Capa da edição dupla de Time sobre Game of Thrones.

Em julho de 2017, a revista Time publicou uma grande matéria de capa sobre Game of Thrones, com sessão de fotos exclusiva e entrevistas com vários envolvidos com a série: atores, produtores, e o próprio George R. R. Martin. A série de entrevistas da edição dupla pode ser encontrada aqui (em inglês).

Martin concedeu sua entrevista a Daniel D’Addario em março de 2017, e crédito tem que ser dado ao jornalista: a escolha de perguntas foi excelente, fugindo das indagações clássicas e óbvias dos veículos não-especializados, e sem confusão entre livros e série de TV.

Trazemos aqui essa entrevista com Martin traduzida, com alguns breves comentários meus às respostas do autor. Elas contêm algumas novidades realmente interessantes, como as que dão título a nossa postagem, e outras informações não tão novas, mas também relevantes. A elas.

D’Addario: Você ainda escreve de forma improvisada? Mesmo com um final em mente, você ainda sente que está aprendendo coisas sobre o mundo de Westeros?

Martin: Sim. Isso não é algo único a Westeros ou Game of Thrones. É simplesmente a forma como trabalho e como sempre trabalhei. No caso de qualquer dos meus romances, sei meu ponto de partida, sei aonde quero chegar, mais ou menos. Sei alguns dos grandes pontos de curva pelo caminho, as coisas que estou desenvolvendo, mas você descobre uma quantidade enorme de coisas no meio do caminho. Personagens crescem e parecem mais importantes, e você chega ao que pensou que fosse ser um grande ponto de virada e… a coisa em que pensou há mais ou menos dois anos não funciona tão bem, então você tem uma ideia melhor! Sempre existe esse processo de descoberta para mim. Sei que nem todos os escritores trabalham dessa forma, mas essa sempre foi a forma como trabalhei.

Comentário: Para quem lê muitas entrevistas e declarações de Martin há mais tempo, pode não haver muita novidade nessa resposta, mas ela pode ajudar alguns leitores a entenderem por que a escrita dos livros das Crônicas de Gelo e Fogo demora tanto. Martin procura escrever de forma orgânica, ele se considera um escritor “jardineiro” (em oposição ao “arquiteto”, que já projeta tudo exatamente de forma prévia). Até pela natureza do formato de “POV” (point-of-view, “ponto de vista”), os planos iniciais idealizados por ele sobre alguns eventos podem ser frustrados quando o autor percebe que, sob a ótica dos personagens, as coisas simplesmente não pode acontecer da forma pensada inicialmente. Ana Carol Alves tratou do assunto aqui.


D’Addario: Essas novas ideias ao longo do caminho ocorrem em reação à série de TV Game of Thrones? Você se surpreende tentando complicar ou divergir do que está indo ao ar na TV, ou se aprofundar em personagens que não são tão proeminentes na série?

Martin: Não penso nisso dessa forma. A série é a série e desenvolveu vida própria a esta altura. Estou envolvido na série, é claro, e sempre estive desde o começo, mas meu foco principal tem de ser os livros. Você tem de lembrar que eu comecei a escrever essa história em 1991 e encontrei com David e Dan pela primeira vez em 2007. Eu estava vivendo com esses personagens e esse mundo por 16 anos antes que sequer começássemos a trabalhar na série. Eles estão bem fixos na minha cabeça e não vou mudar nada por causa da série, ou da reação à série, ou o que os fãs acham. Só estou escrevendo a história que me propus a escrever no começo dos anos 1990.

Comentário: Essa é uma resposta realmente relevante. Não é incomum que leitores, frustrados com a demora para o lançamento de Winds, sugiram que Martin esteja atrasando deliberadamente o lançamento desse livro (e do subsequente A Dream of Spring) para fazer algo diferente, ou “testar” reações a certos eventos com a série de TV. Aqui ele desmente peremptoriamente essa hipótese, reiterando que está escrevendo a história que se dispôs a escrever desde o começo – o que é, de fato, o curso de ação mais lógico do ponto de vista de um escritor.


D’Addario: Além da Guerra das Rosas, em quê mais os livros se inspiram, da história ou da vida?

Martin: Eu tinha lido muita história, muita ficção histórica, muita fantasia. Existe um certo diálogo que acontece entre gerações de escritores, particularmente escritores de ficção científica e fantasia, porque somos parte dessa subcultura. Quando eu leio livros de fantasia de outros autores, particularmente Tolkien e algumas das pessoas que se seguiram a ele, sempre existe um desejo no fundo da minha cabeça de responder a eles: “Isso é bom, mas eu faria essa parte diferente,” ou “Não, acho que você fez isso errado.”

Não estou especificamente criticando Tolkien aqui – não quero ser retratado como destruindo Tolkien. As pessoas sempre estão sempre tentando organizar essa coisa de eu-vs.-Tolkien, que acho bem frustrante porque eu venero Tolkien, ele é o pai de toda a fantasia moderna, e meu mundo nunca existiria se ele não tivesse vindo primeiro! No entanto, não sou Tolkien, e estou fazendo as coisas de forma diferente das que ele fez, apesar do fato de que penso que O Senhor dos Anéis foi um dos grandes livros do século XX. Mas existe esse diálogo acontecendo entre Tolkien e eu, e entre eu algumas das outras pessoas que se seguiram a Tolkien e eu, e é um diálogo que continua.

ComentárioAqui, Martin trata de um assunto também já conhecido, que é a sua tendência de (usando o termo dele mesmo) “dialogar” com o molde tradicional da fantasia moderna, muitas vezes subvertendo ou desconstruindo certos elementos clássicos desse gênero de ficção. Não à toa, As Crônicas de Gelo e Fogo tomam emprestados muitos elementos da ficção histórica, às vezes até mais do que o pano de fundo mágico e fantástico faz parecer à primeira vista, principalmente no que concerne ao realismo das relações e reações humanas.


D’Addario: Quando você começou a escrever essa série, o presidente era George H.W. Bush. As coisas mudaram bastante desde então. Há momentos em que você foi influenciado pela política da época ou comentou sobre ela?

Martin: Acho que provavelmente, em certa medida, sim. Não me propus a fazer isso. Como Tolkien, que odiava a acusação de que estava fazendo alegoria, e sempre ficava arrepiado à sugestão de que O Senhor dos Anéis era sobre a 2ª Guerra Mundial, ou até a 1ª Guerra Mundial, em que ele havia lutado. Eu também não estou escrevendo alegoria, mas vivo nessas épocas, e é inevitável que elas vão ter alguma influência sobre mim. Mas durante o processo de escrever esses livros, eu provavelmente imergi muito mais nas políticas da Idade Média e das Cruzadas e da Guerra das Rosas e da Guerra dos Cem Anos.

ComentárioMartin deixa claro, mais uma vez, que não está tentando fazer alegoria em sua obra, mas que é praticamente impossível que eventos políticos do mundo real não interfiram de alguma forma ou de outra em sua escrita. Ele tem posição política, afinal, e isso acaba sendo parte de toda a visão de mundo de uma pessoa.


Suas personagens femininas se destacam por sua força e complexidade, mas seu tratamento nas mãos dos personagens masculinos, frequentemente sendo vítimas de violência sexual, gerou incômodos ao longo dos anos. Essa reação te surpreendeu?

Na verdade, sim. E eu discuto algumas delas. Não acho que as críticas sejam verdadeiras ou adequadas. Sei que todos têm o direito de ter suas opiniões, mas… tanto faz. Estou escrevendo uma história de guerra, essencialmente – A Guerra das Rosas. A Guerra dos Cem Anos. Elas têm “guerra” logo no título em cada uma das minhas inspirações aqui. E quando eu leio livros de história, estupro é parte de todas essas guerras. Nunca houve uma guerra em que não fosse, e isso inclui as guerras que estão acontecendo hoje. Parece-me que há algo de fundamentalmente desonesto se você escreve uma história de guerra e deixa isso de fora.

ComentárioGeorge, aqui, posiciona-se contrariamente a críticas contra o fato de ele não minimizar e nem deixar de fora  de sua bora violências sofridas por mulheres em um universo eminentemente machista e em guerra. De fato, críticas contra a retratação dessa realidade, em uma obra que se propõe ser realística no âmbito humano, são infundadas. Como Martin apontou, seria “desonesto” e artificial simplesmente deixar isso de fora. Isso não significa, é claro, que não possam haver reflexões acerca da abordagem dada a essa realidade.


Em certa medida, isso está tão entrelaçado, trágica e infelizmente, às histórias dos personagens. Daenerys não chegaria aonde está sem ter sido vendida como uma noiva criança, efetivamente uma escrava.

E eu devo apontar, e você provavelmente sabe disso se você leu os livros e assistiu à série, que a noite de núpcias de Daenerys é bastante diferente de como foi retratada nos livros. Novamente, de fato, tínhamos um piloto original em que houve recast no papel de Daenerys, e o que filmamos da primeira vez, quando Tamzin Merchant fez o papel, foi muito mais fiel aos livros. Foi a cena como escrita nos livros. Então isso foi alterado entre o piloto original e o piloto posterior. Você teria que falar com David e Dan sobre isso.

ComentárioMartin aponta as diferenças entre a retratação da noite de núpcias de Daenerys e Drogo na série em relação aos livros. Nos livros, de fato, apesar da coação na celebração do casamento em si, o ato sexual propriamente dito pode ser entendido como consensual. É importante ressaltar, porém, que ao longo dos meses seguintes, Daenerys sofre reiterados estupros praticados por Drogo, chegando a pensar em se matar por isso. Na resposta, é notável, também, que Martin mencione o piloto original e Tamzin Merchant no papel de Daenerys, algo que já fez em outras instâncias.


Parece que é uma restrição dupla, não poder mexer muito com os personagens com liberdade porque eles se tornaram tão amados pelos fãs.

Você quer que o leitor se importe com seus personagens — se isso não acontecer, então não há envolvimento emocional. Mas ao mesmo tempo, quero que meus personagens tenham nuances, que sejam cinzas, que sejam seres humanos. Acho que todos os seres humanos têm nuances. Há essa tendência de se tentar fazer das pessoas heróis e vilões. E acho que há vilões na vida real e heróis na vida real. Mas até os maiores heróis têm falhas e fazem coisas ruins, e até os maiores vilões são capazes de amar e sentir dor e ocasionalmente têm momentos em que você sente simpatia por eles. Por mais que eu ame ficção científica e fantasia e coisas imaginárias, você sempre tem que voltar à vida real como sua pedra-de-toque e dizer, Qual é a verdade?

Comentário: GRRM acaba, nessa resposta, rechaçando a afirmação de D’Addario (que talvez quisesse isso mesmo). O autor esclarece que não escreve para agradar aos fãs quanto aos personagens favoritos deles, mas para que haja envolvimento emocional (de alguma natureza). Novamente, reitera seu intuito de apresentar todos os seres humanos realisticamente, como possuidores de lados e atitudes bons e ruins.


Deve ter sido um salto permitir que essa adaptação acontecesse, sabendo que ela nunca poderia ser tão interna como um romance pode.

Certamente houve um risco. Desde mais ou menos o meio dos anos 80 até o meio dos anos 90, eu estive envolvido na televisão. Sempre que eu entregava o primeiro rascunho do meu roteiro, eu era recebido com “George, adoramos, mas é cinco vezes maior que nosso orçamento, então… Você pode voltar e cortar algumas coisas? Não podemos fazer os efeitos especiais para as coisas que você escreveu, e a grande batalha que você criou onde há 10.000 pessoas de cada lado, faça disso um duelo entre o herói e o vilão,” e eu voltava e fazia tudo isso, porque esse era o trabalho. Mas eu sempre amei meus primeiros rascunhos, ainda que eles não fossem tão polidos — eles tinham todas as coisas boas.

E quando eu finalmente saí da televisão e do cinema e passei à prosa no meio dos anos 90, eu disse, não me importo mais com isso, vou escrever uma coisa tão grande quanto minha imaginação, vou ter todos os personagens que quiser, e castelos gigantes, e dragões, e lobos gigantes, e centenas de anos de história, e um enredo realmente complexo, e tudo bem porque é um livro. É basicamente não-filmável. A ironia, é claro, é que isso foi filmado. Mas quando o livro começou a chegar às listas de best-sellers, e os filmes de O Senhor dos Anéis de Peter Jackson começaram a sair, imediatamente comecei a ser alvo de interesse de Hollywood. Tive uma série de encontros bem antes de David e Dan, com pessoas que diziam que essa era a próxima franquia Senhor dos Anéis. Mas eles não conseguiam lidar com o tamanho do material, a própria coisa que eu me propus a fazer. E eu tinha todas essas reuniões em que diziam, “Tem personagens demais, é grande demais – Jon Snow é o personagem central. Vamos eliminar todos os outros personagens e fazer sobre Jon Snow.” Ou “Daenerys é a personagem central. Vamos eliminar todo o resto e fazer o filme sobre Daenerys.” E eu recusei todos esses acordos.

Isso me fez pensar a respeito, e eu pensei “Ainda não sei se pode ser filmado. É muito grande para ser filmado. Mas se pode ser filmado, não pode ser um filme para o cinema.” É grande demais, e se você quisesse fazer em forma de filmes para o cinema, teria que fazer em dez filmes para o cinema. Era sempre “Oh, vamos fazer um filme, se for um grande sucesso, fazemos mais.” Bem, nem sempre isso funciona, como você descobriu se conhece Fronteiras do Universo de Philip Pullman [uma trilogia de livros adaptada para um filme de 2007, A Bússola Dourada, que nunca teve continuação]. Se o primeiro não funciona, você nunca tem o resto da história. A televisão pode fazer mais. Mas não pode ser na TV aberta, porque tem muito sexo, tem muita violência, é complexo demais. Os personagens não eram carismáticos o suficiente. Você não pode pôr incesto [na TV aberta].

Decidi que a única forma de fazer isso seria com a HBO, ou um canal parecido – Showtime, Starz, um canal premium a cabo – como uma série, cada livro como uma temporada inteira. Essa é a abordagem. E aí meu agente organizou o almoço com David e Dan, eles eram a princípio roteiristas de filmes para o cinema, e eles haviam recebido os livros com filmes para o cinema em mente. Mas eles os leram e chegaram à mesma conclusão: isso não pode ser feito como um filme. Então tivemos o famoso almoço que se tornou um jantar, porque ficamos lá por quatro ou cinco horas. Gostei bastante deles e nos demos bem no começo. As coisas poderiam ter mudado no caminho, às vezes acontecem coisas em que as pessoas são demitidas ou outras pessoas chegam, então eu meio que joguei dados. E felizmente o dado caiu com um resultado bom.

ComentárioA maior das respostas de George na entrevista é um grande relato de como se deu a autorização para que Game of Thrones acontecesse. Tampouco é uma grande novidade, e a explicação do autor nessa resposta é tão completa que penso que há pouco  comentar aqui. Uma informação notável, porém, é pela resposta de Martin, nota-se que David Benioff e D.B. Weiss receberam os livros das Crônicas como um trabalho. Isso contraria a narrativa “histórica” de que eles seriam fãs “naturais” dos livros por conta própria, e que daí teriam tido eles mesmos a ideia de adaptá-los.


Como seu envolvimento com a série mudou ao longo do tempo?

Sou coprodutor executivo da série; David e Dan são os showrunners. Logo no início, sabíamos que eles iriam fazer o grosso do trabalho, mas eu queria estar envolvido. Inicialmente, estive envolvido em toda a seleção de elenco – não estava presente fisicamente – estava aqui em Santa Fe. Mas graças às maravilhas da Internet, pude ver todas as leituras do atores e escrever longas cartas a eles e ter ligações telefônicas em que eu discutia de quais atores eu gostava e de quais eu não gostava. E nas primeiras temporadas, eu escrevia um roteiro por temporada. Eu teria escrito mais com prazer, mas simplesmente não havia tempo. Eu ainda estou tentando fazer esses livros. Gasto mais ou menos um mês para escrever um roteiro e eu não tinha um mês para gastar, então eu disse, acho que vou passar a 5ª temporada. Passei a 6ª e a 7ª temporadas também, só tentando me concentrar nesse livro, que como você sabe está enormemente atrasado. Então nesse sentido, meu envolvimento com a série diminuiu ao longo do tempo, apesar de que ainda estou aqui sempre que eles quiserem falar comigo, e estou sempre disposto a contribuir. David e Dan vieram a Santa Fe e discutimos muitos dos desenvolvimentos finais, aqueles eventos que eu falei no fim da estrada para os quais ambos estamos dirigindo. Então não preciso estar tão envolvido como eu estava no começo.

Comentário: Mesmo após sete anos de Game of Thrones, existem pessoas que acreditam que George tem a palavra final ou “aprova” os roteiros da série de TV. Essa resposta vem para sepultar essa desinformação infundada, quando George revela que está cada vez menos envolvido com a série. Ele esclarece também que mesmo nas primeiras temporadas ele apenas roteirizava um episódio, e funcionava como “consultor” quando Weiss e Benioff sentiam necessidade.


Quando vocês se encontraram em Santa Fe, houve um sentimento de despedida, ou um sentimento triste de passagem do tempo?

Bem, certamente há um sentimento da minha parte de que o tempo passou muito rápido. Sei que aquele encontro foi anos atrás mas me parece que foi semana passada. A televisão passa muito rápido, e infelizmente eu não escrevo tão rápido em termos de livros. Então mesmo à altura desse encontro eu nunca sonhei que a série iria alcançar os livros, mas ela alcançou, e aqui estamos. E tomara que estejamos tomando duas estradas para o mesmo destino.

ComentárioUm comentário comum em declarações e entrevistas recentes de Martin: ele genuinamente acreditava (e, aparentemente, Benioff e Weiss também), quando vendeu os direitos para a HBO, que poderia terminar seus livros antes que a série de TV chegasse a seu fim.

Durante a longa espera por A Dança dos Dragões, quando se juntava informações esparsas para especular quando o livro seria lançado (mais ou menos como agora estamos com Winds), vemos que em 2007 esperava-se que o último livro fosse lançado em 2011 (segundo Martin em entrevista à Variety, citada em artigo da Tower of the Hand).


Saber que essas são duas estradas diferentes pode dar um certo conforto ao escrever – que você ainda pode escrever por si mesmo.

Eu tento! Não posso ser influenciado pela série. A série é ótima, mas uma série de TV e um romance são coisas diferentes. A série de TV tem preocupações do mundo real que eu não tenho. Ela tem um orçamento enorme, um dos maiores da televisão, mas ainda é um orçamento, eles não podem simplesmente continuar adicionando personagens. Eu posso! Eles têm contratos com atores a considerar, eles têm agendas de gravação para considerar, locações, todas essas coisas do mundo real com que realmente não tenho que me preocupar.

Comentário: Mais uma vez, George deixa claro que não é influenciado pelos rumos narrativos tomados pela série na escrita de sua história, e isso fica claro pela própria natureza dos meios. Não faria sentido que ele dependesse disso, quando seu universo é consideravelmente maior, pela própria liberdade inerente à forma escrita.


O aumento no nível de atenção ao longo dos anos desde que a série foi lançada lhe faz se sentir mais perfeccionista na escrita? É mais desafiador escrever agora?

Sim! E isso não necessariamente tem a ver com a série. Apesar de que a série, pode, de fato, ser uma parte disso. Os livros foram enormemente bem-sucedidos. Acho que agora estou em 47 línguas, o que é bastante impressionante. Minhas obras anteriores sempre eram traduzidas, mas estou sendo traduzido agora em línguas de que nunca ouvi falar, em todos os cantos do planeta. Os livros foram indicados a vários grandes prêmios e eles recebem resenhas proeminentes. Isso é ótimo, mas também traz uma certa pressão. Em vez de simplesmente escrever uma história, existe esse carinha na minha cabeça dizendo: “Não, tem que ser ótimo! Tem que ser ótimo! Você está escrevendo uma das grandes fantasias de todos os tempos! Essa frase está ótima? Essa decisão está ótima?” Quando comecei em 1991, eu só estava tentando escrever a melhor história que eu pudesse. Não achava que isso seria uma grande referência para todos os tempos. O fato de que de se conseguir toda essa atenção favorável e elogios, resenhas maravilhosas, indicações a prêmios, isso aumenta a pressão para conseguir de novo.

Comentário: Se por um lado GRRM revela que não é influenciado pelas decisões narrativas de Game of Thrones na escrita de seus livros, por outro ele admite que a atenção que a série da HBO trouxe para seu universo e seus livros aumentou as expectativas em relação a sua obra. Isso fez com que ele se sinta na obrigação de entregar algo em um nível extremo de perfeição, o que pode explicar, em partes, o tempo de escrita de Winds.


É engraçado imaginar a tempestade perfeita – que a série de TV teve sua première mais ou menos à época em que A Dança dos Dragões saiu – isso levou sua obra de muito lida e apreciada a uma das mais famosas séries da Terra.

Isso cresceu, também. Quando a série saiu, algumas das primeiras resenhas eram críticas, apesar de algumas muito positivas, nem perto da maior série da HBO à época. True Blood tinha muito mais audiência do que nós. Mas ao longo da primeira temporada, segunda temporada, [e] terceira temporada, o boca-a-boca aumentou, a tempestade se espalhou, e cresceu. A mesma coisa se aplica aos livros. A Guerra dos Tronos, quando saiu pela primeira vez em 1996, não chegou a nenhuma lista de best-sellers. Nenhuma. A Fúria dos Reis, o segundo livro, quando saiu em 1999, esse chegou, acho que na lista do Wall Street Journal, no 13º lugar por uma semana e depois saiu. A Tormenta de Espadas, um ano depois, estava mais acima na lista e ficou por algumas semanas. Cada livro se deu melhor que o anterior, cada temporada da série se deu melhor que a anterior. O que eu tomo como um verdadeiro elogio – foi tudo boca-a-boca.

ComentárioO relato de George de que tanto livros quanto série cresceram (e crescem, sendo The Spoils of War, com vazamento e tudo, o episódio mais assistido da história da série) gradualmente é corretíssimo. Para complementar, vale notar que um evento narrativo específico parece ter sido o divisor de águas para a popularidade das séries de livros e televisiva: o Casamento Vermelho, que ocorre em A Tormenta de Espadas (de 2000) e na terceira temporada de Game of Thrones (de 2013).

O Festim dos Corvos, o livro imediatamente posterior, lançado em 2005, foi o primeiro a estrear em primeiro lugar na lista de best-sellers do New York Times. Analogamente, a audiência média da Game of Thrones aumentou consideravelmente da terceira para a quarta temporada, e foi quando a série se tornou realmente um juggernaut cultural de proporções monumentais.


Quando você anda pela rua em Santa Fe, novos personagens e detalhes históricos pipocam na sua cabeça?

Às vezes acontece comigo quando dirijo longas distâncias. Quando era mais novo eu adorava viagens pela estrada, e entrar no carro e dirigir por dois dias para chegar a Los Angeles ou Kansas City ou Saint Louis ou Texas. E na estrada, eu pensava muito sobre isso. Em 1993, acho que foi, visitei a França pela primeira vez. Tinha começado A Guerra dos Tronos dois anos antes em 91 e tinha deixado de lado porque a televisão estava rolando. E por algum motivo, eu aluguei um carro, estava dirigindo por toda a Bretanha e pelas estradas da França e essas pequenas vilas medievais e vendo castelos, e de alguma forma aquilo me animou de novo. Eu estava pensando sobre Tyrion e Jon Snow e Daenerys e minha cabeça estava cheia de coisas da Guerra dos Tronos.

Comentário: Um pequeno exemplo de como as ideias surgem para o autor, mesmo em momentos em que não está necessariamente trabalhando na obra. Não é o tema central da resposta e nem uma informação nova, mas é relevante ressaltar que o primeiro livro da série também foi relativamente demorado entre o início de sua escrita e a data de sua publicação: foram cinco anos, entre 1991 e 1996.


Você está em território estranho, com seus personagens em grande parte em suas mãos mas também soltos no mundo sendo interpretados na TV. Você é capaz de estabelecer muros na sua cabeça do tipo sua Daenerys é a sua Daenerys, e a Daenerys de Emilia Clarke é dela e da série?

Cheguei a esse ponto. Os muros estão erguidos na minha cabeça. Não acho que estivessem necessariamente lá desde o começo. Em alguns momentos, quando David e Dan e eu tínhamos discussões sobre o que deveria entrar, eu sempre favorecia permanecer fiel aos livros, enquanto eles favoreciam fazer mudanças. Acho que uma das maiores foi provavelmente quando eles tomaram a decisão de não trazer Catelyn Stark de volta como Senhor Coração-de-Pedra. Essa foi provavelmente o primeiro grande afastamento da série em relação aos livros e, você sabe, eu argumentei contra isso, e David e Dan tomaram essa decisão.

Na minha versão da história, Catelyn Stark é re-imbuída com uma espécie de vida e se torna essa criatura [wight] vingativa que anima um grupo de pessoas ao redor dela e está tentando reclamar sua vingança nas terras fluviais. David e Dan tomaram a decisão de não ir nessa direção na história deles, seguindo outras tramas. Mas ambos são igualmente válidos, acho, porque Catelyn Stark é um personagem fictício e ela não existe. Você pode contar qualquer dessas histórias sobre ela.

Comentário: Uma resposta com vários pontos de interesse. Primeiro, a admissão de GRRM de que atualmente vê as duas obras como cânones diferentes e os personagens como essencialmente diferentes. É claro que ele já havia dito que apenas os livros são cânone, mas é relevante o reconhecimento dele de que existem “muros” que separam as versões dos personagens dos livros e da série.

Em segundo lugar, algo que, se não é surpreendente, é também significativo. George sempre tentou manter a adaptação o mais fiel possível de sua obra, mas, como já explicitado em respostas (e comentários) anteriores, não cabia a ele a decisão final. Por último, a referência à Senhora Coração-de-Pedra como uma “criatura” (wight), um termo anteriormente reservado apenas aos mortos reanimados pelos Outros, é uma novidade.


Qual foi o momento mais difícil de escrever na série?

O Casamento Vermelho, sem dúvida. Eu sabia que o Casamento Vermelho estava vindo e eu o estava planejando todo o tempo, mas quando cheguei àquele capítulo, que se passa aos dois terços de A Tormenta de Espadas, descobri que não podia escrever aquele capítulo. Eu pulei o capítulo e escrevi as centenas de páginas que se seguiam. O livro inteiro estava pronto, exceto a cena com o Casamento Vermelho, inclusive todo o rescaldo do Casamento Vermelho. E fui simplesmente tão difícil escrever aquela cena, porque eu estava habitando Catelyn por tanto tempo, e claro que tenho muita afeição por Robb, também, apesar de ele nunca ter sido um personagem ponto-de-vista, e até por alguns dos personagens menores. Eles são personagens menores mas você desenvolve um relacionamento com eles também, e eu sabia que todos eles iam morrer. Fui uma das escritas mais difíceis que já fiz, mas também uma das cenas mais poderosas que já escrevi.

Comentário: Tampouco uma novidade para muitos leitores (e provavelmente D’Addario também já sabia a resposta). Desde 2005, no mínimo, George já admitia que o Casamento Vermelho havia sido a parte mais difícil de escrever em sua obra.


A Senhora Coração-de-Pedra surgiu porque era difícil dizer um adeus permanente a Catelyn?

É, talvez. Isso pode ter sido parte. Parte também, é o diálogo sobre o qual eu estava falando. E aqui tenho que voltar a Tolkien de novo. E vai parecer que o estou criticando, o que acho que estou. Sempre me incomodou que Gandalf volta dos mortos. O Casamento Vermelho para mim em O Senhor dos Anéis é as minas de Moria, e quando Gandalf cai – é um momento devastador! Eu não esperava aquilo aos 13 anos, me pegou totalmente de surpresa. Gandalf não pode morrer! Ele é o cara que sabe de todas as coisas que estão acontecendo! Ele é um dos heróis principais aqui! Oh deus, o que eles vão fazer sem Gandalf? Agora é só os hobbits? E Boromir, e Aragorn? Bem, talvez Aragorn consiga, mas é simplesmente um momento enorme. Um envolvimento emocional enorme.

E então no livro seguinte, ele aparece de novo, e foram seis meses entre as edições americanas desses livros, que pareceram um milhão de anos para mim. Então todo aquele tempo eu pensei que Gandalf estava morto, e agora ele está de volta e ele é Gandalf, O Branco. E, eh, ele é mais ou menos o mesmo de sempre, exceto que é mais poderoso. Sempre me pareceu um pouco de trapaça. E à medida que envelheci e considerei isso mais, sempre me pareceu que a morte não faz de alguém mais poderoso. Aquilo, de certa forma, sou eu conversando com Tolkien no diálogo, dizendo “É, se alguém volta de estar morto, especialmente se eles sofrem uma morte violenta, traumática, eles não voltam bem como sempre.” Era isso que eu estava tentando fazer, e ainda estou tentando fazer, com a personagem Senhora Coração-de-Pedra.

Comentário: Aqui as coisas começam a ficar realmente interessantes. A declaração de insatisfação com o retorno de Gandalf não é novidade, George já disse isso em inúmeras circunstâncias e oportunidades, e em artigo do ano passado, citei outra entrevista em que ele fala sobre o assunto. A ideia de que a morte deve mudar, para pior, alguém que retorna dela é algo que o autor tenta imprimir em sua obra, e sempre sente a necessidade de reiterar em entrevistas.


E Jon Snow, também, é drenado pela experiência de voltar dos mortos na série.

Certo. E o pobre Beric Dondarrion, que foi construído como presságio de tudo isso, toda vez ele é um pouco menos Beric. Suas memórias se esvaem, ele tem todas essas cicatrizes, ele está se tornando cada vez mais fisicamente horrível, porque ele não é mais um ser humano. Seu coração não está batendo, seu sangue não está fluindo em suas veias, ele é um wight [criatura], mas um wight animado por fogo ao invés de gelo, agora estamos voltando a toda a coisa de fogo e gelo.

Comentário: E nessa resposta a coisa pegou fogo de vez (com o perdão do trocadilho). George ignora um pouco a menção de D’Addario a Jon Snow (talvez pelo fato de em seus livros sua volta dos mortos ainda não ter ocorrido), mas traz à baila o primeiro personagem que foi ressuscitado pelo método do fogo: Beric Dondarrion. Na série de TV, as ressurreições de Beric e Jon Snow certamente não apresentam a carga emocional e física correspondentes ao que Martin parece pensar sobre os que  voltam dos mortos.

E aqui, obviamente falando do Beric de seus livros, e não da série de TV, Martin traz descrições e adjetivações do personagem que são de extrema relevância: ele se refere a ele como um wight (como fizera com Stoneheart em resposta anterior), diz que ele “não é mais um ser humano” e que seu coração não bate. Trata o personagem basicamente como um morto-vivo, portanto.

O quanto disso se aplicará também a Jon Snow em seus livros (presumindo-se que o método de sua ressurreição seja também o “beijo de R’hllor”, como foi na série de TV)? Isso é algo realmente interessante de se discutir e especular. Significa que Jon também não será mais um “ser humano”? Que seu coração não irá bater? Que a morte o mudará para pior?

Por um lado, existe um componente (não explorado pela série) que pode mitigar os efeitos negativos da morte na personalidade de Jon: sua ligação de warg com o lobo gigante Fantasma (e o prólogo de Varamyr em Dança, que introduz o conceito da “segunda vida” para troca-peles, serviria como foreshadowing). Por outro lado, o uso dessa “segunda vida” para manutenção da personalidade no pós-morte pareceria um recurso muito conveniente, o que não é muito do feitio de George nas Crônicas. Acima de tudo, seria contrário a tudo o que ele vem dizendo repetidas vezes sobre os efeitos da morte nos “retornados” (com o exemplo de Gandalf e tudo o mais). É realmente difícil determinar qual desses caminhos (se algum) será trilhado pelo autor.

E outro questionamento interessante relacionado a esse assunto é se Jon terá ou não capítulos sob seu ponto de vista em WindsDream. Catelyn perdeu os seus ao retornar da morte como a Senhora Coração-de-Pedra, e George já disse que se trata efetivamente de outra personagem. A introdução de Melisandre como POV em Dança me parece deixar claro que será ela a narradora dos eventos na Muralha pós-atentado a Jon, pelo menos a princípio (tendo sido introduzida como ponto-de-vista desde o livro anterior para não parecer tanto como uma “tapa-buracos”). Assim, penso que a real pergunta é se se esse recurso de retirada de POV de Jon vai ser temporário ou permanente.

Pessoalmente, eu acharia um caminho narrativo fascinante (e ousado) se Jon, um dos mais centrais heróis de toda a trama, perdesse seu status de POV durante os livros por estar muito mudado.


Existe alguma coisa sobre a qual não falamos?

Suponho que existam problemas que poderíamos ter explorado mais com toda a questão sobre violência sexual e mulheres – é uma questão complicada e carregada. Para falar de novo sobre esse ponto um pouco, eu faço muitas sessões de autógrafos, e acho que tenho provavelmente mais leitoras do que leitores agora. Só um pouco, mas provavelmente 55 por cento, 45 por cento, mas vejo leitoras nos eventos e elas amam minhas personagens femininas. Tenho muito orgulho da criação de Arya e Catelyn e Sansa e Brienne e Daenerys e Cersei e todas elas. É uma das coisas que mais me dá satisfação, que elas tenham sido tão bem recebidas como personagens, especialmente por leitoras que frequentemente não são atendidas enquanto público.

Comentário: George retorna à questão da violência sexual contra mulheres, e admite que se trata de um assunto delicado. A estatística que ele observa em suas aparições públicas sobre a prevalência de leitoras encontra correspondência nos ambientes virtuais de discussão sobre seu universo de livros, também. E, de fato, o que se percebe é que as personagens femininas em geral são bastante bem recebidas.


No futuro, quando As Crônicas de Gelo e Fogo estiverem concluídas, você espera voltar a trabalhar em gêneros multifacetados?

Sim… mas ainda tenho anos disso pela frente, e já tenho 68 anos, então… tenho ideias o suficiente agora para escrever outros livros até que eu tivesse 168 anos. Mas provavelmente não vou viver até os 168 anos. Então, quanto tempo ainda tenho? Estou sempre tendo novas ideias, então talvez eu nunca escreva algumas dessas ideias antigas. Então quem sabe? Escrevo as coisas que quero escrever.

Tive sorte com o sucesso desses livros e a série. Vou terminar esses livros; acho que tenho essa obrigação para com o mundo e meus leitores. É a coisa pela qual vou ser lembrado. Mas vou escrever outras coisas depois disso, espero. Talvez volte a escrever historietas. Não as escrevo há muitos anos, mas sempre há algo a ser dito. E nunca mais vou escrever uma obra gigante de sete livros que demora 30 anos!

ComentárioD’Addario guarda para o final uma resposta para acalentar os corações dos leitores mais impacientes de Martin: o autor diz que sabe que é pelas Crônicas de Gelo e Fogo que seu nome ficará para a história, e declara categoricamente que vai terminar a obra.


Várias coisas interessantes, tanto em uma perspectiva externa às Crônicas quanto sobre a história delas em si, não é mesmo? Quer palpitar a respeito delas também? A caixa de comentários está abaixo. Ah, e estou no Twitter!