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Foto: HBO

Depois da polêmica e chocante cena envolvendo o sacrifício de Shireen Baratheon em “The Dance of Dragons”, 9º episódio da 5ª temporada, e do comentário de David Benioff no Inside the Episode, a visão comum sobre o evento ficou sendo a de que “a cena foi ideia de Martin”, e Stannis Baratheon se tornou, justificadamente pelo que a série apresentou, numa figura mais odiada Internet afora do que Ramsay Bolton.

Eu mesmo fui um dos que usou a expressão “ideia do Martin” a princípio, admito, mas logo percebi o erro nessas palavras. Tratar a situação dessa maneira dá margem a uma interpretação errônea do que aconteceu. Vejamos o que é que Benioff diz literalmente disse sobre a cena no featurette:

When George first told us this, it was one of those moments I remember looking at Dan and was just like “oh, that’s so horrible”. And good in the story sense. Because it all comes together, you know. From the beginning, the very first time we saw Stannis and Melisandre, they were sacrificing people, they were burning people alive on the beaches of Dragonstone, and it’s really all come to this. There’s been so much talk about king’s blood, the power of king’s blood, and it leads all ultimatley, fatally, to Shireen’s sacrifice.

Isso, em tradução livre, quer dizer:

Quando George nos contou sobre isso, foi um daqueles momentos em que me lembro de olhar para Dan e ficar tipo “oh, isso é tão horrível”. E tão bom no sentido da história. Porque tudo se junta, sabe. Desde o começo, a primeira vez em que vimos Stannis e Melisandre, eles estavam sacrificando pessoas, queimando pessoas vivas nas praias de Pedra do Dragão, e realmente tudo resultou nisso. Sempre houve tanta conversa sobre sangue de rei, o poder do sangue de rei, e isso leva em última instância, fatalmente, ao sacrifício de Shireen.

O que importa aqui é atentar para o detalhe do que David: “Martin nos contou sobre a cena”. Isso é bastante diferente de dizer “foi ideia de Martin”. Ele não diz que George teria ativamente sugerido a ele, Weiss e Cogman que inserissem a cena tal qual ela ocorreu, ali, naquele momento, naquele episódio, com aquele desenvolvimento. De fato, muito provavelmente não foi isso o que ocorreu, pelo que se depreende. Se fosse esse o caso, George poderia tê-lo feito também em sua marcha para Winterfell original, nos livros, e isso não ocorre. O que mais provavelmente ocorreu é que George tenha contado para eles que essa cena – Shireen ser sacrificada no fogo – eventualmente aconteceria em algum momento em sua história, e os roteiristas se decidiram por inseri-la neste episódio. O por quê dessa decisão, suspeito, é o “fator choque” característico da dupla de produtores.

A declaração de Benioff repercutiu também no Twitter, em que Linda Antonsson, co-autora de O Mundo de Gelo e Fogo e co-webmaster do Westeros.org, publicamente criticou Benioff e Weiss por revelarem no featurette o fato de que a morte de Shireen seria um spoiler. Linda foi bem agressiva em suas críticas, e na verdade não atacava exatamente o fato de a série ter spoilers dos livros (porque isso afinal vai ser comum daqui em diante), mas o ato de revelar expressamente que uma cena nova realmente estará nos livros (afinal, com tantas alterações na série, seria impossível saber o que é spoiler e o que não é, a não ser que os produtores digam claramente que foi George que lhes contou).

Antonsson chegou a sugerir que estaria com vontade de promover um ato dos leitores – que em sua maioria respeitaram os fãs não-leitores e não revelaram spoilers de momentos chocantes da série como a morte de Eddard ou o Casamento Vermelho – para que dessa vez spoilassem o grande evento do final desta temporada em “vingança” contra D&D.

Linda ficou particularmente insatisfeita porque interpretou a fala de Benioff em sua literalidade, no sentido de que nos livros é também Stannis quem ordena o sacrifício da filha, o que indiretamente seria um grande spoiler no sentido de que ele sobrevive à batalha de Winterfell, que foi um cliffhanger deliberado por parte de Martin no final de Dança.

A dúvida quanto à declaração de Benioff também surgiu no que diz respeito a como se dará a cena nos livros: se Stannis terá envolvimento e concordância diretos e expressos na morte de Shireen ou não. Um fã foi ao Not A Blog (pessoal de Martin) perguntar exatamente isso, e George surpreendentemente respondeu, a despeito de já ter reiteradas vezes pedido que as pessoas não postem comentários off-topic sobre Game of Thrones em postagens dele sobre outros assuntos:

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Em resumo, mjy6478 perguntou se o próprio Stannis seria de alguma forma responsável pela morte de Shireen nos livros. A resposta de George foi:

Se eu começar a comentar sobre o que pode ou não pode acontecer em cenas que eu ainda não escrevi, estarei “spoilando” meus próprios livros.

Não tenho mais comentários neste momento.

É claro que seria demais esperar que George entrasse nos detalhes perguntados pelo usuário, mas a resposta dele não é tão vazia quanto parece. É importante notar que ele dá a entender que seria uma cena que ele ainda não escreveu, o que pode significar que o contexto em que a cena se dará nos livros seja substancialmente diferente do que ocorreu na TV, afinal já sabemos que a batalha de Winterfell ocorrerá no começo de The Winds of Winter, e presume-se que George esteja um tanto adiantado na escrita do livro.

Ainda hoje, George publicou um novo post que mais uma vez corrobora a ideia de que a inserção da cena no episódio foi ideia dos roteiristas e não dele, e reforça o que muitos de nós sabemos mas que para outros não é assim tão claro: Martin não tem influência direta sobre a série de TV. Em um post em que falou de polêmicas que giram ao seu redor no momento, como o rescaldo do Puppygate, ele disse o seguinte:

Enquanto isso, outras guerras explodem em outras frentes, centradas nos últimos episódios de GAME OF THRONES. Não é minha intenção me envolver nelas, nem deixá-las tomar meu blog ou website, então por favor parem de me mandar emails sobre elas, ou postar comentários off-topic aqui no meu Not A Blog. Travem essas batalhas no Westeros, ou no Tower of The Hand, ou no Boiled Leather, ou no Winter Is Coming, ou no Watchers on the Walls. Qualquer lugar que não aqui, na verdade.

Sim, eu sei que o HOLLYWOOD REPORTER me nomeou “o terceiro escritor mais poderoso de Hollywood” dezembro passado. Vocês ficariam surpresos com o quão pouco isso significa. Eu não posso controlar o que mais ninguém diz ou faz, ou fazê-los parar de dizer ou fazer, seja quanto aos fãs aos profissionais. O que eu posso controlar é o que acontece nos meus livros, então eu vou voltar para o capítulo que estou escrevendo em THE WINDS OF WINTER agora, muito obrigado.

É claro que quando George diz que não pode impedir ninguém de falar ou fazer qualquer coisa é um recado para os que ficaram indignados com a declaração de Benioff  (“os profissionais”) no Inside the Episode, como Linda (“os fãs”), mas o tom da postagem como um todo foi um pedido de “Deixem-me em paz! Eu não mando em nada!”.

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Foto: HBO

Opinando sobre a cena em si e seus possíveis desdobramentos no livro, minha opinião é a de que é plenamente possível que ela ocorra neles também. Digo, entendo que a morte de Shireen é certa, e acho também possível (mas não certo) que Stannis compactue com ela. Mas não faz mal esclarecer algumas coisas.

Voltando à fala de Weiss, a intenção não é me delongar muito na interpretação dele de que quando vemos “Stannis e Melisandre pela primeira vez eles estão queimando pessoas em Pedra do Dragão”, mas chega a ser impressionante o quão superficial ela é quando se trata dos livros. É claro que a visão se aplica primordialmente à própria série de Benioff, mas não aos livros e à história de George, os quais contraditoriamente Benioff invocou de forma indireta para tentar explicar os motivos da inclusão cena, ao mencionar que Martin a teria lhes revelado.

Benioff não está sozinho na visão de que a característica principal de “Stannis e Melisandre” (os quais ele aparentemente não consegue dissociar um do outro) seja queimar pessoas. Nos livros, o número de pessoas queimadas em Pedra do Dragão não passa de 4: Alester Florent, Guncer Sunglass e os filhos de Lorde Rambton. Diga-se também que nenhum deles o foi por motivos gratuitos, e que seriam provavelmente punidos de alguma forma por seus atos por qualquer outro lorde de Westeros: Florent tentou fazer um acordo com os Lannister às escondidas, Sunglass se recusou a lutar pela causa por não querer abandonar os Sete, e os Rambton atacaram e mataram 4 homens da rainha quando Stannis queimou seu próprio septo. Os três últimos foram queimados por ordem de Selyse, note-se, enquanto Stannis estava em Água Negra. Nunca ninguém foi queimado nos livros simplesmente por não seguir a religião vermelha, e com efeito boa parte dos homens de Stannis seguem os Sete, incluindo Davos, Mão do Rei. Enfim, a fala de Benioff dá a entender que Stannis e Melisandre viviam a sacrificar pessoas aleatórias nas praias por serem infiéis, algo que só ocorre, se muito, na adaptação, como no episódio “The Lion and the Rose” em que Axell Florent foi queimado por se recusar a seguir R’hllor.

Nos livros, Stannis já disse expressamente para Justin Massey que quer que ele lute por Shireen e a ponha no Trono caso ele morra na batalha de Winterfell, e declarou também que não haveria sacrifícios humanos pelo fogo na marcha quando isso lhe foi pedido por Clayton Suggs, este sim um r’hllorista fanático. O capítulo de Asha intitulado “O Sacríficio”, inclusive, dá a entender que ela seria sacrificada na marcha para melhorar a crítica situação em que as tropas se encontravam, mais ou menos como ocorre com Shireen na TV, e inclusive por ter ela também sangue real enquanto filha de Balon (que curiosamente ainda não morreu na série). É possível que os roteiristas tenham se inspirado nesse capítulo para a ideia de incluir a cena, com Shireen, nesse momento, mas no fim das contas o sacrifício de Asha não ocorre nos livros.

A despeito dessas atitudes de Stannis – claramente distantes das de um fanático – acredito que seria sim possível que ele realizasse ou autorizasse o ato de sacrificar sua filha. Isso só ocorreria, porém, em uma situação extrema, em que o personagem acreditasse que enquanto”Azor Ahai, herói messiânico profetizado”, ou ele faria isso ou a própria humanidade estaria condenada. Seria uma situação radical, de tudo ou nada, e não apenas em uma disputa política em que ele está envolvido como a que nos foi (mal) apresentada pela série, em que não faria sentido nenhum dispor de sua herdeira. Não preciso dizer que confio muito mais na capacidade de George para construir um arco crível e dar verossimilhança à situação e à cena, atributos que faltaram em muito na adaptação para a TV, que claramente priorizou mais a criação de simpatia da audiência com Shireen para aumentar o fator choque quando esta morresse, do que com um desenvolvimento da decisão de Stannis que tivesse o mínimo de realismo e coerência.

Há também, é claro, sempre a possibilidade de que o sacrifício de Shireen nos livros ocorra pelas mãos de outras pessoas que não diretamente as de Stannis, sendo as “favoritas” para tanto Melisandre e Selyse, esta também uma fanática. Não se pode deixar de notar a diferença em um ponto fulcral de divergência, em que no texto original as duas e a própria Shireen tenham permanecido em Castelo Negro (por decisão do próprio Stannis, que não arriscaria sua herdeira em batalha), enquanto que na série se decidiu pela diferença: todas elas acompanharam Stannis na marcha. É possível que a infame “carta rosa” (ou “carta do bastardo“) seja o gatilho que motive a sacerdotisa e a rainha a sacrificarem a criança como forma de tentar reviver ou ajudar Stannis em sua causa.

Muitas incertezas e especulações, como deve ser a tônica a partir de agora no que concerne aos possíveis spoilers dos livros que a série trará. Ficam, mais uma vez, a lição de que George R. R. Martin não tem poder de decisão sobre os roteiros de Game of Thrones, e a esperança de que o capítulo de The Winds of Winter que ele declarou estar escrevendo seja um dos últimos.