Tyrion Lannister por Sebastian Giacobino, para a Fantasy Flight Games.

A maioria dos leitores de As Crônicas de Gelo e Fogo é composta de “pessoas grandes”, os não-anões. Para estes (e eu me incluo neste grupo), a leitura das experiências de Tyrion geralmente causa empatia pelo personagem, porque se imagina como seria viver como um anão. Mas o que um leitor com essa condição pensa sobre a construção do personagem? Será que Tyrion é realístico o bastante e retrata bem as experiências de um anão, para fazer com que um leitor tal se identifique com ele?

O usuário do reddit FaceofMoe postou um texto muito interessante sobre o que ele sentiu quando leu sobre Tyrion, em que compara também o personagem a figuras de literatura historicamente identificadas com os anões. O relato foi considerado o “Post do Ano” em 2013 no subreddit das Crônicas.

Trazemos uma tradução desse texto, uma leitura que vale a pena. A pintura abaixo foi indicada pelo próprio autor como sendo o “Leão de Lannister” original: um retrato, pintado por Diego Velázquez, de don Sebastián de Morra. Confira:

“Bufón don Sebastián de Morra”, de Velázquez. O pintor retratou diversos anões que faziam parte da corte do Rei Filipe III da Espanha, no século XVII.

A perspectiva de um anão sobre Tyrion Lannister

Por u/FaceofMoe, no reddit

Há alguns anos saí para um café com minha mãe. Cada um de nós levou um livro, como geralmente fazemos, e eu mergulhava numa história de fantasia recomendada por um amigo. Li um pouco, completamente absorto até que parei abruptamente. Puta merda. Um personagem anão. Eu não podia esperar coisa boa disso. Eu sou um anão, para ser mais preciso um anão exigente e irritadiço. Já li dezenas de livros que abordam personagens com deficiências, a maioria dos quais eram risivelmente terríveis em capturar nossa experiência. Alguns preferiam fetichizar a deficiência, contorcendo o personagem em um estereótipo quase irreconhecível. Outros desenfatizam a deficiência a ponto de que ela seja como a cor do cabelo, um traço irrelevante de pouco interesse. Nenhum deles faz justiça à experiência de ser um anão. Então, quando descobri Tyrion prossegui com receio, uma hesitação que durou uma metade de capítulo. Depois de apenas algumas páginas eu percebi que estava lendo talvez o melhor e mais realístico personagem deficiente que eu já tinha lido.

A experiência de Tyrion, sua linguagem, sua perspectiva eram tão chocantemente reais que fui pego de surpresa. Ao longo do livro, Tyrion lida com questões intimamente familiares aos anões. Ele se debate com o ódio de si mesmo, frustação, humilhação, um desejo intenso de ser amado, sentimentos predominantes de alteridade. Tyrion demonstra traços tão comumente cultivados pela experiência do anão, esperteza e autodepreciação, um desejo insaciável de preencher um espaço com sua personalidade. Mais que qualquer coisa, um conselho na série fala sobre o mais frustrante, às vezes desolador, aspecto da vida como um anão:

“Nunca se esqueça de quem é, porque é certo que o mundo não se esquecerá. Faça disso sua força. Assim, não poderá ser nunca a sua fraqueza. Arme-se com esta lembrança, e ela nunca poderá ser usada para magoá-lo.” (A Game of Thrones – Jon I)

A verdade é esta: ser um anão é carregar um peso de certas concepções culturais preconcebidas sobre o nanismo, o que faz com que às vezes seja uma atuação contínua. Esta atuação, na minha experiência, é inevitável. O anão como fonte de tragédia ou comédia é uma ideia muito, muito antiga. Voltando às origens do drama moderno com a Commedia dell’arte, o anão serviu como fonte de alívio cômico ou tragédia pungente. A peça italiana Les Gobbi no século XVI utilizou vários atores anões, cada um funcionando como uma caricatura absurda de diferentes elementos preconcebidos do anão. As figuras são muitas e duradouras.

O anão como depravado sexual, um Imp conspirador movido pelo prazer e um desejo bruto de possuir e destruir o belo. O anão como a figura trágica, a piada cruel de deus, uma criatura digna de pena que pode encontrar alguma espécie de vingança no terceiro ato. O anão cômico, o duende feliz que espalha alegria e alivia tensões dramáticas, mágico e assexuado, talvez oferecendo encorajamento e inspiração quando necessários. Estas rasas convenções dramáticas perduram, e se infiltraram no zeitgeist. Na verdade, essas convenções dramáticas estão tão bem estabelecidas que as pessoas parecem esperar que elas apareçam em anões reais, tanto na vida real como em As Crônicas de Gelo e Fogo. Um anão não pode nunca simplesmente comprar meias, nenhuma ação é neutra. Um anão deve lutar comicamente num mundo de tamanho errado, ou comprar meias como um testemunho desolador da natureza inquebrável do espírito humano. A primeira hipótese parece mais popular em Westeros, a segunda a narrativa escolhida na vida real. Aos anões e pessoas com deficiências em geral, nunca são permitidos atos banais. Tudo deve ser cômico, trágico ou uma inspiração, somos atores perpétuos numa narrativa que não foi feita por nós. Somos continuamente escalados nesses papéis, e na vida moderna todos parecemos nos comportar de maneiras diferentes (em contraste com o que os anões fizeram ao longo da maior parte da História: serem comidos ou jogados num fosso).

Alguns anões ignoram essas figuras, vivendo suas vidas simplesmente como querem, com pouco interesse no que os outros esperam deles. Outros ainda, odeiam apaixonadamente esses estereótipos, e tentam viver contrariamente a eles. Eles procuram arduamente quebrar noções preconcebidas, para apresentar uma ideia decididamente diferente do que significa ser um anão. Outro subgrupo, ainda, tenta uma abordagem única, a abordagem que eu endossei por toda minha vida.

Tyrion conhece sua sorte. Ele entende o que significa ser um anão em seu mundo. Ele decidiu personificar essas figuras, acentuar os próprios elementos reais de comédia, tragédia e perversidade que são inerentes à experiência da deficiência. Ele adotou esses papéis, como proteção num mundo cheio até a borda com desumanidade. Ele se torna o que os outros acreditam que ele é, protegendo assim as partes mais vulneráveis de si mesmo. Tyrion é desoladoramente solitário, profundamente insatisfeito com a vida, desesperado para ser visto como uma pessoa completa. No entanto, como uma forma de consolo, ele chega a sentir um certo prazer em bancar o bobo da corte, o Imp perverso e lascivo, um meio-homem sem medo e com esperteza infinita. Penso que ele atua até para si mesmo, se satisfazendo em melodrama em seu próprio monólogo interno. (Pergunte “Para onde as putas vão?” mais uma desgraçada vez…)

Eu não sou nenhum Tyrion. Sou obviamente bem menos inteligente, embora me redima ligeiramente pelo fato de ter um nariz. Nós, porém, compartilhamos várias coisas. Eu também encontrei uma espécie de paz ao abraçar os papéis que os outros forçam a mim. Se vou ser escalado como o bobo, então vou fazer o papel o melhor possível. Há uma espécie de refúgio em abraçar e transformar expectativas, em preencher um papel que é maior e mais velho que você mesmo. A atenção do público e as bocas abertas são apenas uma parte de ser um anão. É bem melhor do que gritar “Olhe pra mim!”, comandar uma sala, e tomar o controle do momento. Sou intrinsecamente trágico, intrinsecamente cômico, estes são elementos reais que minha vida estendeu a sua extensão máxima. Não posso escapar desses papeis mais do que posso escapar da minha deficiência. Tentei explorar essas expectativas, e torná-las minha vantagem. Aprender a atuar nessa narrativa, a habitar tudo o que vem com esse papel é profundamente satisfatório. É uma apropriação em termos. Que eu imagino ser uma parte do encanto de Tyrion.

Há uma forma de liberação a ser encontrada na atuação, mesmo num papel forçado em nós. É melhor fazer as pessoas rirem do que ser motivo de piada, atrair a atenção por nossas palavras e então nossa forma. Atuação é um bem de valor infinito, uma coisa muito rara para pessoas com deficiência a qualquer tempo. Ela permite uma transformação, um tipo especial de mágica única ao ser anão. O mundo é nossa plateia, paradoxalmente tão rápido para ouvir com atenção o que temos a dizer quanto para dispensá-lo.

Todo anão pode ser um bastardo, mas somos igualmente o palhaço, o inimigo trágico, o monstro, e sim, o Imp. Sinto como se tivesse herdado um papel único, passado adiante por séculos. Uma espécie estranha de herança, admito, mas uma que pode ser absurdamente divertida. Então quando li a visão de George R. R. Martin sobre a experiência de ser um anão, imediatamente o coloquei como um dos maiores escritores de nosso tempo, possuidor de uma empatia criativa única, tão central para a série.

Tyrion como personagem me fez entender melhor ser um anão, e apreciar mais completamente o valor único disto como uma experiência. Ele me ensinou a apreciar melhor meus dons, e cultivá-los. Para o bem ou para o mal, minha deficiência domina quem sou. Sou um anão. Farei o papel o melhor que posso, aproveitarei cada caprichoso minuto, e montarei meu cão em direção ao pôr do sol.