Quanto tempo o ódio pode manter algo unido?

– Então aqui estamos, 17 anos depois, mantendo tudo unido.
– Quanto tempo o ódio pode manter algo unido?
– 17 anos é um bom tempo.
– Como ela era?
– Nunca perguntou dela, nenhuma vez. Por que agora?
– No início, só em dizer seu nome, mesmo em particular, era como se eu a trouxesse de volta à vida. Eu achava que se não falasse dela, ela desaparecia para você. Quando percebi que isso não aconteceria, recusei-me a perguntar por despeito. Não quis te dar a satisfação de pensar que me preocupava o bastante para perguntar. E, enfim, ficou claro que meu despeito não valia nada para você. Até diria que você se divertia com isso.
– Então por que agora?
– Que mal o fantasma de Lyanna Stark nos causaria que já não causamos um ao outro uma centena de vezes?
– Quer saber a terrível verdade? Não consigo nem lembrar como ela era. Só sei que ela era tudo que sempre quis… Alguém a tirou de mim… e nem os Sete Reinos preenchem o vazio que ela deixou.
– Já senti algo por você, sabia?
– Eu sei.
– Mesmo depois que perdemos nosso primeiro menino. Por um bom tempo, na verdade. Já foi possível para nós? Houve sequer um tempo, um momento?
– Não. Isso a faz se sentir melhor ou pior?
– Não me faz sentir nada.
(Game of Thrones S01 E05 – The Wolf and the Lion)

Robert Baratheon e Cersei Lannister
Lean and Fierce, por Ertaç Altinöz.

Não é surpresa para ninguém que as mudanças feitas na série acabam confundindo até mesmo os fãs leitores. Essa cena, um diálogo entre Cersei Lannister e Robert Baratheon sobre seu casamento e sentimentos, é apenas mais uma delas. Muitas vezes eu li em comentários que “Cersei esperava ser feliz no casamento”, e me perguntei de onde isso tinha vindo, porque em todas as minhas leituras dos livros, nunca tinha lido nada parecido. Daí a curiosidade me levou a pesquisar, e por fim, descobri que a única cena disso é essa citada acima.

É uma bela cena. Na verdade, até me deu saudade dos bons diálogos que existiam nas temporadas iniciais. Porém, o problema é que… nos livros isso não existe. E é por esse motivo que estou aqui, me propondo a fazer uma análise do relacionamento de Cersei e Robert nos livros, e sobre como essa união forçada acabou destruindo ainda mais o psicológico de ambos.

Parte I: Um casamento por dever

“[…] Seu pai encontrará outro homem para você, um homem melhor do que Rhaegar”.
Contudo, a tia mentira, e o pai falhara com ela, tal como Jaime estava falhando agora. O pai não encontrou homem melhor. Em vez disso, deu-me Robert, e a maldição de Maggy desabrochou como uma flor venenosa.
(O Festim dos Corvos, cap. 24, Cersei V)

E Cersei… devo-a a Jon Arryn. Não tinha nenhum desejo de casar depois de Lyanna me ter sido roubada, mas Jon disse que o
reino precisava de um herdeiro. Cersei Lannister seria um bom partido, ele me disse, me ligaria a Lorde Tywin para o caso de Viserys Targaryen tentar recuperar o trono do pai […]
(A Guerra dos Tronos, cap.30, Eddard VII)

O casamento de Cersei e Robert começou como muitos dos casamentos na época da Rebelião: por dever e necessidade de pacificação. Agora, não estou dizendo que todos os casamentos políticos são ruins – Catelyn e Ned são exemplos do contrário. Mas também vale notar que das uniões formadas dentro desse período da Rebelião, o matrimônio Stark foi a exceção e não a regra, justamente por ter um diferencial que os demais casais não tinham: o desejo de ambos de transformar essa união em algo positivo. Robert e Cersei, por outro lado, não estavam dispostos a sequer tentar.

Robert and Cersei wedding
O casamento de Robert e Cersei, do vídeo de História e Tradição da HBO.

Diferente da Cersei mostrada na série de TV, a dos livros deixa claro em todas as suas passagens que jamais considerou gostar de Robert. Afinal, como ela mesma declara:

Fodi com Jaime na manhã do meu casamento, a rainha se lembrou.
(A Dança dos Dragões, cap. 54, Cersei I)

E também:

No dia em que se casara com Robert Baratheon, milhares tinham aparecido para aclamá-los. Todas as mulheres usavam suas melhores roupas, e metade dos homens trazia crianças nos ombros. Quando emergira de dentro do septo, de mão dada com o jovem rei, a multidão soltara um rugido tão alto que poderia ter sido ouvido em Lanisporto.
“Eles gostam bastante de você, senhora”, murmurara-lhe Robert ao ouvido. “Veja, todos os rostos estão sorrindo.” Durante aquele curto momento, fora feliz no casamento… até lançar por acaso um relance a Jaime. Não, lembrava-se de ter pensado, não são todos os rostos, senhor.
[…]
– Meu falecido marido também adorava a floresta – nos primeiros anos de casamento, Robert eternamente implorava para que Cersei fosse à caça com ele, mas ela sempre pedia dispensa. As viagens de caça de Robert permitiam-lhe passar tempo com Jaime. Dias de ouro e noites de prata. A dança que os dois tinham dançado fora decerto perigosa. Dentro da Fortaleza Vermelha havia
olhos e ouvidos por todo lado, e nunca se podia ter certeza de quando Robert regressaria. De algum modo, o perigo só servira para fazer que o tempo passado juntos fosse ainda mais emocionante.
[…]
Vá caçar, Cersei dissera a Robert meia centena de vezes. Meu irmão me mantém bem protegida.
(O Festim dos Corvos, cap. 28, Cersei VI)

E quanto a Robert? Bem, ele nunca deixou de ser quem era: um típico mulherengo inveterado, dado a vícios e à violência.

Quando Cersei se casara com o rei, a senhora mãe de Robert estava morta havia muito tempo, embora ambos os seus irmãos tivessem aparecido para a boda, após o que se deixaram ficar durante meio ano. Mais tarde, Robert insistira em devolver a cortesia com uma visita a Estermont, uma ilhota montanhosa ao largo do Cabo da Fúria. A úmida e sombria quinzena que Cersei passara em Pedraverde, a sede da Casa Estermont, fora a mais longa de sua jovem vida. Jaime apelidara o castelo, assim que o vira, de “Merdaverde”, e rapidamente pusera Cersei a chamá-la do mesmo jeito. Fora isso, passava os dias vendo seu real marido fazer falcoaria, caçar, beber com os tios e espancar vários dos primos até deixá-los sem sentidos no pátio de Merdaverde.
Também tinha havido uma prima, uma viuvinha robusta com seios grandes como melões, cujo marido e pai tinham ambos morrido em Ponta Tempestade durante o cerco.
“O pai dela foi bom para mim”, dissera-lhe Robert, “e ela e eu brincávamos juntos quando éramos pequenos”. Não demorou muito tempo para começar outra vez a brincar com ela. Assim que Cersei fechava os olhos, o rei escapulia para ir consolar a pobre criatura solitária. Uma noite, mandou Jaime segui-lo, para confirmar as suspeitas. Quando o irmão regressou, perguntou-lhe se
queria Robert morto.
“Não”, respondera, “quero-o encornado”. Gostava de pensar que tinha sido naquela noite que Joffrey foi concebido.
(O Festim dos Corvos, cap. 25, Cersei V)

(…) os bastardos do marido também tinham a sua aparência, embora Robert pelo menos tenha tido a elegância de mantê-los longe de vista. Uma vez, depois daquele lamentável assunto do gato, fizera uns ruídos sobre trazer uma filha ilegítima qualquer para a corte.
“Faça o que quiser”, dissera-lhe Cersei, “mas talvez venha a descobrir que a cidade não é um lugar saudável para uma garota em crescimento”. A mancha negra que aquelas palavras lhe tinham conquistado não fora fácil esconder de Jaime, mas não voltara a ouvir falar daquela bastarda.
(O Festim dos Corvos, cap. 17, Cersei IV)

– De uma casa de prostitutas qualquer? Malditos sejam os seus olhos, Robert, eu fui lá para ver a sua filha! A mãe a chamou Barra. Parece-se com aquela primeira moça que você teve, quando éramos rapazes no Vale – Ned observou a rainha enquanto falava; seu rosto era uma máscara, imóvel e pálida, sem nada trair.
Robert corou.
– Barra – resmungou. – Supõe que isso me agrada? Maldita moça. Pensei que tivesse mais bom-senso.
– Ela não deve ter mais que quinze anos, e é uma prostituta, como poderia ter bom-senso? – disse Ned, incrédulo. A perna começava a doer fortemente. Era difícil manter-se calmo. – A tola da moça está apaixonada por você, Robert.
O rei olhou de relance para Cersei.
– Isso não é um assunto adequado para os ouvidos da rainha.
(A Guerra dos Tronos, cap. 39, Eddard X)

Também ouvi segredar que Robert arranjou um par de gêmeos com uma criada em Rochedo Casterly, há três anos, quando viajou para oeste, para o torneio de Lorde Tywin. Cersei mandou matar os bebês e vendeu a mãe a um negociante de escravos que estava de passagem. Era afronta demais ao orgulho dos Lannister, tão perto de casa.
(A Guerra dos Tronos, cap. 35, Eddard IX)

Nos primeiros anos, quando a montava com mais frequência, fechava os olhos e fingia que Robert era Rhaegar. Não conseguia fingir que era Jaime; era muito diferente, era-lhe estranho demais. Até seu cheiro era errado.
Para Robert, essas noites nunca aconteciam. Ao amanhecer, não se lembrava de nada, ou pelo menos era nisso que queria levá-la a crer. Uma vez, durante o primeiro ano do casamento, Cersei exprimira seu desagrado no dia seguinte.
“Machucou-me”, ela tinha então protestado. Ele teve a decência de parecer envergonhado.
“Não fui eu, senhora”, dissera, num carrancudo tom de amuo, como uma criança pega roubando bolos de maçã da cozinha. “Foi o vinho. Bebo vinho demais.” Para empurrar para dentro a admissão, estendera a mão para o corno de cerveja. Quando o levara à boca, ela atirara-lhe seu próprio corno à cara, com tanta força que lhe lascara um dente.
(O Festim dos Corvos, cap. 32, Cersei VII)

Sendo assim, conforme as passagens acima nos mostram, nenhum deles estava disposto a se esforçar para se adaptar aquela nova realidade conjunta, e dessa forma, nada de bom poderia florescer, pois nada de bom foi cultivado.

Robert Baratheon Ned Stark Lyanna Stark
Robert e Eddard visitam o túmulo de Lyanna Stark, nas criptas de Winterfell. Arte: Thomas Denmark. © Fantasy Flight Games.

Parte II: Rhaegar, Lyanna, vícios e rancores

Os fantasmas de Rhaegar e Lyanna foram uma constante na vida de Robert e Cersei. Ambos teceram milhares de fantasias e sonhos em cima da memória dessas duas figuras que – se fomos falar com franqueza – eles sequer conheciam realmente.

É interessante notar que a visão que ambos possuem de seus “amores perdidos” é muito semelhante. Robert projeta em Lyanna a imagem imaculada da única pessoa que o faria feliz, e Cersei faz o mesmo, projetando em Rhaegar não apenas sua felicidade perdida, mas também sua salvação da maldição da Maggy.

Robert demonstra isso em várias de suas falas:

Malditos sejam os deuses. Foi uma vitória vazia, a que me deram. Uma coroa… foi pela donzela que orei a eles. A sua irmã, salva… e minha de novo, como estava destinada a ser. Pergunto-lhe, Ned, de que serve usar uma coroa? Os deuses zombam tanto das preces de reis quanto das dos vaqueiros.
(A Guerra dos Tronos, cap. 12, Eddard II)

– A mulher tentou me proibir de participar do corpo a corpo. Agora está amuada no castelo, maldita seja. Sua irmã nunca teria me envergonhado assim.
– Não chegou a conhecer Lyanna como eu conheci, Robert. Você viu sua beleza, mas não o ferro que tinha por baixo. Ela lhe teria dito que não tem nada a fazer no corpo a corpo.
(A Guerra dos Tronos, cap. 30, Eddard VII)

– O Rhaegar… o Rhaegar ganhou, maldito seja. Matei-o, Ned, enterrei o espigão naquela armadura negra, espetei-o em seu coração negro, e ele morreu aos meus pés. Fizeram canções sobre isso. Mas de algum modo ele conseguiu ganhar. E agora tem Lyanna, e eu tenho ela – o rei esvaziou o copo.
(A Guerra dos Tronos, cap. 39, Eddard X)

E Cersei faz o mesmo:

Comparado com Rhaegar, até seu belo Jaime parecera não ser mais do que um rapazinho imberbe. O príncipe vai ser meu marido, pensou, estonteada de excitação, e quando o velho rei morrer, eu serei a rainha.
(O Festim dos Corvos, cap. 24, Cersei V)

Seu riso morreu ao fim do torneio. Não houve nenhum banquete final, não houve brindes para celebrar seu noivado com o Príncipe Rhaegar. Só silêncios frios e olhares gelados entre o rei e seu pai. Mais tarde, depois de Aerys, do filho e de todos os seus galantes cavaleiros terem partido para Porto Real, a garota foi ter com a tia, em lágrimas e sem compreender.
“Seu pai propôs a união”, dissera-lhe a Senhora Genna, “mas Aerys recusou-se a ouvir falar do assunto. ‘É o meu criado mais capaz, Tywin’, dissera o rei, ‘mas um homem não casa seu herdeiro com a filha do criado.’ Seque essas lágrimas, pequena. Alguma vez já viu um leão chorar? Seu pai encontrará outro homem para você, um homem melhor do que Rhaegar”.
Contudo, a tia mentira, e o pai falhara com ela, tal como Jaime estava falhando agora. O pai não encontrou homem melhor. Em vez disso, deu-me Robert, e a maldição de Maggy desabrochou como uma flor venenosa. Se ao menos tivesse me casado com Rhaegar, como os deuses pretendiam, ele nunca teria olhado duas vezes para a pequena loba. Rhaegar hoje seria o nosso rei,
e eu seria a sua rainha, a mãe de seus filhos.
Nunca perdoara Robert por tê-lo matado.
Mas a verdade era que os leões não eram bons em perdoar.
(O Festim dos Corvos, cap. 24, Cersei V)

A única vez que a deixara molhada fora na noite do casamento.
Robert era bastante atraente quando se casaram, alto, forte e poderoso, mas seus cabelos eram negros e pesados, os pelos eram densos no peito e grossos em volta do sexo. Foi o homem errado que regressou do Tridente, pensava por vezes a rainha enquanto ele abria caminho através de seu corpo. Nos primeiros anos, quando a montava com mais frequência, fechava os olhos e fingia que Robert era Rhaegar.
(O Festim dos Corvos, cap. 32, Cersei VII)

Ou seja, além de não estarem dispostos a tentar tornar seu casamento algo bom, ambos também passaram a projetar um no outro as causas de suas infelicidades, e cada vez mais se prenderam ao passado e a memória fantasiosa que possuíam de Rhaegar e Lyanna.

Robert tornou-se cada vez mais nocivo, se transformando em uma figura de vícios e ócio, enquanto que Cersei internalizou seu rancor, o alimentando a cada dia, até que todo o sentimento que restasse fosse um ódio desprezível.

Mais de uma vez sonhei em renunciar à coroa. Embarcar para as Cidades Livres com meu cavalo e meu martelo, passar o tempo fazendo guerra e entre vadias. Foi para isso que nasci. O rei mercenário. Como me adorariam os cantores! Sabe o que me impediu? A ideia de ver Joffrey no trono, com Cersei atrás dele a segredar-lhe ao ouvido. Meu filho. Como pude fazer um filho assim, Ned?
– Ele não passa de um rapaz – disse Ned desajeitadamente. Pouco gostava de Príncipe Joffrey, mas percebia a dor na voz de Robert. – Esqueceu de como você era bravo na idade dele?
– Não me perturbaria se ele fosse bravo, Ned. Não o conhece tão bem como eu – suspirou e balançou a cabeça.
(A Guerra dos Tronos, cap. 30 – Eddard VII)

Uma dúzia de anos – disse Ned. – Como foi que não teve filhos do rei?
Ela ergueu a cabeça, em desafio.
– Seu Robert deixou-me uma vez à espera de bebê – disse, com a voz cheia de desprezo. – Meu irmão encontrou uma mulher para me purificar. Ele nunca soube. A bem da verdade, quase não suporto que me toque, e há anos que não o deixo entrar em mim. Conheço outras maneiras de lhe dar prazer, quando abandona suas putas durante tempo suficiente para cambalear até meu quarto de dormir. Não importa o que façamos, o rei está geralmente tão bêbado que na manhã seguinte já esqueceu tudo.
(A Guerra dos Tronos, cap. 45, Eddard XII)

Dez mil de seus filhos morreram na palma de minha mão, Vossa Graça, pensou, enfiando um terceiro dedo em Myr. Enquanto roncava, eu lambia seus filhos um por um de meu rosto e dedos, todos aqueles pálidos príncipes pegajosos. Você reclamava seus direitos, senhor, mas na escuridão eu comia seus herdeiros.
(O Festim dos Corvos, cap. 32, Cersei VII)

A filha de Ned Stark tinha fugido depois de seu lobo ter atacado Joff, deve se lembrar. Minha irmã quis que a garota perdesse
uma mão. A velha punição por bater em alguém de sangue real. Robert disselhe que era cruel e louca. Levaram metade da noite discutindo… Bem, Cersei discutiu, e Robert bebeu.
(O Festim dos Corvos, cap. 30, Jaime IV)

Cersei perguntou a si mesma como seria beijar outra mulher. Não um beijo ligeiro na bochecha, como era cortesia comum entre as senhoras de nascimento elevado, mas um beijo intenso nos lábios. Os de Taena eram muito cheios. Perguntou a si mesma como seria chupar aqueles seios, deitar a mulher de Myr de costas, forçá-la a abrir as pernas e usá-la como um homem a usaria, do modo como Robert a usava quando estava cheio de bebida e ela não conseguia levá-lo até o fim com a mão ou a boca.
Aquelas tinham sido as piores noites, em que jazia impotente debaixo dele enquanto ele se satisfazia, fedendo a vinho e grunhindo como um javali. Normalmente rolava de cima dela e adormecia assim que terminava, e já ressonava antes de sua semente ter tempo de secar nas coxas de Cersei. Depois, ficava sempre dolorida, em carne viva entre as pernas, com os seios machucados pelos maus-tratos que ele lhes dava.
(O Festim dos Corvos, cap. 32, Cersei VII)

A face de Cersei era a imagem do desprezo.
– Que brincadeira fizeram os deuses de nós dois – disse. – Por direito, você devia estar de saias e eu, de cota de malha.
Roxo de raiva, o rei estendeu a mão e deu um violento golpe no rosto da rainha. Cersei Lannister tropeçou na mesa e estatelou-se, mas não gritou. Seus dedos magros afagaram a bochecha, onde a pele pálida e macia já começava a ficar vermelha. No dia seguinte o hematoma cobriria metade do rosto.
– Vou usar isto como um distintivo de honra – ela anunciou.
– Use-o em silêncio, ou volto a honrá-la – prometeu Robert. Gritou por um guarda. Sor Meryn Trant entrou no quarto, alto e melancólico em sua armadura branca. – A rainha está cansada. Leve-a para o seu quarto – o cavaleiro ajudou Cersei a se levantar e a levou sem uma palavra.
Robert estendeu a mão para o jarro e voltou a encher seu copo.
– Está vendo o que ela me faz, Ned – o rei sentou-se, embalando o copo de vinho. – Minha querida esposa. E mãe dos meus filhos – a raiva tinha agora desaparecido; em seus olhos Ned viu algo triste e assustado. – Não devia ter batido. Não foi… não foi régio – fixou os olhos nas mãos, como se não soubesse bem o que elas eram.
(A Guerra dos Tronos, cap. 39, Eddard X)

Aquele quarto era gelado, e seu maldito marido real morrera sob aquele dossel. Robert Baratheon, o Primeiro de Seu Nome, que nunca haja um segundo. Um brutamontes obtuso e bêbado. Que chore no inferno.
(O Festim dos Corvos, cap. 32, Cersei VII)

Os sentimentos de Robert e Cersei evoluíram de um rancor compreensível para um ódio intolerável, que fazia com que ambos estivessem sempre dispostos a descontar sua frustração um no outro.

Em Robert, a junção do vício com o trono que ele não queria, mais a desilusão com a vida, o tornaram violento e abusivo. Embora como amante e rei fosse querido e agradável para seus súditos – não podemos esquecer que a visão dos personagens é diferente da nossa, e que Robert, apesar de todos os seus defeitos, era querido pelo povo –, ele era na verdade um rei medíocre e um marido horroroso.

Em Cersei, o sentimento de impotência, a paranoia profética e o próprio machismo internalizado que é característica da personagem, fizeram dela uma figura amargurada, aumentando consideravelmente sua natureza cruel. Sendo assim, fica claro que foi um casamento fadado ao fracasso desde o início, e que se tornou ainda pior dado a personalidade dos envolvidos neles. E é sobre isso que falaremos a seguir.

The death of Robert Baratheon
A morte de Robert Baratheon, por Victor Manuel Leza Moreno para a edição ilustrada de ‘A Guerra dos Tronos’.

Parte III: Cersei e Robert, dois lados da mesma moeda

Certa vez li que em uma união onde duas pessoas são muito semelhantes, ou eles se tornam indestrutíveis juntos, ou eles se destroem mutuamente. Acredito que o caso de Cersei e Robert se encaixe perfeitamente na segunda situação: apesar dos rancores, desprezo e ódio, no geral, suas personalidades são quase idênticas.

Ambos são arrogantes, vaidosos e violentos. Ambos são dados a vícios e não sabem perdoar ou esquecer qualquer ofensa (real ou não), e ambos são implacáveis em sua vingança, não se importando nem um pouco com aqueles que destruirão em consequência disso. É até irônico perceber que, se eles tivessem dado certo, ninguém jamais teria conseguido destruir o que eles estavam construindo, pois todos os que tentassem seriam aniquilados. Mas aí não teríamos as Crônicas, e quem quer isso, não é?

Enfim, como conclusão, gostaria de deixar claro que em nenhum momento essa análise foi feita para desculpar ou aliviar as ações de nenhum deles, apenas para assinalar a forma como ambos têm parcelas de culpa iguais em suas desgraças. A semelhança entre Cersei e Robert, suas tragédias e ações, só os tornam ainda mais complexos, e a cada leitura, vamos aprendendo e descobrindo novas facetas de ambos, assim como ocorre com os demais personagens.

A vida de Robert e Cersei foi, nada mais, nada menos, do que o que eles a fizeram ser. Embora eles tenham se tornado personagens desagradáveis e com ações desprezíveis, é uma frase do próprio Ned Stark que parece ser a melhor conclusão sobre esse casamento: “Não sei de qual dos dois sinto mais pena”.