrete de que o Trono é um privilégio e um dever, uma responsabilidade. É preciso melhorar o reino, fortalecê-lo e uni-lo mais, e não usá-lo para perseguir fins egoísticos. Vamos ver como isso se sustenta à medida que nossa história se desenvolve.
Fica bastante claro, assim, que George mencionou de passagem uma novidade que alterou a percepção dos produtores quanto ao próprio período (pseudo-)histórico que retratariam na TV, e que eles criaram uma mitologia própria envolvendo essa revelação a partir daí (provavelmente pelos motivos mencionados no vídeo do Inside the Episode). E é basicamente isso o que eles reiteram numa entrevista com o Den of Geek, também publicada no dia 21. Condal explica:
Isso veio do George. Não acho que teríamos mergulhado nisso sem falar com o George a respeito, mas foi uma coisa que o George, como ele com frequência faz, simplesmente mencionou casualmente bem no início do desenvolvimento da história… Ele nos contou que Aegon era um sonhador, e que foi essa a razão para ele decidir conquistar, e unir, Westeros. Ele é lembrado como conquistador, mas na verdade queria ser um unificador, e essa é a razão para ter abordado as coisas como abordou.
George é bem reservado quanto a essa parte da história e o que as pessoas sabem, e é claro que se isso é um segredo, os cronistas que escreviam [as fontes históricos de] Fogo & Sangue não necessariamente saberiam a respeito. Mas, sim, manter isso vivo, no mínimo até essa geração, foi algo muito atraente pra mim e pro Miguel, porque tinha uma ressonância. Estávamos procurando formas de, a despeito de haver 170 anos de história entre elas, criar uma ressonância com a série original. Não temos nenhum personagem que pode fazer essa ponte, não tem ninguém que dá pra surgir ali. Não vai haver uma jovem Velha Ama na série, 170 anos é muito tempo… Então a mitologia central da série original, manter aquilo vivo e a ideia de que alguém estivesse ciente daquilo, ou visto aquilo como uma visão 300 anos antes de acontecer, nos atraiu muito, e deu um ar bastante épico e apropriado para o mundo de Game of Thrones.
Basicamente, portanto, expande na explicação do Inside the Episode e confirma o dito à Insider: Sapochnik e ele extrapolaram a informação mencioanda de passagem por GRRM com o intuito de fazer uma ligação com a série principal. Sapochnik também fez comentários na mesma entrevista:
Queríamos manter viva a ideia de espiritualidade que havia na série original. Havia mitos, havia folclore, havia histórias, aranhas de gelo do tamanho de cães, etc., etc. Mas não temos essas coisas, então precisávamos achar algo em que pudéssemos sustentar a espiritualidade, que desempenha um papel tão grande. O destino e a sina são uma parte enorme essa história.
É bom lembrar, ainda, que George R. R. Martin não tem controle criativo nas séries das HBO que adaptam suas obras para a televisão, como ele mesmo reiterou em entrevista recente ao History of Westeros. Embora esteja envolvido na série como “produtor executivo”, ele não tem poder de veto nos roteiros (o que, na verdade é algo muito raro em Hollywood), que, ao final, ficam mesmo a cargo dos showrunners:
Não tenho nenhum controle criativo. Isso é a coisa mais difícil de se conseguir em Hollywood. Não importa qual seja o projeto, seja ele um filme ou pro cinema. É muito raro isso ser concedido.
É bem mais fácil Hollywood te dar mais dinheiro do que dar controle criativo. Você pode chegar nas negociações e dizer: “Sim, agradeço por vocês me pagarem 8 milhões de dólares, mas eu queria controle criativo também”. E aí eles dizem: “Que tal 10 milhões? Haha.” Eles preferem dar milhões de dólares do que qualquer controle criativo.
[…]
O que tenho é influência. Tenho influência criativa, mas isso depende em grande parte do relacionamento entre mim e os showrunners e tal. Posso oferecer argumentos, posso argumentar e eles podem escutar, mas se eles decidirem não escutar, posso tentar persuadi-los. Não tenho poder para contratar ou demitir. Não tenho poder para ditar os rumos das coisas, mas o que tenho é: se eles me escutarem, posso ser bem persuasivo e conheço o material muito bem. Então tem isso, e isso sempre muda.
O que isso tudo significa, então? Que George R. R. Martin revelou concretamente, de passagem, uma informação nova para os showrunners de House of the Dragon sobre Aegon I ser um “sonhador” e isso ter motivado a Conquista dos Sete Reinos. Por sua vez, os produtores viram nessa revelação uma oportunidade de estabelecer uma ponte com Game of Thrones (algo que já queriam fazer), e trazer outras consequências para o roteiro, e por conta própria inseriram a ideia na nova série.
Pelas declarações de Condal, que mais de uma vez disse que Martin comentou sobre isso casualmente, o autor não sugeriu ativamente que isso fosse incluído na nova série, nem especificou todos os detalhes dessa profecia como ela foi retratada na TV (com a transmissão de um legado secreto, a gravação do segredo na adaga de aço valiriano e osso de dragão e tudo o mais).
George R. R. Martin disse que as profecias serão abordadas em mais detalhes nos livros futuros, mas é possível afirmar com um certo grau de certeza que haverá diferenças em relação ao que foi retratado em House of the Dragon, não só pelas falas de Condal, mas porque até um elemento aparentemente crucial para a questão na TV não tem nem de perto a mesma importância nos livros: a adaga de aço valiriano e osso de dragão.
O que acharam das explicações de Condal e Sapochnik para a inclusão da profecia na série? Deixem suas opiniões nos comentários!
Voltaremos com novas informações conforme novidades surgirem. A equipe do site comenta House of the Dragon semanalmente no podcast Canções de Gelo e Fogo.
]]>https://www.geloefogo.com/2022/08/showrunners-comentam-revelacao-bombastica-do-primeiro-episodio.html/feed1109397George R. R. Martin contrai COVID mas passa bem
https://www.geloefogo.com/2022/07/george-r-r-martin-contrai-covid-mas-passa-bem.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=george-r-r-martin-contrai-covid-mas-passa-bem
https://www.geloefogo.com/2022/07/george-r-r-martin-contrai-covid-mas-passa-bem.html#commentsThu, 28 Jul 2022 13:38:15 +0000https://www.geloefogo.com/?p=109273O escritor George R. R. Martin anunciou as pressas na última quarta-feira, 27, que contraiu COVID-19. Martin precisou cancelar compromissos […]
O escritor George R. R. Martin anunciou as pressas na última quarta-feira, 27, que contraiu COVID-19. Martin precisou cancelar compromissos e aparições publicas, mas revela que passa bem.
Na semana passada, seus assistentes noticiaram no Not a Blog que o escritor não iria à San Diego Comic Con, por precaução à onda iminente de coronavírus. Surpreendentemente, Martin na verdade foi ao evento, e até participou do painel da House of the Dragon, embora tenha cancelado a sessão pública de autógrafos. Agora está claro que a viagem a San Diego aconteceu devido ao fato de que Martin tinha planos de ir para Los Angeles na mesma época. Infelizmente, esses planos acabaram tendo que ser cancelados, pois ao chegar em Los Angeles, o escritor testou positivo para COVID. Ele entrou em auto-isolamento em um hotel e não compareceu ao evento de pré-estreia de ‘House of the Dragons’ com a exibição do primeiro episódio da série para uma plateia selecionada. Martin também precisou cancelar a presença na apresentação do curta Night of the Cooters, filme que produziu, no LA International Shorts Festival.
A esposa Parris McBride e os assistentes de Martin também entraram em auto-isolamento por precaução. Martin foi vacinado, e recebeu duas doses de reforço.
Mas há uma boa notícia: dias antes da estreia oficial de ‘House of the Dragons’, que acontece em 21 de agosto, Martin irá realizar uma sessão de exibição do episódio piloto da nova série em seu cinema em Santa Fé, o Jean Cocteau.
Desejamos a ele uma rápida e gentil recuperação.
Clique aqui para assistir ao trailer de ‘House of the Dragons‘
]]>https://www.geloefogo.com/2022/07/george-r-r-martin-contrai-covid-mas-passa-bem.html/feed2109273O nascer da neblina: magia e ciência no prólogo de ‘O Festim dos Corvos’
https://www.geloefogo.com/2021/10/o-nascer-da-neblina-magia-e-ciencia-no-prologo-de-o-festim-dos-corvos.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-nascer-da-neblina-magia-e-ciencia-no-prologo-de-o-festim-dos-corvos
https://www.geloefogo.com/2021/10/o-nascer-da-neblina-magia-e-ciencia-no-prologo-de-o-festim-dos-corvos.html#commentsThu, 07 Oct 2021 23:04:39 +0000https://www.geloefogo.com/?p=107739Ainda em 2018, publiquei um texto sobre o prólogo de A Fúria dos Reis, analisando a relação de Cressen e Stannis […]
Ainda em 2018, publiquei um texto sobre o prólogo de A Fúria dos Reis, analisando a relação de Cressen e Stannis e as lacunas deixadas pelo narrador que focaliza a história no olhar do velho meistre. Para além da interessante discussão gerada por esse assunto, surgiram várias sugestões de que seguíssemos com uma série de textos sobre os prólogos e epílogos dos livros. Decidi ouvi-las, e, na sequência, publiquei uma leitura do epílogo de A Tormenta de Espadas, discutindo representações da vingança. Agora, continuando a essa série nada ordenada de análises, vamos discutir o prólogo de O Festim dos Corvos.
É um capítulo cheio de mistérios, conspirações, suspeitas sobre a identidade de personagens, mas esses elementos já foram debatidos à exaustão. O foco desse texto é um elemento bem específico, e por vezes, despercebido: a neblina que ronda Pate. Quero discutir o que ela pode nos indicar sobre o estilo de escrita de Martin, remetendo a tradições literárias como o romantismo e sua visão sobre a fantasia. Mas para isso, primeiro precisamos lembrar que a Cidadela não é um lugar que tem a magia e uma visão romântica de mundo em muito boa conta.
Meistres e a ciência
A Cidadela é provavelmente a única instituição nos moldes de uma universidade em Westeros. Enquanto as universidades da Idade Média europeia eram extremamente vinculadas à religião, priorizando estudos em retórica, dialética e teologia, a formação dos meistres vai desde escritos históricos até técnicas de medicina. Afinal, existe uma finalidade específica para os estudos: ser apto a aconselhar um senhor em algum castelo dos Sete Reinos. Para isso, considera-se necessária uma gama de conhecimentos que dialogam com uma noção de ciência muito diferente daquela concebida pelos escolásticos.
Não é de hoje que muitos leitores apontam o desgosto dos meistres por elementos mágicos. Existe inclusive uma teoria famosa que já foi traduzida aqui no site (nos tempos de Game of Thrones BR) chamada “A Grande Conspiração dos Meistres da Cidadela“, que especula que o objetivo da ordem dos meistres seja acabar com a magia no mundo, como sugere Marwyn, e que eles estariam por trás da morte dos dragões e da deposição da dinastia Targaryen. Não vem ao caso discutir essa teoria em si (e seus possíveis exageros) mas ela acentua algo que é evidente: a oposição entre magia e ciência existe em Westeros, e os meistres representam o segundo lado dessa disputa.
O antecedente mais notável disso é justamente Meistre Cressen. O capítulo narrado a partir do seu ponto de vista tem como antagonista Melisandre, uma sacerdotisa que ele vê como exótica, envolvida com tipos de magia obscuros e suspeitos. Sua influência sobre Stannis é desaprovada por Cressen em uma dimensão pessoal, mas também ideológica. O meistre é levado, durante o capítulo, e especialmente na ocasião de sua morte, a compreender que a magia de Melisandre é real, apesar de sua constante recusa em favor da ciência e de uma religião mais passiva, a Fé dos Sete. Outros exemplos poderiam ser dados, como Meistre Luwin constantemente desconsiderando as histórias da Velha Ama e as visões de Bran.
Tendo isso em mente, a expectativa criada pelo leitor em torno da Cidadela provavelmente é de que ela será o lugar que melhor representa essa visão de mundo racionalista dos meistres. No entanto, a primeira palavra dita em O Festim dos Corvos, antes mesmo de ser revelado onde o prólogo se passa, é “dragões”. O capítulo inteiro é permeado por mistérios e dúvidas, e um elemento em especial — a neblina — reforça a ideia de que o que o leitor encontrará nesse núcleo não será inteiramente racional.
A neblina
Estou me detendo especificamente nesse tema pois Martin já tem um histórico de usá-lo como um elemento no debate entre fantasia e ciência, ou entre dúvidas e certezas. Quando ainda era um escritor iniciante, no verão de 1971, o autor escreveu um conto que considerava um de seus melhores até o momento: Com a Manhã Vem o Pôr da Neblina (que pode ser lido gratuitamente aqui). O conto é narrado por um (ou uma) jornalista que visita o planeta de Wraithworld, um mundo cuja maior atração para os turistas é a lenda dos espectros, criaturas que vagam na neblina que se instaura no planeta à noite. O protagonista vai ao local acompanhado do cientista Dubowski e sua equipe, que pretendem efetivamente descobrir a verdade sobre a lenda. Eles se hospedam em Castle Cloud, um hotel de propriedade de Sanders, um homem carismático e apaixonado pelos mistérios de seu planeta.
Na história, o narrador tenta intermediar a relação de Sanders e Dubowski, que estão em constante atrito, pois, para Sanders, a beleza do planeta está na aura de mistério invocada pelos espectros, criaturas que supostamente foram vislumbradas por alguns exploradores e mataram tantos outros, enquanto Dubowski foi até lá exclusivamente para investigar o lugar e trazer respostas. Ao final, a expedição conclui que os espectros não eram verdadeiros, e o planeta se torna efetivamente colonizado por setores produtivos, enquanto que, para o narrador, a beleza que o envolvia se foi. A neblina do título simboliza a beleza e a contemplação do inexplicável, aquilo que Dubowski não conseguia compreender, mas Sanders mostra ao protagonista durante a história. Contrária ao cientificismo, a neblina não é necessariamente a magia, mas a possibilidade de que algumas coisas não possam, ou não devam, ser explicadas. Priscila Zorzi chama esse conto de “uma carta de amor à fantasia“, e isso se reflete no restante da produção de Martin, incluindo em As Crônicas de Gelo e Fogo. Para discutir esse aspecto no livro, primeiro é preciso que nos detenhamos um pouco na história da literatura e em como Martin se posiciona a esse respeito.
O romantismo de George R. R. Martin
Essa ocorrência da neblina como um elemento que representa uma incerteza contemplativa, uma forma particular de relação com o mundo que rejeita explicações extremamente racionais e valoriza a subjetividade dos sentimentos está diretamente relacionado com uma das principais características pelas quais a prosa de Martin era conhecida no início de sua carreira: o romantismo.
Por romantismo, me refiro à tradição literária europeia que tem origem no século XVIII e toma mais força ainda no século XIX, uma forma de reação à revolução industrial e constante urbanização daquelas sociedades. Resgatando uma memória saudosa das tradições medievais, antiburguesas e profundamente religiosas, autores como os irmãos Grimm, François-René de Chateaubriand e, na tradição anglófona, Lord Byron, Mary Shelley e Samuel Taylor Coleridge, se transformaram em símbolos de um período da história da literatura que deixou marcas até os dias de hoje, seja na literatura dita realista, ou em gêneros como o horror, a fantasia e até a ficção científica.
Especificamente na fantasia, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, também em reação aos movimentos modernistas, trazem muitos dos ideais românticos para a literatura do século XX. E não é segredo para ninguém que especialmente Tolkien é uma das grandes influências de Martin através de toda sua carreira. Mas não é apenas isso: em Sonho Febril, por exemplo, Martin usa poemas de Byron como uma imagem constante. Em Uma Canção Para Lya, a menção é a Dover Beach, poema do romântico Matthew Arnold. Existem ainda registros históricos de que essa associação do autor com o romantismo não era apenas uma nota de rodapé. Em 1977, Martin escreveu:
Sou um romântico inabalável (não direi incurável, pois o romantismo é uma tradição literária/filosófica com uma longa e honrada história, não uma doença, obrigado).
(Songs of Stars and Shadows).
O autor consagrado Brian Aldiss, em seu guia de história da ficção científica, apresenta Martin da seguinte forma:
A revolução de Martin, se é que podemos chamar assim, é de imbuir a fórmula esperada das revistas — romântica, frequentemente sentimental e mecanicista — com graus de realismo.
(Trillion-Year Spree).
Assim como Tolkien, Martin também estava reagindo em partes a uma tendência literária modernista. A ficção científica dos anos 60 e 70 é conhecida pelo movimento conhecido como A Nova Onda, que justamente incorporou tendências modernistas ao gênero. Representada por Samuel R. Delany, Ursula K. Le Guin, J. G. Ballard, Philip K. Dick, e outros, essa tendência encontrou em Martin um adepto, mas não integralmente. Um de seus amigos mais próximos, o escritor e editor Gardner Dozois, afirma que:
George sempre foi um autor muito romântico. Minimalismo seco ou os jogos irônicos do pós-modernismo tão amado por muito escritores e críticos modernos não é o que você vai encontrar quando abrir algo de George R. R. Martin, mas sim uma história com um forte enredo e movida pelo conflito emocional.
Essa tendência de Martin a remeter à literatura romântica, como ficou bem evidenciada em Com a Manhã Vem o Pôr da Neblina, também é tema central de várias de suas histórias: a beleza contemplativa do espaço em Night Shift, o isolamento físico e sentimental em O Segundo tipo de Solidão, o planeta abandonado e que ruma em direção à escuridão em A Morte da Luz, além das constantes referências a lendas arturianas em contraste com a realidade trágica nesse romance, bem como em Flores Amargas. A propósito de A Morte da Luz, sua parceira de escrita, amiga e ex-namorada, Lisa Tuttle escreveu:
Quando eu conheci George em 1973, ele chamava a si mesmo orgulhosamente de um romântico (isso foi muito antes do surgimento do termo “emo”). Ele era sonhador e sensível, ressentido pelas oportunidades perdidas, inseguro, dado à melancolia (…). Quando esse livro [A Morte da Luz] foi publicado, alguns anos depois,eventos pessoais abalaram severamente sua visão romântica, mas mesmo que às vezes fosse amargo, ele ficava de luto porsuas ilusões e se recusava a tornar-se um cínico.
Portanto, é inegável que a influência romântica de Martin não apenas está presente, como é amplamente reconhecida por seus colegas escritores. No entanto, a fama do autor, especialmente após a adaptação televisiva Game of Thrones, se tornou a de ser cínico, precisamente o contrário do que apontaram Tuttle, Aldiss e Dozois, em momentos diferentes. Ainda que essa visão seja muito mais baseada em momentos específicos da série de TV, muitos a aplicam às Crônicas de Gelo e Fogo, o que acredito que seja um equívoco, pois a permanência das influências românticas seguem aparecendo, ainda que sejam balanceadas com os “graus de realismo” apontada por Aldiss. Por isso, gostaria de me deter agora em como a neblina é utilizada no prólogo de O Festim dos Corvos para simbolizar a magia adentrando um ambiente que se propõe extremamente racional.
O nascer da neblina
— A maçã — Alleras repetiu. — A menos que queira comê-la.
— Lá vai — arrastando a perna de pau, Mollander deu um curto salto, rodopiou e arremessou horizontalmente a maçã para as névoas que pairavam sobre o Vinhomel. Não fosse o pé, teria sido um cavaleiro como seu pai. Tinha a força necessária naqueles braços grossos e ombros largos, e a maçã voou para longe e rápido demais…
(O Festim dos Corvos, prólogo)
O capítulo tem início na Pena e Caneca, uma estalagem na cidade de Vilhavelha que é bastante popular entre os acólitos da Cidadela, aqueles que almejam se tornarem meistres. Lá, na cidade onde se ergue uma torre cujo topo é iluminado, um símbolo do conhecimento racional, nos moldes iluministas (e não por acaso ressalto a imagem de Torralta), um grupo de jovens acólitos se reúne para bebidas e brincadeiras. Entre eles está Pate, o menino que sonha em juntar um dragão de ouro para se deitar com Rosey, a filha de Emma, uma das serventes. E ao redor dos futuros representantes da ciência, está a neblina. A Pena e Caneca é “uma ilha de luz num mar de névoa”.
Naquela manhã, a varanda iluminada a archote do Pena e Caneca era uma ilha de luz num mar de névoa. A jusante, o distante sinal luminoso da Torralta flutuava no relento da noite como uma lua alaranjada e brumosa, mas a luz pouco fez para lhe melhorar o estado de espírito.
(O Festim dos Corvos, prólogo)
Pate está aguardando o Alquimista, um homem misterioso que o ofereceu um dragão de ouro caso Pate roubasse uma chave de um arquimeistre. O Alquimistaé uma figura envolta em mistério e com insinuações sobrenaturais. Inclusive no texto original, “Alchemist” contém a palavra para “neblina”, “mist“. Portanto, o ambiente construído pelo capítulo até então é: uma cidade que representa a clareza de visão, e portanto, o conhecimento objetivo, sendo invadida pela neblina, e por uma figura mística. Conforme a manhã se aproxima, a névoa se esvai, e o Alquimista não aparece no local e hora onde havia combinado com Pate. Quando ele efetivamente aparece, o sol nascente acaba nublando seu rosto (o que é curioso, pois aqui, a simbologia da luz enquanto conhecimento se inverte, e é ela quem impede Pate de ver o Alquimista).
Também presente no início do capítulo, adentrando o ambiente científico, está um diálogo sobre o retorno dos dragões, e uma breve alusão a Marwyn, que sabemos ser um meistre fora da curva a respeito desse tema, que denuncia uma conspiração de sua ordem para acabar com a magia. A última vez que a neblina é mencionada nesse livro é justamente no capítulo final, quando Samwell e Gilly chegam a Vilavelha, e o dia “estava úmido, e as ruas de pedra estavam molhadas e escorregadias debaixo dos seus pés e as vielas mostravam-se cobertas de névoa e mistério.” (O Festim dos Corvos, capítulo 45, Samwell V). Enquanto no prólogo, tínhamos a névoa em um ambiente mais contido e sumindo durante o dia, aqui, quando o Alquimista já matou Pate e tomou o seu lugar, obtendo uma chave de arquimeistre, e quando o leitor efetivamente conhece Marwyn e vê sua vela de obsidiana, a neblina também toma conta da cidade durante o dia. A magia, antes à espreita, agora está se espalhando por Vilavelha.
Conclusões
O cerne do argumento que tentei demonstrar é que a neblina em O Festim dos Corvos serve como um elemento que ajuda a contrastar dois ambientes, o da racionalidade e o do inexplicável. Esse tipo de imagem possui um amplo histórico, não apenas na produção de Martin, mas também nas temáticas da literatura de fantasia ao longo das décadas. Nas suas histórias, especificamente, Com a Manhã Vem o Pôr da Neblina se dedica especificamente a isso, discutindo a necessidade das incertezas e da imaginação para conceder beleza à vida, uma visão que remonta à tradição do romantismo, movimento literário característico dos séculos XVIII e XIX.
O que observamos em um texto que surgiu mais de 30 anos mais tarde é que a presença da neblina mantém seu significado anterior, sempre aliadas às incertezas, e para As Crônicas de Gelo e Fogo, vem como um prenúncio. Um mundo de fantasia que se acreditava praticamente livre da magia não deve permanecer assim por muito tempo.
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https://www.geloefogo.com/2021/05/hbo-escolhe-amanda-segel-para-escrever-a-serie-sobre-nymeria-e-seus-1000-navios.html#commentsTue, 25 May 2021 20:58:40 +0000https://www.geloefogo.com/?p=108486Uma das séries derivadas de ‘Game of Thrones‘ acaba de encontrar sua roteirista principal. Amanda Segel já está escrevendo o […]
Uma das séries derivadas de ‘Game of Thrones‘ acaba de encontrar sua roteirista principal. Amanda Segel já está escrevendo o projeto ‘10.000 Ships’, como confirma o Deadline.
‘10.000 Ships’ é um uma das diversas adaptações dos livros de George R. R. Martin que estão atualmente em andamento na HBO. A série segue a Princesa Nymeria, que viajou com os roinares para Dorne, enfrentando mares destemperados, todo tipo de sorte inimaginável, e ainda os senhores de Westeros.
A HBO não quis comentar a contratação no momento. No entanto, a escritora já esta divulgando o novo desafio profissional em sua bio no Twitter.
Os trabalhos anteriores de Segel incluem “Person of Interest”, “The Good Wife”, “The Mist” e “Helstrom”.
Como revelamos anteriormente, entre os outros projetos relacionados a ‘Game of Thrones‘ temos ‘9 Voyages’, que se concentraria na história de Lorde Corlys Velaryon – conhecido como “Sea Snake”. O personagem também estará em ‘House of the Dragon‘.
Também há movimentação no desenvolvimento de uma série baseada nos contos de Dunk & Egg, bem como um projeto de animação com história ainda não revelada, e uma produção que seguiria personagens ainda não identificados em suas vidas na Baixada das Pulgas de Porto Real. Bruno Heller, criador de “The Mentalist”, e co-criador do épico “Rome” da HBO, está envolvido em parte dessas outras séries.
Até o momento, estes outros projetos em desenvolvimento não possuem equipe oficialmente anunciada.
‘House of the Dragon‘, primeira série derivada de ‘Game of Thrones’, estreia no ano que vem. Veja nosso guia completo.
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https://www.geloefogo.com/2020/08/sobre-george-r-r-martin-nos-hugo-awards-2020.html#respondTue, 04 Aug 2020 20:52:49 +0000https://www.geloefogo.com/?p=107964Para nós, ser o maior fansite especializado em George R. R. Martin no Brasil (talvez por ser o único) significa, […]
Para nós, ser o maior fansite especializado em George R. R. Martin no Brasil (talvez por ser o único) significa, acima de tudo, ter responsabilidade ao relatar e divulgar notícias e acontecimentos envolvendo o autor. Ser “fã” não é simplesmente abaixar a cabeça, dizer amém e silenciar quando é conveniente.
A essa altura, já circulam na imprensa brasileira alguns relatos sobre a repercussão da cerimônia dos Hugo Awards de 2020, apresentada por Martin na última sexta feira (31). Como sabemos bem, porém, que a qualidade da cobertura é geralmente muito precária (se resumindo a traduções de qualidade duvidosa de conteúdos de segunda ou terceira mão de sites estrangeiros), sentimos a necessidade de falar sobre o assunto.
Além disso, o tema é delicado por si só, mas nem por isso achamos que devemos nos furtar a falar sobre ele, sempre tentando trazer a informação da maneira mais completa possível. A seguir, explicaremos o que são os Hugos, o que aconteceu na cerimônia em que George R. R. Martin foi o anfitrião, por que ela foi controversa e alvo de críticas, e daremos também nossa opinião sobre o assunto. Acompanhe.
O que são os Hugo Awards?
Em 1º de agosto (no horário neozelandês) aconteceu a cerimônia dos Hugo Awards, a maior premiação do campo da ficção científica e fantasia. Esse evento ocorre desde 1953, sempre atrelado à Worldcon, também a convenção mais importante do gênero. Nesse ano, a Nova Zelândia seria a casa da 78º Worldcon (daí o nome CoNZealand), mas a pandemia do Covid-19 acabou levando a organização a tornar o evento inteiramente virtual.
Embora sempre relacionadas com a fantasia e a ficção científica, as categorias dos Hugos são enormemente variadas, premiando tanto autores por seus romances, noveletas e contos quanto fãs com suas obras relacionadas e fanzines, além de condecorar também obras audiovisuais.
O mestre de cerimônias para o Hugo de 2020, anunciado no ano passado, foi George R. R. Martin. A apresentação, como não poderia deixar de ser, aconteceu virtualmente. Como já explicara em um post em seu blog na semana passada, Martin gravou vários vídeos prévios em sua cabana para cada uma das categorias, em que fazia comentários a respeito dela e listava os indicados. Quando chegava a hora de anunciar o vencedor, a transmissão cortava para o Jean Cocteau, o cinema de Martin em Santa Fe, onde ele abria o envelope ao vivo e anunciava o ganhador, e depois passava às gravações (ou inserções ao vivo) dos contemplados com o prêmio para seus agradecimentos.
A apresentação de George R. R. Martin
Desde o início da cerimônia, Martin deixou claro que sua intenção era fazer uma condução “educativa” dos Hugos e da Worldcon, contando a história do prêmio e da convenção para os novos participantes, que ele presumia estarem em um número maior pela natureza virtual do evento em 2020. Assim, George contou várias histórias e casos de Worldcons passadas e fez reiteradas referências a nomes antigos e clássicos do gênero, entre eles John W. Campbell e Isaac Asimov, e também a suas próprias experiências nos eventos e em cada um das categorias às quais já concorreu.
Durante as apresentações dos indicados, Martin errou a pronúncia dos nomes de vários deles (a despeito de a CoNZealand ter pedido que aqueles que tivessem nomes não-ingleses enviassem a pronúncia correta, em alguns casos até em áudio). Em determinado momento, ao apresentar a estatueta propriamente dita do Hugo, GRRM fez uma piada com a estatueta do Oscar, dizendo que ele seria um eunuco por não possuir genitais masculinos.
A apresentação contou também com a participação de Robert Silverberg, outro representante da “velha guarda” do cenário, com o mesmo tom de saudosismo de Martin. A cerimônia, no total, durou mais ou menos três horas e meia, uma duração longa em comparação com as edições mais recentes dos Hugos nas últimas Worldcons. A apresentação completa pode ser assistida neste link, e a lista de vencedores está aqui.
Os problemas e críticas à apresentação
A longa apresentação de George, porém, foi insatisfatória e mal-recebida em vários níveis. Na medida em que ele avançava na condução dos trabalhos, grande parte da comunidade internacional de fantasia e ficção científica que acompanhava o prêmio demonstrou sua insatisfação online (no Twitter ou no chat ao vivo da transmissão). Foram vários problemas, que somados, deram ares de desastre à cerimônia.
Apesar de aparentemente bem-intencionada, a ideia de Martin de contar anedotas e causos de Worldcons e Hugos de quarenta, cinquenta e até sessenta anos atrás não ressoou bem entre a audiência atual. O tom foi interpretado não apenas como uma longa e enfadonha aula, inadequada para uma premiação, mas também como desconexão e um certo desmerecimento do público e dos autores atuais, mais diversos, de fantasia e ficção científica, visto que os mencionados por ele eram em sua maioria homens brancos da “velha guarda”.
Particularmente problemáticas nesse sentido foram as reiteradas menções laudatórias de Martin a John W. Campbell, histórico autor e editor de fantasia e ficção científica, que no entanto tinha visões racistas, segregacionistas e pseudocientíficas. Cabem aqui alguns parênteses para explicar por que a questão tem contornos ainda piores.
Há muito já se sabe sobre as posições misóginas, racistas e imperialistas de Campbell. Samuel R. Delany, um dos maiores escritores da história do gênero, por exemplo, relatou que o editor se recusou a publicar seu romanceNova nos anos 60, pois dizia que o público não iria querer um protagonista negro. Em carta, Campbell também escreveu que uma sociedade negra avançada tecnologicamente nunca existiria. Defensor confesso das leis de segregação racial nos Estados Unidos, ele chegou a publicar um artigo chamado simplesmente Segregation, no qual se colocava a favor da separação racial em escolas, transporte público, entre outras instâncias. Em seu livro Astounding, publicado em 2018, Alec Navala-Lee detalha diversas outras manifestações de Campbell e a reação que elas receberam à época, o que desmistifica argumentos de que toda a sociedade norte-americana pensava dessa maneira.
Pela contribuição de Campbell ao gênero, a World Science Fiction Society (Associação Mundial de Ficção Científica), com patrocínio da Dell Magazines (editora da Analog, anteriormente chamada Astounding Science Fiction, revista em que Campbell atuou como editor por vários anos) instituiu em 1973 o “Prêmio John W. Campbell para Melhor Novo Autor”, entregue anualmente na cerimônia dos Hugos.
Jeannette Ng foi a vencedora do prêmio em 2019, e em seu discurso de recebimento a autora ressaltou que Campbell era um “fascista do caralho”, e que suas contribuições exaltavam as visões de imperialistas e colonizadores, traçando um paralelo com a situação política atual em Hong Kong, onde ela nasceu. Dias depois, a própria Analog anunciou que, diante dos editoriais racistas de Campbell, o prêmio passaria a ser chamado de “Prêmio Astounding para Melhor Novo Autor” (“astounding”, além do nome da revista, quer dizer “surpreendente, assombroso, espetacular”). Ironicamente, o discurso de Ng estava indicado ao Hugo deste ano na categoria “Melhor Obra Relacionada” — e venceu.
Diante de todo esse contexto, não é difícil perceber que a insistência de Martin em mencionar Campbell em tom elogioso (por ter impulsionado a carreira de muitos autores das antigas) tenha sido compreendida por parte da audiência como uma provocação e uma espécie de resposta à rejeição de Campbell pela comunidade atual (ainda que possa não ter sido essa sua intenção).
A presença de Robert Silverberg durante a premiação também não contribuiu para diminuir a animosidade do público com o tom geral da cerimônia. Uma figura histórica na ficção científica, mas também problemático por si mesmo, Silverberg (conhecido como “Silverbob” no meio) tem uma tendência histórica nos Hugos de “torturar” os finalistas estendendo a premiação e o suspense ao máximo, algo que não é apreciado por muitos dos participantes. O conflito maior, porém, é a postura intransigente em relação às novas gerações, e uma rejeição a ele foi amplificada quando vieram a público críticas que fez ao tom do discurso de N. K. Jemisin quando ela venceu o Hugo de Melhor Romance pela terceira vez consecutiva (mesmo admitindo não ter lido os livros dela).
Além disso, as reiteradas pronúncias erradas dos nomes de vários dos indicados por parte de Martin também foram objeto de muita indignação, dado que a CoNZealand havia solicitado a todos que enviassem as pronúncias corretas, em alguns casos oferecendo até mesmo a possibilidade de enviarem áudios. Como uma expectativa de que todos teriam seus nomes falados corretamente foi criada e frustrada, a irritação foi natural (e justificada). Muitas pessoas interpretaram isso como simples falta de consideração do autor em tentar fazer a pronúncia correta, principalmente por se tratar de segmentos gravados (em que seria ainda mais fácil acertar), e alguns disseram ser mesmo racismo.
A esse respeito, porém, não se sabia a princípio como havia sido a comunicação entre Martin e a CoNZealand, e chegou a surgir um rumor de que os organizadores haviam solicitado que Martin regravasse seus vídeos com as pronúncias corretas, e que ele teria se recusado. Essa história, porém, foi desmentida pelo autor.
Martin explicou, em um comentário no File770 (traduzido na íntegra mais adiante), que não recebeu guias de pronúncias para os nomes dos indicados (que ele leu em gravação), e que nos envelopes dos vencedores (que ele lia ao vivo), havia a pronúncia correta apenas para alguns deles. Assumiu, porém, a responsabilidade pelos erros e pediu desculpas aos que tiveram seus nomes pronunciados de maneira incorreta.
A piada de Martin sobre a estatueta do Oscar e outras manifestações (como se referir coletivamente às pessoas como “men and women”, homens e mulheres”) também teve má recepção entre a audiência, por terem natureza transfóbica e de essencialismo de gênero (ainda que de maneira inconsciente).
Tudo isso formou uma onda de insatisfação geral com o tom da apresentação, e a certa altura várias outras atitudes de GRRM foram também alvo de críticas, como um suposto desmerecimento do “tricampeonato” de N. K. Jemisin ao mencionar os feitos de Robert A. Heinlein logo depois, ou a insistência em contar casos sobre si mesmo, e pouco mencionar ou exaltar autores das novas gerações. O sentimento geral de contrariedade não ressoou apenas entre os fãs, mas encontrou eco também em vários dos autores que estavam presentes (virtualmente, é óbvio) na cerimônia.
Manifestações de GRRM e outros autores
Até o momento, Martin fez uma única manifestação direta a respeito da cerimônia, um comentário no site do fanzine File770 no sábado, dia seguinte ao evento. O autor esclareceu a questão da pronúncia incorreta e desmentiu os rumores de que havia se recusado a regravar os segmentos, e também tratou um pouco do tom que decidiu adotar para a cerimônia. Permaneceu silente, porém, a respeito das reiteradas menções a Campbell ou das acusações de transfobia e racismo.
Segue tradução do comentário de GRRM:
Quem quer que esteja fazendo circular a história de que me pediram pra regravar partes da minha cerimônia dos Hugos para corrigir nomes com pronúncias erradas, e que recusei, está (1) errado, ou (2) mentindo. Isso nunca aconteceu.
A CoNZealand realmente me pediu para regravar três dos meus vídeos, todos eles por razões de controle de qualidade: iluminação ruim, som ruim, câmera trêmula. Consenti com o pedido deles em dois dos vídeos, os dois que abriram a noite; fiz esses ao vivo do Jean Cocteau (os originais tinham sido feitos na minha cabana num iPhone, quando ainda estávamos só tentando pegar o jeito da coisa). O terceiro segmento que queriam que eu regravasse era a parte sobre o troféu dos Hugos, em que eu brincava com a suqueira, o Alfie, essas coisas. Nesse caso, decidimos ficar com a primeira versão, já que eu não tinha mais os adereços à mão e não conseguiria reproduzir facilmente o que tinha feito na cabana, de que todo mundo parecia ter gostado.
Também tem uma história por aí de que me forneceram a pronúncia fonética correta de todos os nomes. Isso também é completamente falso. Ontem à noite, no evento, me passaram os envelopes selados com os nomes dos vencedores, e havia as pronúncias fonéticas de ALGUNS (de forma alguma todos) nomes dos vencedores nos cartões, que eu tinha um ou dois segundos para digerir antes de ler em voz alta. Provavelmente errei alguns desses também. Pronúncia nunca foi meu forte. Eu até pronuncio os nomes dos meus próprios personagens errado às vezes (assistam a alguma de minhas entrevistas). Mas em nenhuma etapa do processo jamais me deram um guia fonético de como pronunciar todos os outros finalistas, os que não venceram. Se eu tivesse recebido isso, certamente teria feito todos os esforços para acertar todos os nomes. (Receio que teria bagunçado de qualquer forma. Todos temos forças e fraquezas, e admito com franqueza, essa é uma das minhas. Ainda tenho problemas com o nome de um de meus próprios assistentes).
Peço aqui desculpas a todos cujos nomes pronunciei errado. Sinto muitíssimo. Nunca foi minha intenção.
Quando John Picacio foi mestre cerimônias, ele deu umas voltas durante a recepção pré-Hugos com um bloco na mão e perguntou a alguns dos indicados como pronunciar os nomes deles. Em alguns casos ele teve que ensaiar a pronúncia correta com os finalistas várias vezes para anotar. Eu estava na festa também. Vi o John fazer isso. Admirei-o por isso. Sempre estava na minha cabeça fazer a mesma coisa, mas claro, em nossa Worldcon virtual, nunca tive a chance. Nunca tive a chance de CONHECER de verdade alguns dos finalistas mais novos, parabenizá-los, apertar as mãos deles, e perguntar os nomes deles. Muito menos treinar com eles até acertar.
Tem alguém aí dizendo que eu poderia ter feito tudo isso por email. Sim, acho que poderia. Mas teria sido uma tarefa assustadora. Havia mais ou menos uns 120 finalistas, e eu tinha os endereços de emails de uns seis.
Se querem bater em mim por não ter feito isso, tudo bem. Mas não batam em mim com histórias mentirosas como “se recusou a regravar” ou “tinha o guia fonético mas não usou”, que são pura bobagem.
A despeito dos pecados por omissão ou comissão que outros cometeram, em última instância a responsabilidade era certamente minha, já que era da minha boca que aqueles nomes estavam saindo… então mais uma vez, sinto muito.
Quanto ao teor geral da minha cerimônia… minha intenção desde o começo foi fazer daquela noite uma de diversão e celebração. Já que eu esperava que um grande número dos presentes fossem Kiwis [neozelandeses] participando de sua convenção, pensei que traçar um histórico do prêmio seria mais do que apropriado. De onde os Hugos vieram, como o troféu evoluiu ao longo das décadas, quem o venceu no passado — e quem o perdeu, algo que tentei enfatizar, dado minha longa história como perdedor do Hugo. E com historinhas divertidas. O ano em que Lester entregou os prêmios de trás para frente, o ano em que RAH [Robert A. Heinlein] irrompeu da cozinha etc.
Não assisti a tantas cerimônias dos Hugos quanto Silverbob, mas assisti a muitas. Há algumas abordagens diferentes para os mestres de cerimônias. Marta Randall, em suas duas apresentações, se orgulhou do como conseguiu ser rápida, batendo recordes nas duas vezes como os Hugos mais rápidos de todos os tempos. Connie Willis, por outro lado, gosta de esticar as coisas com histórias divertidas e manter os finalistas se contorcendo ao máximo. Como membro da audiência, eu definitivamente prefiro as mais longas e engraçadas, como Connie, não as curtas e cativantes, como Marta. Meus modelos foram alguns dos mestres de cerimônias que mencionei: Bob Tucker, Bob Bloch, Asimov, Harlan, e acima de todos Silverbob. Reconheço que as preferências de vocês podem ser diferentes. Muita gente adorou como a Marta conduziu seus dois eventos.
É claro, cada anfitrião tem seu próprio estilo de humor. Alguns, como Ricky Gervais, são espertalhões com os apresentadores e os indicados. Isso funciona de maneira maravilhosa nos Golden Globes, mas algo me diz que não seria bem recebido nos Hugos, considerando o terrível alvoroço há alguns anos atrás quando escalaram outro comediante britânico para apresentar. Foi enxotado antes de falar uma palavra. Meu próprio estilo é sempre autodepreciativo; o alvo principal de minhas histórias sempre sou eu mesmo.
A maioria das histórias que contei ontem à noite haviam passado pelo teste do tempo, de certa maneira. Contei essas mesmas histórias antes. Geralmente são recebidas com grandes gargalhadas. Ou gargalhadas médias, de qualquer forma. Era isso que eu esperava ouvir do público em Wellington. Risadas. E apreciação pela longa e pitoresca história desse gênero que tanto amamos: escritores, editores, fãs, vivos e mortos.
Os Hugos propriamente ditos são como celebramos os vencedores. A honra de ser indicado é como celebramos os perdedores… (e a esperança de que um dia, os perdedores também possam ser vencedores, como um dia fui — e é por isso que conto AQUELA história, para dar conforto aos recém-derrotados).
Enfim, foi essa a minha abordagem. O mestre de cerimônias do ano que vem terá uma diferente, sem dúvida. Lamento que alguns de vocês não tenham gostado de minha apresentação. E estou satisfeito por ouvir que tantos de vocês gostaram (bem, não aqui no File 770, mas estou recebendo muitas mensagens e emails de gente que riu nos momentos certos). Obviamente gostaria de ter sido o melhor mestre de cerimônias de todos os tempos para todo mundo, mas não é possível agradar todo mundo o tempo todo.
(Quase todo mundo gostou dos chapéus, pelo menos).
Antes disso, a conta oficial de Twitter de George (administrada por seus “minions”) havia postado uma reprodução de um discurso atribuído a Voltaire, que diz “Todos somos cheios de fraquezas e erros; perdoemos mutuamente as bobagens uns dos outros”, precedida da introdução “Words for our times” (Palavras para nossos tempos). Embora aparentemente a postagem combine com os eventos recentes, não é possível afirmar com certeza que se tratou de uma resposta à repercussão da cerimônia. Isso porque já há algumas semanas o autor vem postando uma série de frases antigas sob o título “Words for our times” em seu blog, que depois são divulgadas no Twitter, sempre com atraso de alguns dias. Pode, portanto, ter sido apenas uma coincidência.
A aparência de relação com os eventos, porém, resultou em que as respostas ao tweet incluíssem (além dos reiterados e regulares comentários sobre The Winds of Winter) várias manifestações de fãs e colegas autores a respeito da condução dos trabalhos nos Hugos. Entre eles, notabiliza-se o comentário de Mary Robinnette Kowal, vencedora de vários Hugos (entre eles o de Melhor Romance em 2019), que apresentou uma categoria do prêmio nesta edição a convite de George. Ela disse ter ficado honrada pelo convite, mas se disse enfurecida com as decisões que ele tomou na cerimônia, e se dispôs a explicar os motivos se ele quisesse ligar para ela:
George, I was deeply honored that you asked me to present an award last night.
I am very angry at the choices you made with the ceremony. If you would like me to explain why to you, you have my phone number.
Kowal não foi a única figura proeminente do gênero a se manifestar. Sarah Gailey, N. K. Jemisin, Jeannette Ng e Seanan McGuire foram algumas das pessoas que se manifestaram em threads no Twitter:
Last night's Hugo Award ceremony was an embarrassment and a insult to the entire genre community. Every aspect of it that could have been celebratory, kind, or thoughtful was devoured by the cowardice and narcissism of an "old guard" that is terrified of its own irrelevance.
For those wondering: I pre-recorded an acceptance for last night because I do not attend Worldcon anymore. Sometimes that's bc I'm busy, but mostly it's bc I would rather have toenails pulled. Only reason I even made it to 2018 was friends' badgering.
No Facebook, Robert J. Sawyer escreveu um longo texto sobre como funcionam as micro-agressões e exclusões inconscientes dentro do fandom (compartilhado por Steven Erikson):
Não vamos mentir: foi, sem dúvida, uma noite infeliz de George R. R. Martin, e a indignação dos ofendidos é legítima. Não acreditamos que Martin tenha agido de má-fé e que tenha sido sua intenção ativamente ofender ou atacar as novas gerações da fantasia e da ficção científica, mas faltou, no mínimo, sensibilidade da parte dele na condução da cerimônia.
A ideia de fazer uma apresentação educativa sobre a história dos Hugos, por si só, poderia não ser problemática e ser considerada apenas enfadonha. Talvez aquele não fosse o momento nem o local mais adequados para isso, mas como era uma escolha do mestre de cerimônias, não se pode dizer que isso necessariamente seria algo ofensivo. Quando somada aos vários outros problemas, porém, acabou tornando a situação numa bola de neve que soou realmente como uma provocação.
A questão da pronúncia incorreta dos nomes, igualmente, seria tolerável num contexto em que a apresentação fosse ao vivo ou em que os indicados não tivessem fornecido suas pronúncias à organização do evento, mas da maneira como as coisas aconteceram, é plenamente justificável que as pessoas tenham se indignado. Por outro lado, a explicação de Martin sobre isso é relativamente satisfatória: se ele de fato não recebeu os guias de pronúncia, a organização da CoNZealand também tem de ser responsabilizada (embora ele também pudesse ter buscado as pronúncias corretas por conta própria). Trata-se, porém, de mais um caso em que algo poderia “passar” se fosse o único problema, mas acaba por se tornar mais grave diante do conjunto da obra.
É mais ou menos o caso das manifestações inconscientemente transfóbicas de Martin, também. Muito provavelmente o autor sequer percebeu (ou sabe) que sua piadinha com a estatueta do Oscar representaria uma micro-agressão, mas isso não tira a legitimidade das pessoas atingidas se sentirem ofendidas.
A grande questão é que ficou demonstrada uma grande desconexão entre as intenções e a visão de Martin sobre o fandom de fantasia e ficção científica e a composição atual do gênero na Worldcon e nos indicados ao Hugo. Nos últimos anos é crescente e notável a participação e a valorização de pessoas mais diversas no cenário, e o tom geral da apresentação de George acabou sendo um tapa na cara de quem está tentando ter sua voz ouvida com tanto esforço e depois de anos de exclusão (seja ela consciente ou inconsciente).
Para nós, objetivamente, o maior problema foi a reiterada menção a Campbell, principalmente diante da relevância do discurso de Ng no ano passado e da mudança de nome do prêmio de Melhor Novo Autor. George pode estar relativamente fechado em um círculo próprio, mas esse fato foi incrivelmente notável (e ele sabia que o discurso de Ng estava indicado como “Melhor Obra Relacionada”) para que fosse simplesmente ignorado. Quando isso ocorre, o que se interpreta é uma tentativa de silenciar as novas vozes e voltar aos “bons e velhos dias”, e é notável que em seu comentário explicativo no File770 George tenha ignorado essa questão.
Sabemos que George R. R. Martin tem um histórico de contribuições inclusivas para o gênero, e podemos citar como exemplos dar voz a pessoas não-brancas através de sua série de romances mosaico Wild Cards, sua defesa fervorosa dos Hugos contra a tentativa de “sequestro” do prêmio pelos sad (e rabid) puppies em 2015, ou servir como ponte com a HBO para a adaptação de Who Fears Death, de Nnedi Okorafor. Historicamente, o autor tem posições progressistas nesse sentido, mas isso não quer dizer que ele está imune a erros, mesmo que inconscientes.
GRRM não é inerentemente racista ou transfóbico, e definitivamente não é John W. Campbell redivivo (como às vezes as reações mais exageradas têm feito parecer), mas podemos citar as palavras dele mesmo: “um bom ato não lava os maus, e um mau não lava os bons. Cada um deve ter sua recompensa“. A recompensa que damos a Martin pela apresentação dos Hugos de 2020 vem na forma de críticas, e da esperança de que ele esteja aberto a ouvir vozes que o ajudem a perceber e compreender a sensibilidade que lhe faltou nessa situação.
]]>https://www.geloefogo.com/2020/08/sobre-george-r-r-martin-nos-hugo-awards-2020.html/feed0107964O Festim, a Dança e o Sapo: pré-julgamentos de histórias não concluídas
https://www.geloefogo.com/2020/07/o-festim-a-danca-e-o-sapo-pre-julgamentos-de-historias-nao-concluidas.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-festim-a-danca-e-o-sapo-pre-julgamentos-de-historias-nao-concluidas
https://www.geloefogo.com/2020/07/o-festim-a-danca-e-o-sapo-pre-julgamentos-de-historias-nao-concluidas.html#commentsWed, 01 Jul 2020 23:06:28 +0000https://www.geloefogo.com/?p=106775Leitores que se interessam por As Crônicas de Gelo e Fogo muitas vezes são fisgados de tal forma que não […]
Leitores que se interessam por As Crônicas de Gelo e Fogo muitas vezes são fisgados de tal forma que não querem parar de ler, nem sequer dar um intervalo entre os livros. O ritmo crescente dos três primeiros volumes da série tem seu ápice no Casamento Vermelho, provavelmente o momento mais emblemático do ciclo épico de George R. R. Martin.
A Tormenta de Espadas, é, de fato, o fim de um primeiro ato. A partir daí, é notável um arrefecimento no ritmo nos dois livros seguintes, O Festim dos Corvos e A Dança dos Dragões, o que resulta em insatisfação para muitos leitores que se acostumaram com a intensidade frenética dos primeiros. O descontentamento é tamanho que não é incomum nos depararmos com comentários no sentido de que as subtramas e personagens com ponto de vista introduzidos no quarto e no quinto livros seriam inúteis, “encheção de linguiça” ou descartáveis.
Essa é uma confusão comum, mas não por isso menos enganosa. Neste artigo tentarei argumentar por que na verdade ela representa um pré-julgamento, utilizando um personagem que surge com frequência nessas discussões, Quentyn Martell, e referências ao que vimos na adaptação televisiva Game of Thrones.
Como assim, pré-julgamento?
A percepção de que elementos e personagens que se desviam daqueles estabelecidos desde o início (no dito “primeiro ato” do ciclo) seriam inúteis denota um pré-julgamento acerca de algo que ainda não foi concluído. Se o leitor não sabe ou não percebeu onde vão resultar as novas subtramas e se as “recompensas” ainda não estão de fato presentes na história, é comum considerá-las necessariamente um recheio exagerado ou expansão de lore dispensável. Este, porém, é um curso de interpretação que considero um tanto perigoso.
O arco de Quentyn Martell, em particular, é um dos mais considerados por leitores como algo inútil ou uma grande perda de tempo (com efeito, foi um comentário nesse sentido em uma postagem aqui do site que me estimulou a escrever este artigo). Por essa mesma razão, o príncipe Martell serve bem a nossos propósitos no texto, para evidenciar como o fato de os efeitos de um arco talvez não serem óbvios numa primeira leitura e nem imediatos não significa que ele seja apenas “encheção de linguiça”.
Sem dúvida as consequências da trama de Quentyn ainda não estão claramente visíveis nos livros já publicados. Ele “acabou” de morrer, afinal, nos capítulos finais de A Dança dos Dragões. Acontece, porém, que é bastante possível inferir alguns significados para a inserção do personagem por parte do autor — e nem precisamos fazer um exercício sobre-humano de raciocínio para isso.
O diálogo com a fantasia
A nível temático, Quentyn parece ser mais um dos personagens de que Martin se utiliza para fazer um comentário e um diálogo com a literatura de fantasia de uma maneira geral. Nesse caso em específico, trata-se de uma desconstrução da ideia do “príncipe encantado que parte em uma aventura” — inclusive com uma bela dama para o final “felizes para sempre”. A questão aqui, é claro, é que o príncipe Martell e sua aventura não são nada disso.
Quentyn não é sequer encantador, e muito menos encantado: seu apelido por boa parte do livro em que aparece e morre é “Sapo”. Nem todas as aventuras têm um final feliz — e elas fedem, o que é simbolizado por Martin de maneira nada sutil com o navio Aventura, mencionado no primeiro parágrafo do primeiro capítulo de Quentyn. Nem todos os pretensos heróis estão destinados a grandes feitos e ao protagonismo de uma história do plano maior. Nem todos os príncipes que saem pelo mundo deveriam fazê-lo, principalmente não aqueles que nunca quiseram isso em primeiro lugar, como Quentyn.
Para todos os grandes homens e mulheres cujos feitos heroicos são dignos de registro para a posteridade, há um sem-número de outros que tentaram empreitadas tão ou mais corajosas, mas não foram bem sucedidos (e concordo com Arthur Maia quando ele diz que o príncipe dornês foi, de fato, corajoso). O insucesso, porém, na maioria das vezes resulta no esquecimento.
Um ato temerário, mas valente, cujo objetivo não é atingido ou resulta em fracasso é posteriormente massacrado. Um ato igualmente temerário e valente que resulta em sucesso é exaltado. Quase sempre o que se vê é um julgamento não do ato em si, no momento da decisão e da motivação do agente, mas uma avaliação a posteriori condicionada ao sucesso ou insucesso da missão.
Admitindo que esse é mesmo o comentário e o diálogo que GRRM quer fazer com a fantasia clássica que veio antes de si, ainda poderíamos nos perguntar: “seria estritamente necessário que Martin fizesse essa metarreflexão à custa da fluidez de sua própria história?”.
Eu tenderia a responder que não, por preferência pessoal (isso se ignorasse completamente que a história é do autor e que ele é quem sabe e decide o que é ou não necessário). Ao mesmo tempo, no entanto, acredito que o mais provável é que George tenha aproveitado um personagem que já seria necessário para as tramas pré-existentes para inserir esse diálogo, e não o criado especificamente para esse fim crítico.
Interpreto a narrativa de As Crônicas de Gelo e Fogo como um ente em si mesmo, capaz de fazer e trazer “exigências” próprias ao autor, justamente pelas reiteradas declarações de Martin sobre ser um escritor jardineiro — aquele que não planeja todo o curso da história minuciosamente de antemão, tendo apenas uma grande semente na cabeça, mas sempre aberto a novos ramos para a árvore final. Dessa maneira, a narrativa pode ter “exigido” que Quentyn partisse em uma aventura, e GRRM teria então aproveitado essa necessidade para também fazer um metacomentário acerca da clássica jornada encontrada em tantas e tantas histórias antes da que resolveu contar.
As implicações práticas
A importância do arco de Quentyn não está, porém, restrita à tentativa de desconstrução de tropes de gênero literário por parte do autor: é possível perceber que a aventura do príncipe dornês e sua morte também reverberarão no plano maior da história. O personagem foi um dos elementos problemáticos do chamado “nó meereenês”, a enorme dificuldade que GRRM enfrentou para determinar quando vários personagens que se dirigiam a Daenerys finalmente a alcançariam em A Dança dos Dragões, o que dificultou sobremaneira a finalização da escrita do livro.
Segundo o próprio autor, ele experimentou escrever a chegada do príncipe de Dorne na cidade de Meereen em diversos momentos diferentes: antes, durante e depois do casamento da rainha Targaryen. A versão final acabou sendo aquela em que ele chega quando Daenerys já considera o casamento com Hizdahr zo Loraq irrevogavelmente marcado. Isto, somado à falta de apelo para Daenerys no porte e na aparência de Quentyn e ao foco momentâneo dela na paz em Meereen, resulta no fracasso da missão do jovem Martell.
Por sua vez, esse fracasso leva a uma atitude desesperada por parte do príncipe, que, no afã de ser o herói da jornada que lhe foi imputada e não voltar para Dorne de mãos abanando — tendo falhado na missão — resolve-se a domar um dos dragões de Daenerys, e acaba morto pelo fogo de Rhaegal. É nesse fato em particular que residem as prováveis consequências da malfadada aventura de Quentyn. Tanto a morte do príncipe quanto a rejeição da proposta que Dorne levou à rainha Targaryen repercutirão enormemente no cenário político de Westeros.
À primeira vista, os Martell e Dorne como um todo seriam dos mais óbvios aliados de Daenerys Targaryen numa eventual invasão aos Sete Reinos. Não apenas a proximidade histórica (e recente) entre os Martell e os Targaryen seria um fator preponderante, mas os dorneses também têm motivos ainda mais pessoais para destronar a facção reinante no continente, a Casa Lannister, que afinal foi responsável pela morte de Elia e seus filhos. É muito provável, no entanto, que os eventos envolvendo Quentyn em Meereen farão com que esse apoio não exista.
E aí essa subtrama se liga com outras. Primeiro, há outro pretendente Targaryen no continente: Aegon, filho de Rhaegar e Elia (ainda que apenas na aparência, visto que são grandes as chances de ele ser falso). Coincidentemente ou não, Arianne Martell, a irmã que tem uma espécie de rivalidade unilateral com Quentyn, vai ao encontro do Jovem Griff para verificar sua legitimidade, e o príncipe Doran, o chefe da casa, ficou claramente balançado com a notícia da chegada do suposto sobrinho.
Em segundo lugar, quando as notícias dos eventos de Meereen chegarem a Westeros (e elas inevitavelmente chegarão, possivelmente por meio de Archibald Yronwood e Gerris Drinkwater), os Martell provavelmente não interpretarão a situação pelo ponto de vista da rainha Targaryen. O mais plausível é que eles simplesmente vejam os fatos crus: Quentyn foi vitimado por um dos dragões de Daenerys, que rejeitou a oferta de casamento e apoio oferecida por Dorne. Não é difícil imaginar que eles não mais a apoiarão, ainda mais com um concorrente de grande apelo logo à mão.
Há, ainda, uma outra subtrama que Quentyn pôs em andamento: o acordo do “time Daenerys” com o Príncipe Esfarrapado, por Pentos. A cidade, como se sabe, é onde reside o magíster Illyrio, antigo anfitrião de Viserys e Daenerys e responsável por arranjar o casamento entre ela e Drogo, ainda no primeiro livro. No quinto, porém, descobrimos que os planos de Illyrio são outros: ele e Varys na verdade conspiram a favor do Jovem Griff. Com a crescente cisão entre as facções de Daenerys e Aegon, especulo que Pentos também será um palco de confrontos entre esses dois times, possivelmente resultando do desesperado acordo de Quentyn com o comandante dos Soprados pelo Vento.
E as implicações não são apenas no nível do enredo em si. Não seria implausível, ainda, que eventos colocados em movimento pela morte de Quentyn repercutissem não apenas no plano político, mas também no psicológico de Daenerys. É possível que um apoio westerosi a Aegon (enquanto ela possivelmente seria vista como uma invasora perigosa e louca) seja um componente de sua tragédia a nível pessoal, cujo desenvolvimento corrido foi um dos pontos mais criticados da última temporada de Game of Thrones. Também abordei essa possível consequência no arco particular de Daenerys no ensaio “Dois lados da moeda Targaryen”, em que analiso o possível destino da personagem nos dois livros restantes de As Crônicas de Gelo e Fogo (e onde argui, também, que não haverá lados estritamente certos nesse imbróglio entre a Targaryen e os Martell).
O que a adaptação em Game of Thrones pode nos ensinar
Não é incomum, ainda, vermos os mesmos críticos dos livros quatro e cinco de As Crônicas de Gelo e Fogo demonstrarem também insatisfação com a última temporada (ou as últimas) da série Game of Thrones, o que me parece uma contradição enorme.
Nesse sentido, considero sempre de bom tom lembrar que — ao contrário do que muitas vezes se diz Internet afora — a adaptação televisiva começou a caminhar com as próprias pernas muito antes de não haver mais material-fonte para adaptar: isto é, bem antes de a narrativa chegar ao fim de A Dança dos Dragões.
Enquanto as três primeiras temporadas correspondiam de forma razoavelmente fiel às tramas presentes em A Guerra dos Tronos, A Fúria dos Reis e A Tormenta de Espadas, os três primeiros volumes do ciclo de Martin, a partir da quarta as coisas na TV ficaram bastante diferentes de Festim e Dança. Os showrunners decidiram trilhar outro caminho, com arcos do material original de Martin excluídos e novas tramas criadas exclusivamente para a série televisiva, talvez vagamente inspiradas em eventos presentes nos livros.
Parece-me muitíssimo provável que são justamente essas tramas e os personagens menos “frenéticos” do miolo da história, aqueles que compõem o arrefecimento depois do auge do Casamento Vermelho, que darão um substrato emocional e logístico para diversos dos eventos mais “chocantes” e catárticos dos volumes finais, The Winds of Winter e A Dream of Spring. Versões desses eventos desse calibre foram incluídos nas temporadas finais de Game of Thrones, mas muitos espectadores (incluindo não-leitores) os receberam com estranheza, e acredito que justamente pela ausência de uma base.
Durante anos, o comentário geral sobre várias subtramas e personagens relevantes de As Crônicas de Gelo e Fogo que foram excluídos de Game of Thrones foi “isso foi removido porque não é importante para o final”. Em certa medida isso estava certo, mas por outro lado, nem tanto. Sim, provavelmente personagens como o Jovem Griff, Arianne, Quentyn e Victarion são, a rigor, desnecessários para os eventos de uma parte do final acontecerem, se eles estiverem mortos. O que acontece, porém, é que as tramas que os envolvem são parte do caminho para se chegar ao fim idealizado por George R. R. Martin (sobre o qual discorri em um artigo publicado ainda antes do fim da oitava temporada da serie de TV).
É claro que foi possível que Game of Thrones atingisse pontos finais idealizados por Martin sem esses personagens e seus arcos e subtramas, mas isso aconteceu à custa de uma construção mais sólida, de um caminho mais bem trabalhado. Os personagens, elementos e subtramas introduzidos no meio da história fazem parte do enredo por uma razão, não são simplesmente expansão de lore aleatória. A longa e por vezes enfadonha temporada de Daenerys Targaryen em Meereen, por exemplo, existe para que haja uma catarse final que explique ações futuras dela (ainda que não as justifique). Excluindo-se os fundamentos do meio, os finais podem parecer corridos e sem sentido.
A linha de chegada
O intuito maior dessa reflexão, enfim, era mostrar que tachar alguma trama ou personagem em uma história não-concluída de “inútil” ou “encheção de linguiça” é um exercício bastante arriscado e temerário, diante de uma análise que vai um pouquinho só além do superficial e dos meros fatos e eventos daquela narrativa.
Game of Thrones, depois da quarta temporada, parece ter sido exatamente o que muitos dos leitores que rejeitam O Festim dos Corvos e A Dança dos Dragões gostariam que As Crônicas de Gelo e Fogo fosse: uma história “crua” e direta, sem muita “enrolação”, “perda de tempo” ou “fillers“, com momentos chocantes atrás de momentos chocantes, reviravoltas e mais reviravoltas, e pouco ou nenhum tempo para respirar. Não me parece que a rejeição à temporada final seja coincidência diante da falta de substrato depois do primeiro ato da série.
Analisando Quentyn Martell, podemos perceber como o personagem foi não apenas uma solução encontrada para dar base e servir de gatilho para eventos futuros, mas também “aproveitado” por George R. R. Martin para fazer um comentário metatextual.
Quentyn é apenas um entre vários outros exemplos de arcos que à primeira vista podem ser julgados como inúteis ou de pouco acréscimo à trama principal, se não se conhece o final ou no que aquilo vai dar. Poderíamos, igualmente, citar a temporada de Daenerys em Meereen, fundamental para sua jornada, ou a ressurreição de Catelyn Stark como a Senhora Coração de Pedra, que possivelmente também influirá no ciclo de Arya.
No entanto, esse “pré-julgamento” da necessidade ou desnecessidade de uma certa linha narrativa, além de não buscar compreender as razões que levaram o autor a inserir aquilo na história (que, afinal, é dele), não se sustenta sem se conhecer ou sequer tentar especular os fins de uma história.
Assim, meu conselho é no sentido de darmos crédito e, no mínimo, o benefício da dúvida ao autor. Não julguemos subtramas e personagens negativamente sem antes termos certeza da linha de chegada. A meu ver, George R. R. Martin já demonstrou ser mais do que capaz de entregar recompensas depois de seus fundamentos, ainda que por vezes (e ainda bem) não saibamos onde eles vão dar.
]]>https://www.geloefogo.com/2020/07/o-festim-a-danca-e-o-sapo-pre-julgamentos-de-historias-nao-concluidas.html/feed2106775Em quanto tempo ‘The Winds of Winter’ será publicado após George R. R. Martin terminá-lo?
https://www.geloefogo.com/2020/06/em-quanto-tempo-the-winds-of-winter-sera-publicado-apos-george-r-r-martin-termina-lo.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=em-quanto-tempo-the-winds-of-winter-sera-publicado-apos-george-r-r-martin-termina-lo
https://www.geloefogo.com/2020/06/em-quanto-tempo-the-winds-of-winter-sera-publicado-apos-george-r-r-martin-termina-lo.html#respondWed, 24 Jun 2020 15:24:16 +0000https://www.geloefogo.com/?p=107580Uma dúvida que com frequência acomete muitos leitores de As Crônicas de Gelo e Fogo é: o que acontecerá quando […]
Uma dúvida que com frequência acomete muitos leitores de As Crônicas de Gelo e Fogo é: o que acontecerá quando George R. R. Martin finalmente terminar de escrever The Winds of Winter (Os Ventos do Inverno)? Dentro de quanto tempo o livro estará disponível nas livrarias?
A resposta rápida é que o livro provavelmente estará publicado, em suas edições britânica e americana, mais ou menos três meses depois de Martin entregar o original à editora. Trata-se de um prazo anormalmente curto entre a entrega do manuscrito e a publicação, mas não impossível.
A seguir, explicaremos como esse rápido lançamento de The Winds of Winter seria plausível, utilizando como base o processo de publicação dos livros anteriores de As Crônicas de Gelo e Fogo, declarações de Martin e de suas editoras, e um artigo de Chris Lough para a Tor.com. Além disso, especularemos também sobre a possibilidade de uma data de publicação simultânea ou algum prazo para o lançamento de Os Ventos do Inverno no Brasil.
As falas de Martin sobre The Winds of Winter
No segundo dia do já longínquo ano de 2016, George R. R. Martin publicou em seu Not a Blogum extenso e decepcionado post sobre a escrita de The Winds of Winter. Na publicação, Martin evidenciava toda a sua frustração por não ter conseguido terminar o sexto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo a tempo para ser publicado antes da sexta temporada de Game of Thrones, que estrearia em abril daquele ano.
No post, o autor revelava ter centenas de páginas e dúzias de capítulos já escritos, mas dizia que ainda faltavam (no mínimo) meses para terminar a escrita do livro. Esse aparente otimismo não significou muito em termos de lançamento, mas dava a entender que de fato o autor já tinha (e ainda tem) uma quantidade substancial de material pronto.
Lendo o post de Martin, porém, algumas passagens chamam a atenção no que concerne à data de lançamento. Por exemplo:
Todos queríamos que o livro seis de As Crônicas de Gelo e Fogo saísse antes que a sexta temporada da série da HBO fosse ao ar. Presumindo que a série voltaria no início de abril, isso significava que Os Ventos do Inverno teria de ser publicado antes do fim de março, no mais tardar. Para isso acontecer, segundo minhas editoras, elas precisariam do original completo antes do fim de outubro.
Martin se referia, nessa passagem, a outubro do ano de 2015. Mais adiante no post, ele revela que a escrita não andou bem e que ele não conseguiu cumprir esse prazo do Dia das Bruxas. As experientes editoras, no entanto, já haviam se preparado:
Elas já tinham um plano de contingência. Haviam feito planos para acelerar a produção. Me disseram que se eu conseguisse entregar Os Ventos do Inverno até o fim do ano, ainda conseguiriam publicá-lo antes do fim de março.
George ficou imensamente aliviado e confiante de que conseguiria terminar Os Ventos do Inverno com esses dois meses a mais, mas foi novamente incapaz de fazê-lo, e assim a publicação do sexto livro antes da sexta temporada de Game of Thrones tornou-se impossível. Mais adiante, ainda no mesmo post, ele diria:
Mas não, não posso dizer a vocês quando terei terminado, ou quando ele será publicado. A melhor estimativa, com base em nossas conversas anteriores, é que a Bantam (e provavelmente minha editora britânica também) consigam ter a versão em capa dura três meses depois da entrega, se os cronogramas deles permitirem. Mas quando a entrega acontecerá, não posso dizer.
Fica claro, assim, que a Bantam (a editora americana) e a HarperCollins (a editora britânica) são capazes de publicar The Winds of Winter três meses depois de Martin lhes entregar o original. Com efeito, foi mais ou menos isso o que aconteceu com os livros anteriores, o que é particularmente observável à época do término da escrita e do lançamento de A Dance with Dragons (A Dança dos Dragões), em 2011.
Como foi com os livros anteriores?
O intervalo entre a entrega do original e a publicação sempre foi relativamente curto para os livros de As Crônicas de Gelo e Fogo, segundo Adam Whitehad, fã especialista em fantasia e ficção científica e amigo de George R. R. Martin. A afirmação de Whitehead é corroborada pela listagem da coleção de George R. R. Martin na Biblioteca Cushing, da Texas A&M University, para a qual o autor doou muito material.
O primeiro livro da série, A Game of Thrones (A Guerra dos Tronos), foi publicado em agosto de 1996, e Whitehead especula que George tenha terminado a escrita no final de 1995 ou no início de 1996. Na coleção da Cushing, que inclui parciais enviadas por Martin às editoras, o último manuscrito data de outubro de 1995. Se essa for mesmo a data da finalização do original, esse seria o livro da série com o intervalo mais longo entre a entrega e a publicação.
Na coleção da Cushing, o original completo do segundo livro, A Clash of Kings (A Fúria dos Reis), data de maio de 1998, e ele foi publicado em novembro de 1998. O intervalo entre entrega e publicação, portanto, foi de seis meses, já sendo observável uma diminuição no tempo em relação ao primeiro volume.
O anúncio do término da escrita do terceiro livro, A Storm of Swords (A Tormenta de Espadas), veio na segunda metade de abril do ano 2000 (em nossa seção de AFMs, é possível ler o e-mail em que George conta essa boa nova a Elio García). Abril é também a data do original armazenado na Cushing, e é perceptível que o prazo de publicação diminuiu ainda mais: menos de quatro meses depois, em 8 de agosto, o livro três foi publicado pela primeira vez no Reino Unido.
Em 29 de maio de 2005, George R. R. Martin divulgou em seu site que o livro quatro de As Crônicas de Gelo e Fogo não seria mais A Dance with Dragons, como anteriormente planejado. Em um longo post, ele divulgou oficialmente para o mundo que o livro seria dividido em dois, e que o quarto volume de seu ciclo de fantasia épica seria agora A Feast for Crows (O Festim dos Corvos).
Contamos com mais detalhes o processo de escrita de O Festim dos Corvos (e, colateralmente, de A Dança dos Dragões) em um post sobre a história da escrita de As Crônicas de Gelo e Fogo como um todo. Em resumo, porém, George concluiu ter material demais para um só volume e que alguns personagens já tinham arcos completos, enquanto outros estavam em estágios iniciais. A solução foi fazer uma divisão geográfica e por personagens: alguns foram removidos totalmente do quarto livro, e seu material foi passado para o seguinte.
Para os efeitos deste nosso artigo, no entanto, o que importa é que A Feast for Crows foi publicado no Reino Unido em 17 de outubro daquele ano, pela Voyager. Foram, portanto, mais ou menos quatro meses e meio entre a decisão de dividir o livro e sua efetiva publicação. Um prazo parecido com o de Storm, e que seria ainda menor no volume seguinte.
No dia 3 de março do ainda longínquo ano de 2011, George divulgou no Not a Blog que embora A Dance with Dragons ainda não estivesse terminado, a Bantam o publicaria no dia 12 de julho. O autor ressaltou que dessa vez não se tratava de wishful thinking ou de estimativa, mas de uma data de lançamento real. Ao longo de março e abril, George continuou relatando no blog que estava terminando os últimos capítulos da escrita.
A Dance with Dragons foi realmente publicado no dia 12 de julho, nos Estados Unidos e no Reino Unido. Foram, portanto, menos de três meses após a data de entrega anunciada por Martin e Groell, no final de abril.
A produção acelerada
Nos Estados Unidos, a produção de um livro, da entrega do original (manuscrito) até a chegada às livrarias demora, geralmente, de nove meses a um ano. Como, então, seria possível isso acontecer em apenas três meses ou menos para Os Ventos do Inverno?
O artigo de Chris Lough na Tor.com, publicado em 2016, é bastante completo ao explicar o processo normal da publicação de um livro e em quê o lançamento de The Winds of Winter seria diferente desse padrão. Lough discorre longamente sobre o processo de edição, a criação da capa, o marketing, as vendas, a formatação, a impressão e a distribuição. Todas as etapas da produção editorial, enfim.
Não reproduzirei em detalhes, aqui, todos os pontos abordados no artigo, sendo suficiente dizer que Os Ventos do Inverno seria uma exceção pelo status de blockbuster que a série de livros já alcançou, o que já adianta muitas tarefas que seriam feitas do zero para outras publicações, e torna viável que as editoras aloquem mais recursos e pessoal na produção dessa obra, em detrimento de outras.
Tomemos como exemplo a capa. É improvável que haja uma comissão para que um artista ilustre uma nova capa do zero para The Winds of Winter. A Bantam já possui um padrão para os livros de As Crônicas de Gelo e Fogo, e, ao que tudo indica, ele se manterá para o próximo volume. Ainda que esse modelo mude (e isso já ocorreu no lançamento dos volumes anteriores), é muito provável que já se tenha vários projetos engatilhados para a arte de capa.
No que concerne ao marketing, geralmente o planejamento é feito mais ou menos na época em que a capa e o original são entregues, para ser executado nos meses seguintes. Acontece, porém, que um plano de marketing para The Winds of Winter não tem de fazer o público descobrir a obra: a maior parte dos potenciais leitores já conhece muito bem a série de livros de George R. R. Martin, sabe quem é o autor e que o sexto volume é aguardado. Isso não significa, porém, que nada tem de ser feito: há, ainda, os leitores mais casuais, que têm de ser “avisados” por meios comuns sobre o lançamento do livro. O fato de grande parte do marketing hoje ser digital também é um enorme facilitador.
O artigo de Lough foi escrito em 2016, quando a adaptação Game of Thrones ainda não havia terminado, mas me arrisco a dizer que o planejamento de marketing para Os Ventos do Inverno, diante da recepção largamente negativa do fim da série de TV, terá de incluir também uma tentativa de recapturar muitos leitores para o universo dos livros. Nada impossível de ser feito, porém, dada a imensa magnitude de evidência que a adaptação televisiva ainda proporciona ao ciclo de livros.
Na parte de vendas para as livrarias, a coisa também é bem mais fácil do que para um livro “comum”. A editora não precisa convencer nenhum livreiro ou grande conglomerado a comprar The Winds of Winter, apenas confirmar a aquisição. Provavelmente, também, já se tem uma boa ideia da parte numérica propriamente dita, do número de pedidos, tanto pela expertise derivada da publicação de A Dance with Dragons quanto pelos planos engendrados para a publicação em 2016.
A diagramação, necessária para a posterior impressão, demora de duas a seis semanas para ser realizada, mas no caso de Os Ventos de Inverno o processo também pode ser acelerado, tanto com um aumento do orçamento quanto pelo fato de que já há um molde na forma dos volumes anteriores da série.
Quanto à impressão, não haveria grandes mudanças, mas ainda assim seria possível para a editora pagar mais para as gráficas agilizarem o processo. Em um post na Tor.com é possível ver o passo a passo da impressão de outro blockbuster de fantasia, A Memory of Light, décimo quarto e último volume da série A Roda do Tempo.
A edição: o xis da questão
Para além da aceleração dos processos mais logísticos da publicação, que é possível com pré-planejamento e bastante investimento, um dos pontos centrais para o rápido lançamento de The Winds of Winter após o término da escrita reside no processo peculiar de edição dos livros de As Crônicas de Gelo e Fogo.
Via de regra, depois que o autor entrega seu original, o texto passa pelo editor e por um ou mais preparadores, copidesques e revisores. Essas últimas etapas não podem ser puladas nem aceleradas, pois é preciso uma versão final vinda do autor para que elas sejam feitas, mas a edição propriamente dita encontra uma especificidade nas obras de George R. R. Martin.
Geralmente, é só após a entrega do original que os editores e editoras vão ler a obra, analisá-la e fazer ao autor as recomendações que julgam necessárias para a melhoria do texto em geral. Os profissionais muitas vezes fazem anotações pontuais no original para abordar questões específicas, mas podem chegar a fazer sugestões de grandes edições estruturais, na ideia da história em si ou em sua apresentação.
Para ilustrar, seguem alguns exemplos de comentários feitos por Anne Groell a capítulos enviados por George em parciais de A Dance with Dragons. Ela faz comentários que vão desde a repetição de expressões a sugestão de mais contexto e explicação para algumas situações, e até perguntas sobre possíveis teorias. As fotos foram tiradas por _honeybird na coleção de Martin da Cushing. Basta clicar nas fotos para ver as anotações em tamanho maior:
No caso de The Winds of Winter e dos outros livros de As Crônicas de Gelo e Fogo, porém, a peculiaridade é que muito desse trabalho já é feito antes da entrega final. Adam Whitehead, comentando no artigo de Lough, esclareceu o seguinte sobre o processo de escrita e edição de Martin:
GRRM não escreve rascunhos dos livros. Ele escreve rascunhos de capítulos (às vezes uma série de vários capítulos de um mesmo personagem ponto de vista), depois volta, reescreve, lapida e os edita. Aí, avança para outro personagem. Às vezes decisões tomadas para um novo personagem afetam outros capítulos previamente “finalizados”, o que causa atrasos e o efeito borboleta.
Quando ele tem um bloco de capítulos prontos com os quais está 100% satisfeito, que podem variar de dois a duas dúzias, ele os envia para a editora. A editora faz sugestões, que ele então incorpora enquanto ainda trabalha em material novo. Ele também escreve de maneira não-linear, saltando de personagem em personagem ao invés de capítulo em capítulo (por exemplo, ele escreveu quase todos os capítulos de Tyrion no livro 3 durante a escrita do livro 2). É por isso que não dá para ele simplesmente publicar o que já tem para ficar à frente da HBO, já que o que está 100% finalizado agora pode ser os capítulos 2 a 20, 30 a 33, 45 e 60, e ele pode nem ter escrito o prólogo e o primeiro capítulo ainda.
Assim, quando ele escreve o último capítulo do livro e o envia para edição, é só um pedacinho que precisa ser trabalhado, em vez da coisa toda. Ainda se precisa fazer edição linha a linha e revisão de continuidade, mas a edição profunda acontece enquanto a primeira fase de escrita ainda está em andamento.
Isso explica bastante coisa, tanto sobre como o processo é acelerado após a entrega do original quanto por que os livros de Martin demoram tanto. Aparentemente ganha-se tempo após a entrega, mas a edição mais pesada e estrutural ainda existe. A diferença é que ela é feita enquanto George ainda está escrevendo o livro.
Ainda assim, não é como se Martin entregasse o texto e ele já estivesse pronto para diagramação e impressão. Ainda há trabalho a fazer após a entrega do original, tanto por ele mesmo quanto por outros profissionais. No longo post de maio de 2011, além de relatar vários dos “pacotes” de capítulos que enviou para a editora ao longo do período entre 2005 e 2011, o autor revela técnicas que utiliza para polir o texto após a entrega:
Primeiro, minhas editoras e eu tomamos algumas decisões a respeito de onde terminar este livro, que envolveram passar uns capítulos para o próximo volume, The Winds of Winter. Em uma série como A Song of Ice and Fire, sempre há deliberações a fazer a respeito de onde terminar um livro e começar o seguinte, já que se está lidando com única grande e longa história. Será que a cena tal funciona melhor no final de um livro ou no começo do próximo? O personagem tal deveria terminar com um gancho ou com alguma espécie de resolução (seja ela permanente ou temporária)? E daí em diante. E por aí vai.
Em segundo lugar, eu enxuguei o texto. Essa é uma técnica que aprendi em Hollywood, onde meus roteiros sempre ficavam longos demais. “Isso aqui está longo demais,” dizia o estúdio. “Corte oito páginas.” Mas eu odiava perder qualquer das coisas boas — cenas, diálogos, momentos de ação — então ao invés disso eu repassava o roteiro, aparando e compactando linha a linha, palavra por palavra, cortando a gordura e deixando só o músculo. Descobri que esse processo era tão valioso que fiz o mesmo com todos os meus livros desde que saí de Los Angeles. É o último estágio do processo. Terminar o livro, e depois repassá-lo, cortando, cortando, cortando. Sinto que gera um texto mais compacto e robusto. No caso de A Dance with Dragons, meu enxugamento — a maior parte dele feito depois que anunciamos a data de publicação do livro, mas antes de eu entregar os capítulos finais — por si só reduziu o número de páginas em quase oitenta.
Os capítulos removidos da versão final de A Dance with Dragons são aqueles de Os Ventos do Inverno que George já divulgou em eventos, como teaser em edições do quinto livro, em seu site ou no aplicativo oficial de As Crônicas de Gelo e Fogo. Traduzimos esses capítulos e eles estão disponíveis em nossa página especial.
As quase oitenta páginas que George conseguiu reduzir do original enxugando o texto representavam mais ou menos 5% do total. A certa altura, o livro estava chegando às 1700 páginas (pela contagem do processador de texto WordStar, do DOS, que o autor ainda utiliza), um número que impossibilitaria que ele fosse publicado em um só volume.
Em outra passagem desse grande e elucidativo post, a prática de Martin de editar enquanto escreve fica ainda mais clara, quando ele fala sobre as parciais enviadas à editora nos anos imediatamente seguintes à publicação de O Festim dos Corvos:
A parcial mais antiga nos meus arquivos data de janeiro de 2006. Àquela altura eu tinha 542 páginas prontas. Agora, lembrem-se, foi em junho de 2005 que dividi A Feast for Crows em dois livros paralelos, e escrevi meu infame (e, em retrospecto, mal-pensado) posfácio “Enquanto isso, na Muralha…”. A Feast for Crows, quando entregue, tinha 1063 páginas no original. À época da divisão, vendo todo o material de Tyrion e Daenerys que eu tinha removido, concluí que precisava de mais umas 400 e poucas páginas para ter outro livro do mesmo tamanho, e isso foi, provavelmente, o que me fez dizer que o livro seguinte sairia dentro de um ano. Que belas palavras. Nunca mais faço isso.
[…]
E o ano e meio seguintes provaram a bobagem que havia sido minha previsão. A parcial seguinte que enviei para a Bantam, datada de outubro de 2007, tinha 472 páginas. Sim, no ano e meio entre as duas parciais eu consegui DESESCREVER umas setenta páginas. Eu estava fazendo muito mais revisão e reescrita — e reestruturação — nessa época do que progredindo de fato.
Leitores já fizeram comparações prévias de capítulos divulgadas por Martin e as versões finais publicadas, e encontraram diferenças substanciais e (às vezes) bastante interessantes, até para a fundamentação de teorias a respeito dos rumos da história. No reddit, as séries de artigos “How GRRM Rewrites“, de zionius, e “ASOIAF Archives“, de Jen Snow, tratam do assunto em detalhes.
A questão aqui, enfim, é que o processo de escrita e edição de Martin é muito pouco linear. Não apenas o autor não escreve os livros na ordem em que os capítulos são publicados, como também a edição é feita de forma muitas vezes concomitante com a escrita, e não só depois de todo o texto estar pronto. Isso ao mesmo tempo significa uma aparente demora na entrega do original, mas é o que permite também a aceleração da publicação tão logo ele seja entregue.
E o lançamento no Brasil?
Tudo bem, então. Já sabemos que o livro sairá no Reino Unido e nos Estados Unidos mais ou menos três meses depois de George entregar o original. Mas e no Brasil? Quanto tempo depois da publicação em inglês o livro sairá por aqui? Será possível haver lançamento simultâneo de Os Ventos do Inverno em nosso idioma?
Perguntei à editora de George R. R. Martin na Suma, Beatriz d’Oliveira, se já havia algum planejamento específico da casa para The Winds of Winter, mas a resposta foi negativa. Beatriz afirmou que a editora tentará fazer o livro com “a maior qualidade e agilidade possíveis”, mas que como no momento não há previsão da entrega ou publicação dele, “não cabe comentar sobre isso”.
Isso não significa, porém, que não possamos especular, de forma razoavelmente fundamentada, sobre a viabilidade de uma publicação simultânea e possíveis prazos para o lançamento do sexto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo em território brasileiro.
Em primeiro lugar, é importante levarmos em conta que essa será a primeira vez que um livro da série principal será lançado quando todos os anteriores já estão publicados no Brasil. Quando A Dance with Dragons saiu em inglês, em julho de 2011, apenas os dois primeiros volumes de As Crônicas de Gelo e Fogo haviam sido lançados por aqui pela antiga detentora dos direitos, a editora Leya. A Tormenta de Espadas só seria publicado em setembro daquele ano, e O Festim dos Corvos em fevereiro de 2012. Assim, não havia sequer razão para que houvesse publicação simultânea àquela época, e A Dança dos Dragões saiu em edição nacional apenas em junho de 2012.
Como os mais antigos certamente se lembrarão, a primeira impressão do quinto livro saiu com um capítulo a menos, o que levou a editora a fazer um recall da obra. Além disso, com mudanças no processo de tradução, agora feita diretamente do inglês para o português brasileiro, houve diversas inconsistências em relação aos volumes anteriores, que adaptavam a versão de Jorge Candeias para o português europeu.
Em 2014, Martin publicou, em coautoria com Linda Antonsson e Elio García, o tomo enciclopédico O Mundo de Gelo e Fogo. O lançamento em inglês aconteceu em 28 de outubro de 2014, e a edição nacional da Leya saiu menos de um mês depois, em 21 de novembro. Dessa vez, não houve exclusão de um capítulo inteiro, mas o livro de luxo foi publicado com inúmeros erros. Uma edição revisada, mas que ainda manteve diversos dos problemas, saiu em outubro de 2017 (acompanhada de um pôster de genealogias que ajudei a Leya a elaborar).
Em 2018 foi a vez de Fogo & Sangue, livro de história imaginária composto em grande parte por material “extra” de O Mundo de Gelo e Fogo, chegar às livrarias. O grupo Companhia das Letras adquiriu os direitos de publicação da obra (e de todo o catálogo de Martin na Leya) e o publicou no Brasil em simultâneo com o lançamento internacional, no dia 20 de novembro, pelo selo Suma.
Para esse lançamento simultâneo, a equipe de produção da Suma provavelmente teve de empreender esforços similares aos da Bantam e da Harper para a publicação acelerada. Pouco antes do lançamento do livro, entrevistei os tradutores Regiane Winarski e Leonardo Alves, que revelaram que o livro foi dividido em dois, e que cada um gastou mais ou menos um mês para completar a parte que lhe coube. Eles disseram também que faziam envios parciais de suas partes, para que a preparação de texto e a revisão já fossem adiantadas.
Já que isso foi possível com Fogo & Sangue, haveria então a possibilidade de se fazer o mesmo com Os Ventos do Inverno? Na minha opinião, as coisas seriam um pouco mais complicadas para o sexto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo.
Quando George R. R. Martin anunciou que A Dance with Dragons sairia no Reino Unido na mesma data de lançamento dos Estados Unidos, um leitor espanhol perguntou a respeito da publicação em seu país. Parris McBride, esposa de Martin, respondeu o seguinte:
A editora de George na Espanha é a Gigamesh. Você pode descobrir mais no site deles, ou escrevendo diretamente a eles para perguntar sobre os planos de publicação.
Todas as editoras estrangeiras têm de esperar até receberem o original final e revisado para passá-lo ao tradutor. Depois que a tradução ficar pronta, a editora tem que fazer todo o trabalho editorial, decidir quando Dança vai entrar em seu cronograma de publicação, o que não está sob o controle de George.
O maior problema para uma publicação simultânea, assim, reside na data em que as editoras internacionais receberiam o original revisado em inglês. No caso de Fire & Blood, o texto final parece ter ficado pronto bem antes do lançamento (já que há uma foto de Anne Groell com o manuscrito em abril de 2018), mas provavelmente não será assim com o sexto livro da série principal.
Aliás, até em Fogo & Sangue isso foi um problema. Há discrepâncias nos textos das edições internacionais (incluindo a brasileira), pelo fato de algumas últimas correções no texto em inglês terem sido feitas depois de as editoras internacionais já terem recebido o original para tradução. Roberto Mattos, o “Alto Valiriano”, tratou do assunto neste artigo.
No caso de Os Ventos do Inverno, o intervalo entre o recebimento do original final e a data de publicação nos Estados Unidos será, provavelmente, bastante curto. Como vimos anteriormente, a versão final do original de A Dance with Dragons, após copidesque e revisões (a versão que seria enviada para as editoras internacionais) ficou pronta em 19 de maio, e o livro já estava nas prateleiras em 12 de julho. Foram, portanto, menos de dois meses, o que é um prazo praticamente impossível para que qualquer editora traduza, edite, revise, diagrame, imprima e distribua um livro.
A título de exemplo, nenhuma editora internacional publicou A Dança dos Dragões em tradução completa em 2011. A solução encontrada por muitas foi a divisão do livro, em duas ou mais partes. Em Portugal, um dos casos mais rápidos, a Saída de Emergência publicou a primeira metade em setembro de 2011 e a segunda parte apenas em janeiro do ano seguinte.
Dessa forma, não se trata apenas de a editora brasileira querer para conseguir fazer um lançamento simultâneo. Se George novamente anunciar a data de publicação antes de ter o original final em mãos (como fez com Dance, em março de 2011), a equipe de produção poderá se preparar para agilizar os processos logísticos relativos ao lançamento do livro, mas existe um limite para a aceleração do trabalho direto com o texto.
Um livro de mil laudas, como Os Ventos do Inverno provavelmente terá, leva mais ou menos três meses para ser traduzido, por um profissional rápido. A solução encontrada para acelerar o processo em Fogo & Sangue foi dois tradutores trabalharem no texto, cada um em partes diferentes, mas seria essa uma boa estratégia também para The Winds of Winter? O tom mais enciclopédico e objetivo da história imaginária é bem diferente da densidade da série principal, em que todo o estilo do autor se faz presente nos mais diversos personagens.
Ainda que se repita essa escolha e se divida o trabalho entre dois ou mais tradutores, ainda haverá as tarefas de preparação e revisão a serem realizadas também, e em tempo (muito) recorde. Mesmo admitindo que isso seria possível, ainda haveria o risco de um trabalho a toque de caixa resultar em problemas como os que vimos nas primeiras edições de A Dança dos Dragões e O Mundo de Gelo e Fogo.
Assim, se o intervalo curto entre a finalização do original e a data de publicação das edições americana e britânica realmente se mantiver, considero improvável que tenhamos publicação simultânea para The Winds of Winter no Brasil — o que, claro, não é um problema ou algo ruim per se. Com um processo já bastante rápido, acredito que o livro possa ser lançado por aqui alguns meses depois da publicação nos Estados Unidos.
E qual é o prazo, afinal?
Como já adiantamos na introdução, The Winds of Winter provavelmente será publicado nos Estados Unidos e no Reino Unido mais ou menos três meses depois de George R. R. Martin entregar o original à editora, segundo o próprio autor. Prazos similares têm sido o histórico para volumes anteriores de As Crônicas de Gelo e Fogo, e não parece que com o livro seis isso será diferente.
Apesar de reduzido, esse tempo é factível tanto por se tratar de um blockbuster literário, o que torna viável que as editoras concentrem mais esforços e recursos na produção desse livro em detrimento de outros, quanto pelo processo peculiar de escrita e edição de Martin. O autor não apenas não escreve os livros de maneira linear, como também já realiza grande parte do trabalho de edição, que geralmente só seria feito depois da entrega do original, antes dela.
Quanto à publicação de Os Ventos do Inverno no Brasil, a editora Suma ainda não tem planos específicos para o livro, mas de qualquer forma parece improvável que vá haver lançamento simultâneo. O curtíssimo prazo entre a finalização do original em inglês e a data de publicação nos Estados Unidos inviabiliza que as editoras internacionais consigam traduzir, editar, revisar, diagramar, imprimir e distribuir o livro para um lançamento na mesma data em seus países.
George R. R. Martin recentemente revelou estar em um bom momento da escrita de Os Ventos do Inverno, mas não informou data de término ou de lançamento.
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Quando A Guerra dos Tronos começa, somos apresentados a um reino em relativa paz. É final de um longo verão, as colheitas são férteis, o povo está satisfeito e confortável. No entanto, conforme a leitura avança, nos deparamos com um cenário modificado, no qual a guerra se torna cada vez mais uma dura realidade.
Aos poucos, somos apresentados à real história por baixo da aparente calmaria. Um rei que não quer reinar, uma coroa endividada, uma rainha ambiciosa, com uma família poderosa e perigosa, um príncipe cruel… Em suma, um prato cheio para uma crise, e é o que acontece.
No entanto, na maior parte do tempo, tendemos a olhar para o que chamamos de “jogo”, com suas peças valiosas e suas políticas intrincadas, mas o que muitos deixam passar é que a maioria dessas jogadas acontece à custa de muitos plebeus inocentes, que nada têm a ver com elas.
Quem paga pela guerra?
Na metade da trama de A Guerra dos Tronos, Catelyn Stark sequestra Tyrion Lannister em uma estalagem. Isso foi um dos estopins para que tudo o que vimos até aqui. É tudo muito empolgante, afinal, finalmente as coisas começam a esquentar a partir daí. Olhando o quadro geral, temos a perspectiva constante dos nobres e suas políticas de retaliação contra as ofensas sofridas. Um dos marcos é a cena em que Ned Stark é ferido enquanto tem uma desavença com Jaime Lannister.
Tudo isso é perceptível, afinal, estamos vendo aquilo acontecendo em primeira mão, pela perspectiva de um dos envolvidos. No entanto, Martin não se limita a nos dar apenas essa visão. Logo em seguida, descobrimos que a ação de Jaime não foi a única resposta ao sequestro de um Lannister. Houve outras consequências, e elas são sentidas especialmente pelos indivíduos comuns.
Os aldeãos estavam ajoelhados: homens, mulheres e crianças, igualmente esfarrapados e ensanguentados, com o rosto distorcido pelo medo. (…)
— Salteadores, Lorde Varys? — a voz de Sor Raymun Darry pingava desprezo. — Ah, eram salteadores, para lá de qualquer dúvida. Salteadores Lannister.
Ned conseguia sentir o desconforto no salão enquanto, dos grandes senhores aos criados, todos se esforçavam para escutar. Não podia fingir surpresa. O Ocidente transformara—se num barril de pólvora desde que Catelyn capturara Tyrion Lannister. Quer Correrrio quer Rochedo Casterly tinham convocado os vassalos, e reuniam—se exércitos no desfiladeiro sob o Dente Dourado. Fora apenas uma questão de tempo até que o sangue começasse a jorrar. (…)
— Isto é tudo o que resta do castro de Sherrer, Lorde Eddard. Os outros estão mortos, tal como o povo de Vila Vêneda e do Vau do Saltimbanco.
(…)
— Eu tenho… tinha… eu tinha uma cervejaria, senhor, em Sherrer, junto à ponte de pedra. A melhor cerveja ao sul do Gargalo, todos diziam, com a vossa licença, senhor. Agora já não existe, como todo o resto, senhor. Eles chegaram, beberam o que quiseram e derramaram o resto antes de atear fogo ao meu telhado, e teriam também derramado meu sangue se me tivessem apanhado, senhor. (…) Eles queimaram tudo. Saíram a cavalo na escuridão, do sul, e atearam fogo tanto nos campos como nas casas, matando quem tentava impedi-los. Mas não eram salteadores, não, senhor. Não faziam tenção de nos roubar o gado, estes não, mataram minha vaca leiteira no lugar em que a encontraram e a deixaram para os corvos e as moscas. (…) Mataram meu aprendiz. Perseguiram-no a cavalo, de um lado para o outro, pelos campos, espetando-lhe as lanças como se fosse um jogo, eles rindo e o rapaz tropeçando e gritando, até que o grande o trespassou.
A jovem ajoelhada ergueu a cabeça para Ned, muito acima dela, no trono.
— Também mataram minha mãe, Vossa Graça. E eles… eles… — a voz extinguiu-se, como se se tivesse esquecido do que ia dizer, e começou a soluçar.
Sor Raymun Darry retomou a história.
— Em Vila Vêneda o povo procurou refúgio no castro, mas os muros eram de madeira. Os atacantes empilharam palha contra a madeira e queimaram todos vivos. Quando as pessoas de Vêneda abriram os portões para fugir do fogo, foram abatidas com setas à medida que corriam, até mesmo mulheres com bebês de colo.
— Ah, que horror — murmurou Varys. — Quão cruéis podem ser os homens?
(A Guerra dos Tronos, Eddard XI)
Aqui, temos o primeiro vislumbre de como se começa uma guerra. Para atingir os grandes lordes, não há melhor forma do que atacar seus vassalos. Não importa que esses vassalos não tenham ligação nenhuma com a disputa pessoal. A vida deles não importa, o que importa é atingir um objetivo.
O questionamento feito por Varys é um que eu me peguei fazendo inúmeras vezes no decorrer de minhas leituras. A partir do segundo livro, as tragédias e penúrias que são impostas ao povo comum tornam-se cada vez mais frequentes e duras. Em dado momento, fica impossível ignorá-las. Como tantos outros escritores, Martin poderia ter escolhido trabalhar apenas a parte política e ativa da guerra, mas ele fez questão de ir além disso e nos mostrar a realidade de cada uma dessas pessoas ali. Não apenas os ditos jogadores e suas peças, mas também aqueles que muitas das vezes são usados como mero tabuleiro por onde eles passam por cima.
Enquanto nós ansiamos por ver as batalhas e os próximos movimentos de cada personagem e vibramos com as investidas de nossos lados favoritos na narrativa, recebemos várias menções à situação real daqueles que estão pagando o preço por isso. Por exemplo, é extasiante ler os Lannister enfrentando problemas em Porto Real. Mas esses problemas se devem a ações cruéis que seus opositores tomaram contra seus domínios, e consequentemente, contra seu povo.
Quando Renly Baratheon fechou as estradas para a cidade, foi divertido ler Cersei, Tyrion e o Pequeno Conselho tentarem manter o controle. No entanto, também foi isso que gerou a miséria, a fome e causou a morte daqueles que viviam lá. Não no palácio, é claro que não! Eles tinham comida, mantinham suas posições e luxos. Mas já as pessoas comuns, o povo, aqueles que não eram prestigiados pelo alto nascimento…
Com metade da viagem percorrida, uma mulher em prantos forçou a passagem por entre dois guardas e correu para a rua, à frente do rei e de seus companheiros, segurando o cadáver do bebê morto acima da cabeça. Estava azul e inchado, grotesco, mas o verdadeiro horror eram os olhos da mãe. (…) A mulher nem sequer piscou. Seus braços muito magros tremiam com o peso morto do filho. (…) De ambos os lados da rua, a multidão encapelou—se contra os cabos das lanças enquanto os homens de mantos dourados lutavam para manter a fileira. Pedras, bosta e coisas piores zumbiam por cima das cabeças. ‘Dê—nos comida!’, guinchou uma mulher. ‘Pão!’ trovejou um homem atrás dela. (…) Num instante, mil vozes juntaram—se ao cântico. Rei Joffrey, Rei Robb e Rei Stannis foram esquecidos, e o Rei Pão governou sozinho. ‘Pão!’, gritaram. ‘Pão, pão!’.
(A Fúria dos Reis, Tyrion IX)
Essa passagem é especialmente interessante porque casa perfeitamente bem com uma outra citação que temos nos livros.
O povo reza por chuva, filhos saudáveis e um verão que nunca termine. Não lhe interessa se os grandes senhores lutam suas guerras de tronos, desde que seja deixado em paz — encolheu os ombros. — E nunca é.
(A Guerra dos Tronos, Daenerys III)
O povo paga pelo jogo, e paga caro. Perdem suas casas, suas colheitas, sua liberdade e, frequentemente, até suas vidas. Não lhes resta nada senão tentar sobreviver da melhor maneira que podem. Mas em uma guerra, ninguém está a salvo.
Não existem heróis e vilões
Como seria agradável poder torcer sem culpa, apenas ansiando pela vitória de nossos favoritos, não é? Mas não é assim que funciona. Bem, é claro que é totalmente possível ainda ter lados favoritos e acreditar que uma causa é mais justa do que a outra. No entanto, tratando-se de batalhas, o pragmatismo fala mais alto. Para vencer, tudo é válido, mas não significa que deva ser aplaudido.
— Isso não foi cavalheiresco — disse Brienne quando se aproximaram o suficiente para ver com clareza. — Nenhum cavaleiro de verdade perdoaria uma carnificina tão cruel.
— Os verdadeiros cavaleiros veem coisas piores sempre que partem para a guerra, garota — disse Jaime. — E, sim, fazem coisas piores. (…)
Os cadáveres pendiam sobre suas cabeças, amadurecendo na morte como frutos fétidos. (…) A garota estava fitando uma das mortas. Jaime aproximou-se com seus pequenos e hesitantes passinhos, a única forma que a corrente permitia. Quando viu a tosca tabuleta pendurada no pescoço do cadáver mais alto, sorriu.
— Deitaram—se com Leões — leu. — Oh, sim, mulher, isso foi muito pouco cavalheiresco… mas, foi feito pelo seu lado, e não pelo meu.
(A Tormenta de Espadas, Jaime I)
Muitas vezes, o choque do leitor chega junto com o do personagem. Devido ao fato de termos preferências e lados, estamos pré-condicionados a considerar aqueles por quem torcemos como melhores do que seus rivais. Porém, Martin faz questão de quebrar essa idealização, tanto para nós quanto para os seus personagens. O trecho acima é um dos primeiros choques de realidade que Brienne sofre nos livros. Além de ser forçada a repensar sua ideia sobre o cavalheirismo, ela precisa aceitar que o lado pelo qual ela está lutando — ou seja, os Starks — é capaz de cometer tantas atrocidades quanto os adversários.
É chocante, mas necessário. Para o povo comum, não importa qual é o estandarte de quem os está matando. Tudo o que eles sabem é que mais uma vez estão sendo atacados e mortos porque aqueles que estão acima deles resolveram brigar entre si.
— Matou-os?
— E eu lhe diria se o tivesse matado? — o homem escarrou. — O mais provável é que tenha sido trabalho de lobos, ou talvez de leões, qual é a diferença? (…)
— Se fosse vocês, ficaria bem longe da estrada do rei — prosseguiu o homem. — E pior do que ruim, segundo dizem. Tanto lobos como leões, e bandos de homens sem bandeira que atacam qualquer um que consigam apanhar.
(A Tormenta de Espadas, Jaime II)
Brienne não é a única personagem a ser confrontada com essa realidade. Arya também recebe sua dose de choque de realidade durante sua árdua jornada. Ela – assim como nós – acaba por ser confrontada com os piores lados de todos.
A Montanha chegava ao armazém depois do desjejum e escolhia um dos prisioneiros para interrogatório. As pessoas da aldeia não o olhavam. Talvez pensassem que se não o vissem, ele não as veria… Mas via-as de qualquer jeito, e escolhia quem quisesse. Não havia esconderijos, não havia truques a usar, não havia como estar a salvo. Uma moça dividiu a cama com um soldado durante três noites consecutivas; a Montanha a escolheu no quarto dia, e o soldado nada disse. Um velho sorridente remendava suas roupas e tagarelava a respeito do filho que estaria a serviço dos mantos dourados em Porto Real.
— E um homem do rei, ah, pois é — dizia — um bom homem do rei como eu, todo por Joffrey — dizia isso com tanta frequência que os outros cativos começaram a chamá-lo de Todo-por-Joffrey sempre que os guardas não estavam ouvindo. Todo-por-Joffrey foi escolhido no quinto dia. Uma jovem mãe com o rosto marcado pela varíola tinha se oferecido para lhes contar voluntariamente tudo o que sabia se prometessem não fazer mal à sua filha. A Montanha a ouviu, e, na manhã seguinte, escolheu a filha, para se assegurar de que a mulher não tinha guardado nada para si.
(A Fúria dos Reis, Arya VI)
Não existe saída para o povo comum. Ainda que tentem se colocar de um lado ou de outro, não faz diferença para aqueles que estão no topo. No fim, eles são considerados apenas meros efeitos colaterais de um quadro muito maior, e, dessa forma, sua existência acaba sendo desvalorizada. Em uma obra com um enredo político tão intrincado como são as As Crônicas de Gelo e Fogo, teria sido mais fácil ignorar esse aspecto social, mas é muito importante que Martin tenha escolhido trabalhar esse tipo de narrativa, pois embora seja dolorosa de se ler, mostra uma realidade que a grande maioria das pessoas prefere esquecer ou ignorar.
Nós somos essas pessoas comuns, aqueles que sofreriam se estivéssemos nesse cenário terrível. Não haveria justiça, misericórdia ou piedade. Não precisaria haver culpa ou crime para sofrer punições também. A dura verdade é que a maioria das pessoas não se importa com os civis, com o que eles desejam, sonham ou esperam do futuro. Eles não tem autonomia nesse universo. Como é muito bem pontuado por Gendry:
Os cavaleiros e fidalgos tomam-se uns aos outros como cativos e pagam resgates, mas não se importam se gente como nós se rende ou não.
(A Fúria dos Reis, Arya V)
E essa é uma triste verdade.
A fuga religiosa
Então, como essas pessoas que não têm absolutamente nada podem se defender? Fazendo um paralelo histórico, é seguro dizer que as pessoas se apegavam àquilo que lhes daria conforto, se não nessa vida, pelo menos na próxima; em suma, se apegavam à fé e tornavam-se fortes críticos de todos aqueles que pareciam levar uma vida contrária a ela. Na história, cada vez que as coisas começavam a parecer estar fora de controle, uma reação religiosa ocorria. Por exemplo, o cronista espanhol, Alfonso de Palencia, escreveu criticamente, após fazer uma visita a Roma em 1471, que:
Nos dias em que quase o mundo inteiro seguia a religião católica, os prelados da Igreja vestiam—se com decoro; mas agora, quando toda a Ásia, África e um terço da Europa seguem a lua crescente [do Islã], quando a Grande Turquia ataca os católicos e diariamente nos coloca em dificuldades cada vez maiores, de modo que o medo agora se estende até mesmo para dentro dos próprios muros de Roma, nossos modelos, homens que deveriam dar o exemplo, entregam—se ao luxo e, como se não tivessem nada com que se preocupar no mundo, preocupam-se com seus trajes escandalosos e se rendem a uma dissolução digna de total condenação. (apud TREMLETT, 2018, p.84).
O próprio Martin também já falou sobre isso, em relação ao cenário atual de sua obra:
“Se você olhar para a história da igreja na Idade Média, teve períodos em que havia papas e bispos muito mundanos e corruptos. Pessoas que não eram espirituais, mas políticas. Eles estavam jogando sua própria versão do jogo dos tronos com os reis e os lordes. Mas você também teve períodos de reavivamento ou reforma religiosa – a maior delas foi a Reforma Protestante, que levou à divisão da igreja. (…) É o que você está vendo aqui em Westeros.”
O que acontece em Westeros nas crônicas também é semelhante ao que ocorreu na cidade de Florença no século XV, na qual os cidadãos — após sofrerem uma série de crises econômicas e o choque da inserção da nova cultura renascentista e humanista —, passaram a seguir os ditames do frade Girolamo Savonarola, que condenava ardentemente os excessos da nobreza e quaisquer apego a bens materiais. Digo “ardentemente” pois o mesmo ficou famoso por suas fogueiras das vaidades, na qual os cidadãos de diversas classes passaram a destruir sistematicamente seus bens como; como espelhos, cosméticos, joias e roupas finas, ou qualquer obra de arte, instrumentos musicais, livros e qualquer outro objeto de valor disponível no momento. Embora Savonarola tenha sido um problema para os nobres, ele foi amplamente aceito pelas camadas populares da sociedade florentina, que se entregaram cada vez mais aos seus ensinamentos e práticas pouco usuais.
Considerando isso, é visível que tal como na história, também recebemos uma resposta como essa nos livros. A crise econômica, as guerras, a aparição de uma nova religião desconhecida pela maioria e todos os outros contratempos passam a ser considerados algum tipo de punição divina.
E já há muito que alguém devia fazê-lo, não lhe parece? De que chamaria aquele deus vermelho que Stannis adora, se não de demônio? A Fé deve opor-se a um mal como este.”
(O Festim dos Corvos, Cersei IV).
O crescimento do fundamentalismo religioso em Westeros foi evidente no decorrer dos livros, chegando ao ponto culminante em O Festim dos Corvos. No entanto, já havia indícios de problemas futuros. Inicialmente, é claro, eles estavam revoltados. Até onde sabemos, vários dos septões eram corruptos, perdulários, gananciosos e se preocupavam mais com conforto e fortunas do que com cumprir seu papel social. O maior exemplo disso era o próprio Alto Septão, que acabou perdendo a vida ao ser confrontado por uma multidão faminta durante o motim em Porto Real.
A luz do sol incidiu na coroa de cristal do homem e derramou arcos—íris sobre o rosto erguido de Myrcella. O Alto Septão era tão gordo como uma bola, e conseguia ser ainda mais pomposo e loquaz do que Pycelle. (…) Lorde Gyles, com o rosto mais cinzento do que nunca, gaguejou uma história sobre ter visto o Alto Septão sendo derrubado da liteira, gritando preces enquanto a multidão o arrastava (…) A lista dos mortos era encabeçada pelo Alto Septão, destroçado enquanto gritava aos seus deuses por misericórdia. Homens famintos olham com olhos duros para sacerdotes gordos demais para andar.
(A Fúria dos Reis, Tyrion IX)
Devido a isso, não surpreende o fato de eles terem buscado uma figura que se mostrasse mais firme e mais reta em seguir os caminhos dos Sete, e encontraram o que buscavam naquele que conhecemos como o Alto Pardal, que, desde sua primeira aparição, já demonstra ser diferente de seus antecessores.
Seus seguidores também se mostram mais difíceis de lidar do que se imaginava. São homens e mulheres comuns, que não tinham nada, mas se encontraram na Fé. Ainda que seus métodos pareçam bizarros e perturbadores, para eles, fazem todo o sentido.
Cersei ficou espantada. Qyburn trouxera-lhe relatórios sobre a quantidade de pardais, mas ouvir falar dos números era uma coisa, e outra era vê-los. Centenas e mais centenas estavam acampados na praça, nos jardins. Suas fogueiras enchiam o ar de fumaça e cheiros ruins. Tendas de ráfia e cabanas miseráveis feitas de lama e pedaços de madeira sujavam o imaculado mármore branco. Estavam aninhados até nos degraus, sob as altas portas do Grande Septo. (…) Quando viu o que tinham feito a Baelor, o Adorado, a rainha teve motivos para se arrepender do seu coração suave. A grande estátua de mármore, que durante cem anos sorrira serenamente sobre a praça, estava enterrada até a cintura numa pilha de ossos e crânios. Alguns dos crânios mostravam pedaços de carne ainda agarrada. Um corvo encontrava-se pousado em um desses crânios, desfrutando de um banquete seco com uma consistência de couro. Havia moscas por todo lado.
— Que significa isto? — perguntou Cersei à multidão. — Pretendem enterrar o Abençoado Baelor numa montanha de carniça?
Um homem perneta deu um passo em frente, apoiado numa muleta de madeira.
— Vossa Graça, esses são os ossos de homens e mulheres santos, assassinados devido à sua fé, Septões, septãs, irmãos negros, pardos e verdes, irmãs brancas, azuis e cinzentas. Alguns foram enforcados, outros estripados. Septos foram pilhados, donzelas e mães foram violadas por homens ímpios e adoradores de demônios. Até irmãs silenciosas foram molestadas. A Mãe no Céu chora em angústia. Trouxemos seus ossos de todo o reino até aqui para servir de testemunho à agonia da Santa Fé.
Cersei sentia o peso dos olhos sobre si.
— O rei saberá dessas atrocidades — respondeu solenemente. — Tommen partilhará de sua indignação. Isto é obra de Stannis e de sua bruxa vermelha, e dos nortenhos selvagens que adoram árvores e lobos — ergueu a voz: — Bom povo, seus mortos serão vingados!
Alguns aclamaram, mas só alguns.
— Não pedimos vingança por nossos mortos — disse o perneta — apenas proteção para os vivos. Para os septos e lugares santos.
(O Festim dos Corvos, Cersei VI)
As pessoas simplesmente estão cansadas. Cansadas da fome, da destruição e de tudo que a guerra trás. Eles estão prontos para se agarrar a qualquer coisa que pareça oferecer uma saída para suas dores. Por isso, a fuga religiosa se encaixa perfeitamente na mentalidade deles. Em momentos de dor, muitos se voltam para uma entidade superior para buscar justificativa ou uma saída esperançosa para o que estão passando. Se estão sofrendo, assumem que é algum tipo de punição por ações erradas, e por outra lado, também encontram alívio na ideia de que podem mudar isso caso mudem sua forma de viver e agir. E se no fim de tudo isso o sofrimento permanecer, então encontram forças na ideia de uma vida melhor após a morte.
Em Westeros, as pessoas estão num ponto de desgaste total e nesse meio tempo surgiu alguém, uma figura que parecia entender seu sofrimento e que parecia apresentar uma solução para a crise que eles se encontravam. Quando olhamos o quadro geral, não é difícil entender por que o Alto Pardal tem tantos apoiadores fiéis, considerando sua figura rígida.
— Septão Raynard? — a rainha quase não conseguia crer no que via. — O que faz de joelhos?
— Está limpando o chão — o homem que falou era vários centímetros mais baixo do que a rainha e magro como um pau de vassoura. — O trabalho é uma forma de prece, muito do agrado do Ferreiro — o homem se levantou, de escova na mão. — Vossa Graça. Temos estado à sua espera.
A barba do homem era grisalha, castanha e cortada curta, os cabelos atados num nó apertado por trás da cabeça. Embora as vestes que envergava estivessem limpas, estavam também puídas e remendadas. Enrolara as mangas até os cotovelos enquanto esfregava o chão, mas abaixo dos joelhos o pano estava encharcado. O rosto era marcadamente pontiagudo, com olhos encovados castanhos como lama. Seus pés estão nus, Cersei percebeu, consternada. E também eram hediondos, umas coisas duras e coriáceas, tornadas grossas por calos.
— É você Sua Alta Santidade?
— Sim. Pai, dê-me e forças. A rainha sabia que devia se ajoelhar, mas o chão estava molhado com sabão e água suja, e ela não desejava estragar o vestido. Lançou um relance aos velhos de joelhos.
— Não vejo o meu amigo, o Septão Torbert.
— Septão Torbert foi confinado a uma cela de penitente, a pão e água. É um pecado que um homem seja tão gordo quando metade do reino passa fome.
Cersei já aguentara o suficiente por um dia. Deixou-o ver sua ira.
— É assim que me cumprimenta? Com uma escova na mão, pingando água? Sabe quem eu sou?
— Vossa Graça é a Rainha Regente dos Sete Reinos — o homem disse — mas na Estrela de Sete Pontas está escrito que tal como os homens se dobram perante seus senhores e os senhores perante seus reis, assim os reis e as rainhas devem se dobrar perante os Sete Que São Um Só. Está me dizendo para ajoelhar? Caso estivesse, não a conhecia muito bem.
— O certo seria que tivesse me cumprimentado na escada, com suas melhores vestes e a coroa de cristal na cabeça.
— Não temos nenhuma coroa, Vossa Graça.
Suas sobrancelhas franziram-se mais.
— O senhor meu pai deu ao seu antecessor uma coroa de rara beleza, trabalhada em cristal e ouro tecido.
— E por esta dádiva honramos seu pai em nossas preces — disse o Alto Septão — mas os pobres precisam mais de comida na barriga do que nós precisamos de ouro e cristal na cabeça. A coroa foi vendida. O mesmo aconteceu às outras que tínhamos nas câmaras subterrâneas, bem como todos os nossos anéis e vestes de pano de ouro e prata. A lã manterá os homens igualmente quentes. Foi para isso que os Sete nos deram as ovelhas. Ele é completamente louco. Os Mais Devotos também deviam estar para eleger aquela criatura… Loucos, ou aterrorizados.”
(O Festim dos Corvos, Cersei VI)
Para Cersei e a maioria dos outros nobres que estavam acostumados com os Alto Septões sendo facilmente manuseados, encontrar o Alto Pardal é chocante. Ele é um homem duro, que mais parece um camponês do que um religioso de alto escalão, e não parece interessado em nenhum bem terreno. Como isso é possível? No entanto, é exatamente isso o que ele é.
Conforme a leitura avança, cada vez mais vamos sendo chocados com essa figura peculiar e todas as suas ações, da mesma forma que acontece com os personagens. É possível que isso ocorra porque, no decorrer dos livros, ficamos acostumados aos personagens ambiciosos e com uma agenda particular de planos, mas aqui parece que encontramos alguém que está lutando contra isso. De certa forma, ele é o vilão do arco de Porto Real, mas se levarmos em conta suas motivações, não parece certo considerá-lo assim.
Nessa altura, teria sido fácil visualizar a figura dele como um aproveitador hipócrita, mas mais uma vez, Martin nos traz um personagem tão complexo quanto qualquer outro. Até o presente momento, ele tem demonstrado ser exatamente o que aparenta. Um extremista religioso que acredita fielmente estar fazendo o trabalho divino e assume para si a responsabilidade de livrar a população de seus flagelos físicos e espirituais. Para o leitor, é chocante e horrível, mas para os personagens invisíveis da história, ele representa a esperança. É claro que isso não significa que devemos concordar com seus métodos, e nem que ele esteja isento de críticas. O que muitas vezes acontece, porém, é sua figura receber uma avaliação negativa pelo seu extremismo religioso, mas seu papel social ser ignorado.
Estamos falando de uma população constantemente massacrada e aterrorizada com as ações dos grandes lordes sobre si, e que finalmente encontrou alguém que está contra isso. Alguém disposto a não apenas prometer, mas realmente abrir mão do que tem, incluindo as posses e riquezas que sua posição lhe oferece, para alimentá-los, mantê-los seguros e, principalmente, alguém que parece forte o suficiente para fazer os poderosos senhores pagarem pelos crimes que cometem contra o povo comum. Quando consideramos tudo isso, podemos mesmo culpar a população westerosi por apoiá-lo?
A Fé conquistou nesse momento um poder e autonomia que não tinha há séculos, e isso tudo ocorreu graças à destruição causada pela guerra e à insatisfação popular com aqueles que, em tese, deveriam protegê-los. Não parece que eles serão facilmente desestimulados, então podemos esperar mais alguns choques entre essas pessoas e os futuros reis e rainhas no decorrer dos próximos livros. Ouso dizer que o apoio deles será crucial para aqueles que quiserem tentar sua vez no trono. A que preço, porém, só podemos imaginar…
Exércitos de homens quebrados
Para qualquer pessoa que goste de história como eu, é sempre estimulante ler sobre as grandes batalhas que mudaram o curso dela. Nunca deixo de ficar fascinada com a grandiosidade daquilo, e, na imaginação, tudo parece empolgante. Ou pelo menos parecia. Infelizmente, preciso confessar que um monólogo presente nos livros acabou com esse sentimento para mim. Ainda gosto de ler sobre elas, mas agora, faço isso imaginando que cada uma daquelas baixas era realmente uma pessoa, não apenas um número a ser contabilizado pela historiografia.
Um dos maiores equívocos que cometemos é assumir que exércitos são uma massa única e sem identidade própria, lutando por um ideal comum. No entanto, não é isso o que acontece. A maior parte deles é constituído de homens comuns, que mal sabem sobre o que estão lutando. Eles estão ali não porque querem ou acreditam na causa de seus senhores. Estão lá porque são obrigados a estar. Mais uma vez, teria sido fácil ignorar essa faceta se não tivéssemos recebido todo um capítulo para nos fazer pensar sobre suas figuras.
— Parece mais um cavaleiro do que um homem santo — estava escrito em seu peito e ombros e naquele grande maxilar quadrado. — Por que desistiu da cavalaria?
— Nunca a escolhi. Meu pai era um cavaleiro, assim como o dele tinha sido. E meus irmãos também, todos eles. Fui treinado para a batalha desde o dia em que me acharam com idade suficiente para pegar em uma espada de madeira. Vi minha cota de batalhas, e não me desgracei. Também tive mulheres, e então me desgracei, pois algumas tomei pela força. Havia uma garota com quem desejava me casar, a filha mais nova de um pequeno lorde, mas era o terceiro filho de meu pai e não tinha nem terras nem riquezas para lhe oferecer… só uma espada, um cavalo, um escudo. Tudo somado, era um triste homem. Quando não estava lutando, estava bêbado. Minha vida era escrita em vermelho, em sangue e vinho.
— Quando foi que mudou? — Brienne quis saber.
— Quando morri na Batalha do Tridente, Lutei pelo Príncipe Rhaegar, embora ele não tivesse chegado a saber meu nome. Não lhe saberia dizer o porquê, exceto que o nobre que eu servia estava a serviço de um nobre que servia um nobre que decidira apoiar o dragão e não o veado. Se tivesse decidido de outra forma, eu poderia ter estado na outra margem do rio. A batalha foi uma coisa sangrenta. Os cantores querem nos fazer acreditar que foi apenas Rhaegar e Robert a lutar no meio da correnteza por uma mulher que ambos afirmavam amar, mas asseguro—lhe que outros homens também combatiam, e eu fui um deles.”
(O Festim dos Corvos, Brienne VI)
Soldados comuns lutam por quem seus senhores escolhe lutar. Da mesma forma que aqueles deixados para trás numa guerra, eles não tem autonomia para escolher seus “lados”. São homens e meninos comuns, que nunca lutaram na vida, que só conhecem seus pequenos vilarejos e que, de uma hora para outra, são obrigados a entrar em marcha e ir morrer numa disputa que não é deles.
Essa é a vida do soldado comum, tão cruel e trágica como a civil que eles deixam para trás. E o que eles podem fazer? Nada, a não ser continuar lutando e sonhar com o dia em que a guerra chegue ao fim. Mesmo o tratamento dado aos soldados comuns é diferente daqueles recebidos pelos soldados nobres. Eles recebem o mínimo possível e na maioria das vezes são deixados a própria sorte. Temos exemplos disso durante a marcha para Winterfell:
E não havia comida, além dos cavalos que morriam, dos peixes pegos nos lagos (menos a cada dia) e qualquer outro escasso sustento que os forrageadores conseguissem encontrar nessas florestas frias e mortas. Com os cavaleiros do rei e os senhores exigindo para si a “parte do leão” da carne de cavalo, pouco e ainda menos restava para os homens comuns. Não era de se admirar, portanto, que tivessem começado a comer seus próprios mortos.
(A Dança dos Dragões, Asha III)
Dessa forma, não deveria ser surpresa a existência daqueles que se quebram no caminho. Os que não aguentam mais e desertam. Mas após isso, o que resta para eles? A vida de um fora-da-lei? Como voltar para casa se, em muitos casos, estão tão longe que nem se lembram mais de onde vieram? E suas famílias? Ainda vivas? Não há como saber, e isso os destrói. É aqui que temos a transição de homens comuns para máquinas de matar.
— Sor? Senhora? — Podrick os interrompeu. — Um desertor é um fora da lei?
— Mais ou menos — Brienne respondeu.
O Septão Meribald discordou.
— Mais menos do que mais. Há muitas espécies de fora da lei, assim como há muitas espécies de pássaros. Tanto um borrelho como uma águia marinha têm asas, mas não são a mesma coisa. Os cantores adoram cantar sobre bons homens forçados a sair da lei para combater um senhor malvado qualquer, mas a maioria dos fora da lei são mais parecidos com esse Cão de Caça voraz do que com o senhor do relâmpago. São homens maus, movidos pela ganância, amargurados pela maldade, que desprezam os deuses e só se preocupam consigo. Os desertores são mais merecedores de nossa piedade, embora possam ser igualmente perigosos. Quase todos são plebeus, gente simples que nunca tinha estado a mais de uma milha da casa onde nasceu até que algum senhor veio levá-los para a guerra. Mal calçados e malvestidos, partem marchando sob seus estandartes, muitas vezes sem melhores armas do que uma foice, uma enxada afiada ou um martelo que eles mesmos fizeram atando uma pedra a um pedaço de madeira com tiras de pele de animal.
Irmãos marcham com irmãos, filhos com pais, amigos com amigos. Ouviram as canções e as histórias, e por isso vão se embora de coração ansioso, sonhando com as maravilhas que verão, com as riquezas e as glórias que conquistarão. A guerra parece uma bela aventura, a melhor que a maioria deles alguma vez conhecerá. Então experimentam o sabor da batalha. Para alguns, essa única experiência é suficiente para quebrá-los. Outros resistem durante anos, até perderem a conta de todas as batalhas em que lutaram, mas mesmo um homem que sobreviveu a cem combates pode fugir no centésimo primeiro. Irmãos veem os irmãos morrer, pais perdem os filhos, amigos veem os amigos tentando manter as entranhas dentro do corpo depois de serem rasgados por um machado. Veem o senhor que os levou para aquele lugar abatido, e outro senhor qualquer grita que agora pertencem a ele. São feridos, e quando a ferida ainda está apenas meio cicatrizada, sofrem outro ferimento. Nunca há o suficiente para comer, os sapatos se desfazem devido às marchas, as roupas estão rasgadas e apodrecendo, e metade deles anda cagando nos calções por beber água ruim. Se quiserem botas novas ou um manto mais quente ou talvez um meio-elmo de ferro enferrujado, têm de tirá-los de um cadáver, e não demora muito para que comecem também a roubar dos vivos, do povo em cujas terras combatem, homens muito parecidos com os que eram. Matam suas ovelhas e roubam suas galinhas, e daí é um pequeno passo até levarem também suas filhas.
E um dia, olham ao redor e percebem que todos os seus amigos e familiares se foram, que estão lutando ao lado de estranhos, sob um estandarte que quase nem reconhecem. Não sabem onde estão nem como voltar para casa, e o senhor por quem combatem não sabe seus nomes, mas ali vem ele, gritando-lhes para se posicionarem, para fazerem uma fileira com as lanças, foices e enxadas afiadas, para aguentarem. E os cavaleiros caem sobre eles, homens sem rosto vestidos de aço, e o trovão de ferro de seu ataque parece encher o mundo… E o homem quebra. Vira-se e foge, ou rasteja para longe, depois por cima dos cadáveres, ou escapole na calada da noite e encontra um lugar qualquer para se esconder. Toda noção de casa está perdida a essa altura, e reis, senhores e deuses significam menos para ele do que um naco de carne estragada que lhes permita sobreviver mais um dia, ou um odre de vinho ruim que possa afogar-lhes o medo durante algumas horas. O desertor sobrevive dia a dia, de refeição em refeição, mais animal do que homem. (…) Em tempos como estes, o viajante deve ter atenção aos desertores, e temê-los… mas também deve ter piedade por eles.
(O Festim dos Corvos, Brienne V)
Mais uma vez, a realidade do que é uma guerra é mostrada. Dessa vez, descobrimos o lado daqueles que estão cometendo as atrocidades que vimos o povo sofrer anteriormente. Poderíamos classificá-los simplesmente como monstros disformes, mas a verdade é que eles eram pessoas tão comuns quanto aquelas que estavam massacrando. Eram meninos, rapazes e homens que, em sua maioria, cresceram em lares simples. Tinham pais, mães, irmãos e irmãs, e dessa forma, também sofreram horrores para chegar até onde chegaram. No fim, os monstros eram só humanos forjados na guerra.
Para mim, esse é um dos trechos mais marcantes dos livros. Não apenas ele nos mostra a realidade por trás do discurso glorioso das batalhas, mas também traz uma percepção muito grande de como uma pessoa pode ser despojada de tudo o que possui no meio de uma guerra. Perdem suas casas, sua família, o pouco que possuem, e, por fim, perdem sua própria humanidade. Às vezes mantêm a vida, mas parafraseando Mirri Maz Duur, de que serve a vida quando todo o resto desapareceu?
Não há muito o que dizer para concluir esse texto, apenas que é preciso ler com atenção esses relatos. Eles estão lá por um motivo, e não é apenas para chocar. Precisamos compreender que guerras e batalhas podem parecer gloriosas e grandiosas, mas na realidade, o preço pago por elas é sempre alto demais, e quem geralmente paga por eles são aqueles que não tem culpa. Por mais que o Jogo dos Tronos pareça ser incrível, as consequências dele foram, e ainda serão, catastróficas.
]]>https://www.geloefogo.com/2020/06/quem-olha-pelos-pobres-um-olhar-sobre-as-consequencias-do-jogo-dos-tronos.html/feed2106252As dedicatórias dos livros de George R. R. Martin: As Crônicas de Gelo e Fogo
https://www.geloefogo.com/2020/06/as-dedicatorias-dos-livros-de-george-r-r-martin-as-cronicas-de-gelo-e-fogo.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-dedicatorias-dos-livros-de-george-r-r-martin-as-cronicas-de-gelo-e-fogo
https://www.geloefogo.com/2020/06/as-dedicatorias-dos-livros-de-george-r-r-martin-as-cronicas-de-gelo-e-fogo.html#respondSun, 14 Jun 2020 21:59:43 +0000https://www.geloefogo.com/?p=107475George R. R. Martin, assim como muitos outros autores — para não arriscar dizer a imensa maioria — tem o […]
George R. R. Martin, assim como muitos outros autores — para não arriscar dizer a imensa maioria — tem o hábito de, nas páginas iniciais de suas publicações, fazer uma dedicatória para pessoas que foram especiais no processo de escrita ou publicação daquele material. Já se perguntou quem são as pessoas que ajudaram, mesmo que indiretamente, essas histórias a chegar até nós? Nessa série de publicações, iremos trazer compilações e contextualizações sobre todas as dedicatórias escritas por Martin.
É uma tarefa extensa, uma vez que isso inclui suas coletâneas, antologias, romances e também romances-mosaico organizados por ele. Mas não poderíamos começar por outra parte de sua obra que não As Crônicas de Gelo e Fogo. Confiram quem foi homenageado em cada livro da série principal, bem como nas obras derivadas.
A Guerra dos Tronos
Este vai para Melinda.
O primeiro livro de As Crônicas de Gelo e Fogofoi dedicado à amiga de George, também escritora, Melinda Snodgrass. Parte do grupo que jogou a campanha do RPG Super World no início dos anos 90, hoje em dia, Melinda divide o cargo de editora de Wild Cards com George, e quando A Guerra dos Tronos foi publicado, já era parte importante da equipe de autores da série, sendo criadora do Dr. Tachyon, um dos mais célebres personagens.
Seu histórico inclui diversas séries de livros de fantasia e ficção científica, com destaque para Imperials. Também foi roteirista de Star Trek: Next Generation, universo no qual ainda editou uma coletânea, que inclui um conto seu. Atualmente, Melinda é uma das produtoras das vindouras séries de TV baseadas em Wild Cards. Tem dois contos publicados no Brasil em coletâneas editadas por Martin e Gardner Dozois: Escrito no Pó, em As Crônicas de Marte, e As Mãos que Não Estão Lá, em Mulheres Perigosas.
A Fúria dos Reis
Para John e Gail, por toda a carne e hidromel que compartilhamos.
O escritor John Jos. Miller e sua esposa, Gail Gerstner, são amigos de longa data de George. Também residentes do Novo México (o casal mora em Albuquerque, enquanto George, em Santa Fe), fizeram parte do círculo de amigos ao qual George se junto por intermédio de Roger Zelazny, quando era um recém chegado na cidade. John acredita que ambos tenham se conhecido em alguma das sessões de RPG na casa do também escritor Walter John Miller, ou em alguma convenção.
Em uma dessas sessões, George ficou encarregado de mestrar uma campanha no sistema Super World, e o grupo de amigos, que contava tanto com John e Gail, como com George e Parris, começou a desenvolver o que eventualmente se tornaria a série Wild Cards. Gail se aventurou a escrever também e participou de um dos volumes da série, Ases pelo Mundo, introduzindo sua personagem no jogo original, a Peregrina. Já John, que estreou já no primeiro volume da série com seu personagem, O Caçador, já participou de 16 volumes até hoje.
A Tormenta de Espadas
Para Phyllis, que me convenceu a incluir os dragões.
A escritora Phyllis Eisenstein, amiga pessoal de Martin e autora de fantasia que publica desde os anos 70, foi a homenageada desse livro. A relação entre os dois autores é antiga: seu conto publicado em 1978, Lost and Found, dez anos mais tarde foi adaptada como um episódio da segunda Além da Imaginação, e o roteiro foi escrito por George.
Em agosto de 2017, Martin comentou como, apesar de sempre ter planejado que os dragões fossem o símbolo da casa Targaryen, as criaturas não estariam presentes na sua saga literária, no entanto, Phyllis o convenceu a incluí-los, recebendo, por isso, a dedicatória em A Tormenta de Espadas. Além disso, o personagem Alaric de Eysen, presente no casamento de Joffrey e Margaery é uma pequena referência ao protagonista do romance de Phyllis, Tales of Alaric the Minstrel. Uma história de Phyillis com Alaric também está presente em Rogues, antologia editada por Martin e Gardner Dozois.
O Festim dos Corvos
Para Stephen Boucher, o mago do Windows, o dragão do DOS, o responsável por esse livro não ter sido escrito em giz de cera.
Todos sabemos que os livros de George não são escritos da maneira mais moderna possível: ele ainda usa um computador com sistema operacional DOS, um sistema antigo, simples e sem conexão com a internet. Até pouco tempo, o escritor ainda usava um computador que datava do início dos anos 80. Hoje usa uma máquina mais nova, mas que continua emulando o DOS. Durante a escrita de O Festim dos Corvos, no entanto, seu computador parou de funcionar. O livro é dedicado ao técnico de informática Stephen Boucher, que conseguiu consertá-lo sem que o que já havia sido escrito fosse perdido.
A Dança dos Dragões
Este é para meus fãs, para Lodey, Trebla, Stego, Pod, Caress, Yags, X-Ray e Mr. H, Kate Chataya, Mormont, Mich, Jaime, Vanessa, Ro, para Stubby, Louise, Agravine, Wert, Malt, Jo, Mouse, Telisiane, Blackfyre, Bronn Stone, Coyote’s Daughter e o restante dos homens loucos e mulheres selvagens da Irmandade sem Estandartes,
Para os meus magos do website, Elio e Linda, senhores de Westeros, Winter e Fabio do WIC, e Gibbs do Dragonstone, que começou tudo isso,
Para os homens e mulheres de Asshai, na Espanha, que cantam para nós sobre um urso e uma bela donzela, e os fabulosos fãs da Itália que me deram tanto vinho,
Para meus leitores na Finlândia, Alemanha, Brasil, Portugal, França, Holanda e todas as terras distantes que estiveram esperando por esta dança,
E para todos os amigos e fãs que ainda encontrarei, obrigado pela paciência.
O sucesso de Martin cresceu exponencialmente entre o lançamento de O Festim dos Corvos e A Dança dos Dragões, por conta da produção e lançamento de sua adaptação televisiva. O intervalo entre esses dois volumes também foi a maior espera de As Crônicas de Gelo e Fogo para os fãs. Nesse sentido, é simbólico que George os agradeça pela paciência, e apesar de mencionar vários países onde sua obra estava sendo publicada e lida, faz questão de citar nominalmente alguns de seus mais antigos e fiéis leitores. Entre os mencionados, está Adam Whitehead, autor do blog Wertzone, que chegou a virar personagem em um dos capítulos liberados de Os Ventos de Inverno e Peter Gibbs, fundador do Dragonstone, o primeiro site de fãs para a série de livros.
A Brotherhood Without Bannersé uma antiga organização de fãs da saga que se reúne em convenções desde 2001, quando também contavam com a participação de Martin. O autor citou alguns de seus membros fundadores, que se conheceram online nos primórdios do fandom. Agradeceu também ao fórum do site Westeros.org, a mais antiga organização online de fãs da saga ainda em existência, criada por Elio García e Linda Antonsson, que são agradecidos logo abaixo. Elio e Linda possuem uma longa amizade com George, sendo frequentemente consultados pelo autor para evitar inconsistência nos livros, e também, tendo sido escolhidos como co-autores de O Mundo de Gelo e Fogo.
Junto com eles, são mencionados os então administradores do site Winter is Coming, portal que hoje faz parte de um conglomerado de mídia para notícias pop em geral. Ainda entre os sites, o Asshai foi o primeiro fórum em espanhol para fãs da saga. Embora ainda esteja no ar, as discussões originais (que incluíam até uma entrevista com George), foram perdidas.
O Cavaleiro dos Sete Reinos
Para Raya Golden, por todos os sorrisos animados e ilustrações bonitas.
Raya Golden trabalha com Martin como assessora na Fevre River Packet Company, onde concentra as funções de assessora de arte, licenciamento e redes sociais pelos últimos nove anos. Como artista, sua primeira graphic novel foi uma adaptação do conto do autor, O Homem do Depósito de Carne, que chegou a ser indicada ao prêmio Hugo. Em 2019, adaptou Starport, um roteiro antigo de Martin para uma série de TV que nunca chegou a ser produzida, para quadrinhos também. O Gelo & Fogoentrevistou Raya no ano passado a respeito desse lançamento.
O Mundo de Gelo e Fogo
Para o Senhor mais estimado e gracioso, Tommen, Primeiro de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, Senhor dos Sete Reinos e Protetor do Território, Yandel humilde Meistre da Cidadela, deseja prosperidade mil vezes, agora e sempre, e sabedoria sem igual.
Como uma obra cuja escrita simula ser um livro dentro do universo de As Crônicas de Gelo e Fogo, a dedicatória é feita para um personagem, o atual ocupante do Trono de Ferro, Tommen Barahteon. Ela é assinada por Meistre Yandel, o alterego de Elio Garcia e Linda Antonsson, fundadores do site Westeros.org, e autores de fato da maior parte do texto do livro.
Fogo & Sangue
Para Lenore, Elias, Andrea e Sid, os Mountain Minions.
Os assistentes de George, a quem ele carinhosamente chama de minions, são os membros da Fevre River Packet Company. Há uma publicação no subreddit Valíria, na qual o usuário Alto Valiriano listou o que sabemos sobre a identidade desses assistentes. Em Fogo e Sangue, estão referenciados Elias Gallegos, que coordena o Jean Cocteau Cinema, Lenore Gallegos, que entre outras funções, coordena a agenda de George, Siri Dharam Kaur Khalsa, garçonete e barista no Jean Cocteau Cinema, e Andrea L. Mays, cujas funções são desconhecidas do grande público.
Não se sabe com certeza o significado do termo “Mountain Minions” e qual seria sua diferença em relação aos minions “regulares”. No entanto, uma teoria interessante, em artigo de nosso colega espanhol Javi Marcos, e que considero a mais provável, é que essas tenham sido as pessoas que o auxiliam durante os períodos em que está recluso em sua cabana secreta, como para a escrita de Fogo e Sangue.
É interessante notar que em três dos casos que mencionamos aqui, os livros foram dedicados a outros escritores de ficção científica e fantasia, amigos de George e também, influências para ele. Pessoalmente, sempre defendo que para ampliar nosso entendimento de As Crônicas de Gelo e Fogo, sempre vale à pena localizá-las no tempo e no espaço.
O que Martin costuma ler? Qual a importância da obra em relação a outros trabalhos sendo publicados na mesma época? O que os influenciou e o que foi influenciado por eles? Algumas dessas respostas estiveram nessa primeira parte do artigo, porém, muitas mais virão na sequência, onde falaremos sobre as dedicatórias dos outros romances e coletâneas de Martin.
]]>https://www.geloefogo.com/2020/06/as-dedicatorias-dos-livros-de-george-r-r-martin-as-cronicas-de-gelo-e-fogo.html/feed0107475Gelo & Fogo recomenda: Ursula K. Le Guin
https://www.geloefogo.com/2020/06/gelo-fogo-recomenda-ursula-k-le-guin.html?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=gelo-fogo-recomenda-ursula-k-le-guin
https://www.geloefogo.com/2020/06/gelo-fogo-recomenda-ursula-k-le-guin.html#respondFri, 12 Jun 2020 22:46:17 +0000https://www.geloefogo.com/?p=107432Em tempos de distanciamento social e de poucas novidades sobre As Crônicas de Gelo e Fogo, decidimos trazer algumas ideias […]
Em tempos de distanciamento social e de poucas novidades sobre As Crônicas de Gelo e Fogo, decidimos trazer algumas ideias para quem está procurando mais leituras — todas elas, é claro, relacionadas de alguma maneira a George R. R. Martin. Vamos começar com uma autora clássica nos círculos da fantasia e da ficção científica, e uma grande influência de Martin: Ursula K. Le Guin.
A escritora, nascida em Berkeley, Califórnia, em 1929, e filha do renomado antropólogo Alfred Louis Kroeber, viveu até os 88 anos e nunca parou de publicar. Vencedora por várias vezes de todos os principais prêmios do gênero, como os Hugo e Nebula Awards, Le Guin quebrou as barreiras e preconceitos com a literatura de fantasia e ficção científica, sendo também homenageada pela Academia Americana de Artes e Letras e pela Fundação Nacional do Livro.
É impossível recomendar apenas uma obra da autora que publicou 23 romances e mais de cem peças de ficção menores, entre contos, noveletas e novelas. É até mesmo difícil decidir qual o seu maior legado: a alta fantasia de Terramar ou a ficção científica do ciclo Hainish? Sendo assim, decidi fazer um apanhado geral da carreira da autora, indicando alguns de seus maiores trabalhos.
Já de início, podemos mencionar o documentário The Worlds of Ursula K. Le Guin (2019), que conta com depoimentos da própria autora, bem como de seus familiares e pessoas próximas profissionalmente. O filme é um dos finalistas ao prêmio Hugo de 2020.
Na ocasião de seu falecimento, em 2018, Martin escreveu algumas palavras no Not a Blog, declarando que embora não tivesse uma relação pessoal com Ursula, era grande admirador de sua ficção:
Mas eu certamente conhecia seu trabalho… Assim como todo mundo que se diz um fã de ficção científica tem o dever de conhecer. Ela foi uma dos gigantes. Uma contadora de histórias talentosa, dedicada à sua arte, influenciou uma geração inteira de escritores que vieram depois dela, incluindo eu mesmo. A Mão Esquerda da Escuridão é, na minha opinião, um dos melhores romances de ficção científicas já escritos, e Os Despossuídos e A Curva do Sonho são trabalhos esplêndidos também. A trilogia original de Terramar ocupa uma posição semelhante no panteão da fantasia (embora tenha sido injustiçada em sua adaptação televisiva).
Influência para livros como Harry Potter e A Crônica do Matador do Rei, a trilogia infanto-juvenil de Terramar apresenta a mais clássica escola de magia da fantasia. Aqui, acompanhamos a formação de Ged, futuramente o mago conhecido como Gavião, sua batalha para controlar seus poderes, enfrentar um dragão e aprender a lidar com seu próprio orgulho, que acaba pondo o mundo em risco. Nascido em uma ilha periférica no arquipélago que forma Terramar, ele logo descobre suas habilidades mágicas, e é treinado pelo mago Ogion antes de seguir seus estudos na Escola de Magos em Thwil.
Os livros chamam atenção não apenas pelos elementos já citados, mas também pela mais profunda forma de magia ali presente: a nomeação, onde se ganha poder sobre algo ao conhecer seu verdadeiro nome. Além disso, Ged não é um protagonista branco (embora isso tenha sido apagado das ilustrações das capas do livro por décadas), assim como todo o resto dos habitantes das ilhas de Terramar, que, nas palavras da autora, possuem “pele desde tons de cobre e marrom até o negro dos domínios do Sul e do Leste“.
O Ciclo de Terramar foi publicado no Brasil pela editora Arqueiro, mas, infelizmente, apenas os primeiros dois volumes foram lançados. As Tumbas de Atuan saiu em 2017 e a editora não deu previsão para encerrar a trilogia original com The Farthest Shore. Para além destes, Le Guin escreveu mais dois livros no universo, Tehanu e The Other Wind, além de uma coletânea de contos chamada Tales from Earthsea. Todas essas sequências permanecem inéditas por aqui.
Para além de influente em sua literatura de fantasia infanto-juvenil, a magnitude da escritora na ficção científica direcionada para adultos também é imensurável, e pessoalmente, acho que eles são o ponto mais alto de sua produção. Seu ciclo Hainish, um universo comum para muitas de suas histórias, é um futuro onde a humanidade se expandiu não atrás de conquistas bélicas, mas da premissa de compartilhar conhecimento e preservar diferentes culturas. Dentro desse contexto maior, se passam algumas das suas histórias mais célebres, como A Mão Esquerda da Escuridão e Os Despossuídos, já publicados no Brasil, e os ainda inéditos Roccanon’s World, Planet of Exile e The Telling.
A Mão Esquerda da Escuridão é um marco para a ficção científica em muitos sentidos. Publicado em 1969, se tornou um dos grandes símbolos do movimento conhecido como A Nova Onda, uma geração de autores, da qual Martin fez parte, que incorporou pautas sociais da década revolucionária – direitos civis, anti-imperialismo, pacifismo, a segunda onda do feminismo, entre outras – e técnicas modernistas para a ficção científica. Sem sequer uma cena de ação, é um livro impactante do início ao fim, com noções muito inovadoras sobre gênero, culturas únicas e criativas e prosa inspiradíssima.
O narrador da maior parte do livro, Genly, é o enviado dos Ekumen, uma liga interplanetária que visa apenas a troca de conhecimento entre os mundos que dela fazem parte, ao planeta Gethen. Lá, ele se envolve em conflitos políticos nas duas nações onde visita, a monarquia de Karhide, onde os caprichos de um rei autoritário complicam sua missão, e Orgoreyn, uma nação moderna e dinâmica, mas contaminada pelos jogos políticos. Após precisar deixar ambos os países, Genly decide ajudar Estraven, antigo primeiro ministro de Karhide, exilado por conspiração, a voltar para casa. Boa parte do livro se passa entre as geleiras de Gethen, enquanto os dois personagens conhecem melhor um ao outro.
Esse romance é especialmente notável pela caracterização de gênero em Gethen: não é uma separação binária como nós (e Genly) conhecemos. Há apenas um gênero, e durante certo período, as pessoas entram em seu período fértil, o kemmer. Quando isso acontece, os gethenianos assumem formas masculinas ou femininas para o momento de relações sexuais. Apesar de bastante inovador para sua época, o romance sofreu críticas posteriores, inclusive da própria Le Guin, especialmente por tratar o gênero neutro sempre como masculino. Sendo assim, Gethen se tornava um planeta apenas de homens. A autora revisitou o assunto, já com noções mais maduras, no conto ainda inédito no Brasil, Coming of Age in Karhide, no qual o narrador é natural do planeta e explica seu amadurecimento sexual.
O livro foi mais recentemente publicado por aqui pela editora Aleph, e teve uma reedição ainda no ano passado. Ele está com valor promocional na Amazon, e você pode adquiri-lo aqui.
Cinco anos depois, Le Guin publica um clássico tão influente quanto o anterior, Os Despossuídos: Uma Utopia Ambígua. Também parte do ciclo de Hainish, nesse romance, o planeta-satélite Anarres é habitado por dissidentes políticos de Urras, que, gerações atrás, fundaram uma sociedade anarquista. Descontente com a burocracia e as imperfeições que o cercam, Shevek decide viajar a Urras, e então, é confrontado com noções alheias a ele, como propriedade privada ou meritocracia.
Um verdadeiro tratado político, evitando respostas fáceis, Os Despossuídos é uma dos trabalhos mais poderosos de Le Guin, consolidando de vez a sua geração, das décadas de 60 e 70, como escritores de ficção científica extremamente engajada. Foi publicado no Brasil também pela Aleph e pode ser adquirido aqui. As raízes da sociedade de Anarres são exploradas no conto O Dia Antes da Revolução, narrado do ponto de vista de Odo, a líder anarquista que guiou os revolucionários para fora de Urras. Foi publicado no Brasil na antologia Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política, editada por Marcello Simão Branco, que está disponível para compra neste link.
Falando nas suas narrativas políticas, chegou a hora de comentar mais um de seus clássicos, dessa vez, um conto. Aqueles que Abandonam Omelas (disponível gratuitamente no Projeto Cápsula, da excelente editora Morro Branco) é uma alegoria inspirada em dilemas propostos em Os Irmãos Karamazov de Fiódor Dostoiewski e em um discurso de William Faulkner. A premissa é: seria moral que toda uma sociedade possa ser feliz com a condição de que uma pessoa sofra imensuravelmente? A história suscita longos debates, e já foi até respondida em um conto de N. K. Jemisin, The Ones Who Stay and Fight (disponível apenas em inglês aqui).
Para finalizar as indicações de obras, há um livro diferente de tudo mais que já li de Le Guin. Com estilo se aproximando dos realistas fantásticos latino-americanos, A Curva do Sonho é uma brilhante história que mescla fantasia, futuros distópicos e ficção científica, quando o estadunidense médio George Orr percebe que seus sonhos se tornam realidade. Sem estar ligado com qualquer outra de suas obras, esse breve romance é uma aula de estilo, enredo e personagens. Foi publicado em uma edição cuidadosa, bem-traduzida e muito bonita, também da Morro Branco, disponível para compra aqui.
Apesar de a carreira da autora ser muito mais extensa que isso, incluindo, além de seus contos e romances, também poemas, comentários sobre escrita e muitas outras peças não-ficcionais, acredito termos passado por seus principais trabalhos traduzidos, e aqueles que são melhores introduções para sua bibliografia tão diversificada. Le Guin nos deixou há dois anos, mas seu legado é eterno, e qualquer obra de fantasia ou ficção científica estará, querendo ou não, dialogando com ideias trazidas por ela.