Stephen Leigh em entrevista
Arte de fundo: Marc Simonetti (adaptada). Foto: Penguin Books USA.

Hoje é o dia do relançamento do primeiro livro de Wild Cards pela editora Suma no Brasil, e o Gelo & Fogo aproveita a ocasião para estrear nossa série de matérias sobre esse universo compartilhado coordenado por George R. R. Martin.

Em “Conheça os autores de Wild Cards“, conversaremos com os escritores participantes sobre seu envolvimento com a série, mas também sobre outros momentos de suas carreiras, incentivando o leitor a buscar mais sobre esses autores que conheceu no universo compartilhado.

Nosso primeiro convidado é Stephen Leigh (também conhecido como S. L. Farrell). Stephen é um dos autores com mais participações em Wild Cards ao longo dos anos, contribuindo com 15 dos livros já publicados, além de uma história avulsa na Tor.com.

A primeira participação de Leigh na série foi no primeiro volume, Wild Cards: O Começo, e a mais recente, no vigésimo quarto, Mississippi Roll. Seu personagem mais marcante é o Titereiro, vilão que assume papel central principalmente na quadrilogia que leva seu nome, entre os livros Ases pelo Mundo e A Mão do Homem Morto.

Leigh também é autor de diversas obras reconhecidas no campo da fantasia e ficção científica, sendo a mais famosa delas o Ciclo Nessântico, publicado no Brasil pela Leya. Seu romance mais recente foi A Rising Moon, parte do Sunpath Cycle. Para além de tudo isso, uma pessoa muito receptiva e apaixonada por literatura, que gentilmente aceitou conversar conosco sobre o seu trabalho. Confira nossa entrevista:

Arthur Maia: Como começou seu envolvimento com Wild Cards? O que o motivou a aceitar fazer parte desse projeto?

Stephen Leigh: A culpa é de George. Minha esposa Denise e eu havíamos ficado amigos dele depois de encontrá-lo em convenções. Nós o visitávamos, ele nos vistava. Até que uma noite (acho que em 1985, mas não tenho certeza), ele ligou. A conversa foi mais ou menos assim:

— Ei, Steve, você é fã de quadrinhos, né?

Bom, eu não sabia se poderia me chamar de um “fã” de quadrinhos, mas respondi:

— Sim, eu acho. Não coleciono mais, mas li a minha vida toda. Ainda leio, de vez em quando.

— E você gosta de RPGs, certo?

Pra essa pergunta, finalmente, eu tinha uma resposta convicta. Eu estava organizando um RPG de fantasia que se desenvolvera a partir de D&D, mas que agora usava regras que eu mesmo havia inventado:

— Com certeza.

Eu não sabia onde George estava indo com isso, mas até então, estava interessado.

— Ótimo. Tenho uma proposta pra você…

E com isso, ele me contou sobre o RPG Superworld que ele, Melinda Snodgrass, Walter Jon Williams, John J. Miller, Vic Milán e Gail Gerstner-Miller estavam jogando na época, como eles estavam gastando toda a energia criativa no jogo e como criaram uma maneira de, com sorte, unir o RPG com suas carreiras de escritores, transformando isso num projeto de universo compartilhado — o que, claro, virou a série Wild Cards. Ele me perguntou se eu tinha interesse em participar, e eu respondi que tinha.

Assim, o grupo original de escritores que George recrutou foi principalmente derivado da turma de Santa Fe e Albuquerque [Novo México, EUA], mas ele também acabou trazendo vários outros autores “de fora”.

GRRM Stephen Leigh
George R. R. Martin e Stephen Leigh na 74ª Worldcon. Foto: Michael Sauers.

A.M.: Então vamos falar sobre a sua participação no primeiro livro da série, no qual somos apresentados a três dos seus personagens mais marcantes: Gimli, Súcubo e o Titereiro. Como você os criou?

S.L.: O Titereiro foi o primeiro. O grupo já havia criado vários personagens, e George me sugeriu que precisávamos de ao menos um que estivesse conectado com a política desse mundo. E assim nasceu o Senador Gregg Hartmann, vulgo Titereiro, que viria a ser o meu personagem principal ao longo dos primeiros vários livros da série, embora outros tenham surgido em uma rápida sucessão: Gimli, Estranheza, o Uivador, Súcubo, Amendoim…

A.M.: Quais são as peculiaridades de se escrever uma série colaborativa como Wild Cards?

S.L.: Uma exigência para se escrever para Wild Cards é que você precisa mostrar toda cena que tenha um personagem de outra pessoa para ela, para que a aprove. Em outras palavras, ninguém pode fazer nada com o personagem de outro autor sem a permissão do criador. Isso evita cenas de “vingança” (“Você fez uma coisa horrível pro meu personagem, então eu vou fazer algo pior para o seu!”). Nós somos ativamente incentivados a usar personagens de outros autores nas nossas histórias.

A.M.: Você tem alguns personagens favoritos que outros autores criaram, e que você pôde escrever em algum momento? E quanto àqueles que você ainda gostaria de escrever?

S.L.: Acho que todos nós apreciamos muito escrever Croyd (o Dorminhoco) nas nossas histórias, já que ele pode ser qualquer coisa que você quiser. Roger [Zelazny] era sempre muito aberto para que outras pessoas o usassem, e agora, infelizmente, Roger não está mais conosco, mas o Dorminhoco continua a aparecer.

Pessoalmente, meus dois usos favoritos de personagens de outras pessoas  foi trabalhar com o Dr. Tachyon, de Melinda [Snodgrass], na época em que Tachyon e Hartmann eram personagens ativos [N.E.: em Jogo Sujo, quinto volume da série], e, mais recentemente, usar o personagem de Ian Tregillis, Rustbelt, em Suicide Kings, bem como no meu conto do Drummer Boy, Atonement Tango, disponível na Tor.com.

Capa de Ás na Manga, o sexto livro de Wild Cards, com um cartaz do Titereiro ao fundo.

A.M.: Mais tarde, o Titereiro acaba ganhando um papel muito importante na série, você esperava que isso acontecesse quando o personagem estreou?

S.L.: De forma alguma, mas fiquei muito contente quando isso aconteceu. O Titereiro, na verdade, ao longo dos quinze livros “originais” de Wild Cards, foi o único personagem cujo arco começou no primeiro livro, interferiu de alguma forma em todos os livros seguintes, e teve sua história encerrada no que achávamos que seria o último livro da série, Black Trump. Mas felizmente, Wild Cards voltou a ser publicada poucos anos mais tarde.

A.M.: Não pude deixar de notar a recorrência do Rio Mississippi em In the Shadow of Tall Stacks, e as cidades que o Natchez percorre. Isso tudo me lembrou muito de Sonho Febril, de Martin, embora em uma abordagem do século XXI. De quem foi a ideia de ambientar Mississippi Roll nesse cenário? Você fez alguma pesquisa específica sobre as diferentes cidades sobre as quais escreveria?

S.L.: Eu vivo em Cincinnati, que fica na rota do Rio Ohio. Na época dos barcos a vapor, muitos daqueles que operavam nos rios Ohio e Missisippi eram construídos em Cincinnati, e a cidade sempre celebrou seu histórico com os barcos. Na verdade, o Festival Tall Stacks que menciono no livro já aconteceu algumas vezes por aqui. George veio para ver todos os barcos que chegam aqui.

O cenário do que se tornaria Mississippi Roll foi estabelecido pelo George, quando ele enviou a proposta de uma nova trilogia à editora Tor – ele queria um livro que se passasse ao longo do Rio Mississippi. Assim que vi essa proposta, eu soube qual seria meu argumento e como queria que terminasse: uma história sobre um barco a vapor que se encerraria no Festival Tall Stacks em Cincinnati. Eu também sabia que queria que a história fosse “intersticial”, aquela que percorre todo o livro e conecta todas as outras. Propus essa ideia do Steam Wilbur e do barco “mal assombrado” Natchez para George, e ele adorou.

E sim, fiz muita pesquisa sobre barcos a vapor e sobreas várias cidades que seriam usadas como cenário para dar vida a tudo isso.

A.M.: Bem, deixando Wild Cards um pouco de lado, vamos falar de outros aspectos da sua carreira. O Ciclo Nessântico tornou-se um grande sucesso e foi publicado no Brasil. Você planeja escrever mais nesse universo?

S.L.: Acredito que não, ao menos por agora. Mas gosto muito desse universo, então quem sabe…

A.M.: No Ciclo Nessântico, você lida muito com o aspecto religioso da fantasia, e também contrasta isso com algumas crenças científicas incipientes. Como você vê a posição dessa discussão nos dias de hoje e o que o fez decidir escrever uma série de fantasia que gira em torno disso?

S.L.: Eu sempre me interessei em explorar o conflito entre diferentes culturas, e a ambientação semelhante ao Renascimento me permitiu brincar com a intersecção em que a ciência se choca com uma visão de mundo mais mística, ou mágica. Acho que isso ainda é muito relevante hoje em dia. Com certeza você vê isso no gênero latino-americano chamado de “realismo mágico”.

Ciclo Nessântico
Capas das edições brasileiras do Ciclo Nessântico.

A.M.: Que outras obras suas você gostaria de ver traduzidas para o português?

S.L.: Todas elas, ou qualquer uma! Mas eu gostaria especialmente de ver Immortal Muse publicado em português. Ele ainda é um dos meus livros favoritos.

A.M.: E o que vem pela frente? Você pode nos contar sobre algo que está escrevendo atualmente?

S.L.: Acabo de terminar um romance de ficção científica chamado Amid the Crowd of Stars, que deve ser publicado pela editora DAW em algum momento de 2020. Tenho também uma história curta que preciso escrever antes do fim desse ano, para a antologia de originais My Battery is Low and It Is Getting Dark, publicada pela ZNB e editada por Joshua Palmetier e Crystal Sarakas. Espero poder propor algo para George em Wild Cards no futuro próximo. Também estou começando a elaborar o conceito para meu próximo romance.

A escrita (eu espero) nunca para!


Wild Cards: O Começo conta com participação de Stephen Leigh, além de autores como Walter Jon Williams, Melinda Snodgrass, Howard Waldrop, Roger Zelazny, Victor Milán e George R.R. Martin, e já está disponível na Amazon.

Além dele, recomendamos a quadrilogia do Titereiro, publicada no Brasil pela Leya, que compreende os livros Ases Pelo Mundo, Jogo Sujo, Ás na Manga A Mão do Homem Morto, todos com participação de Leigh e um papel central do Senador Greg Hartmann.