Ursula K. Le Guin
Ursula K. Le Guin em 2009. Foto: Marian Wood Kolisch.

Em tempos de distanciamento social e de poucas novidades sobre As Crônicas de Gelo e Fogo, decidimos trazer algumas ideias para quem está procurando mais leituras — todas elas, é claro, relacionadas de alguma maneira a George R. R. Martin. Vamos começar com uma autora clássica nos círculos da fantasia e da ficção científica, e uma grande influência de Martin: Ursula K. Le Guin.

A escritora, nascida em Berkeley, Califórnia, em 1929, e filha do renomado antropólogo Alfred Louis Kroeber, viveu até os 88 anos e nunca parou de publicar. Vencedora por várias vezes de todos os principais prêmios do gênero, como os Hugo e Nebula Awards, Le Guin quebrou as barreiras e preconceitos com a literatura de fantasia e ficção científica, sendo também homenageada pela Academia Americana de Artes e Letras e pela Fundação Nacional do Livro.

É impossível recomendar apenas uma obra da autora que publicou 23 romances e mais de cem peças de ficção menores, entre contos, noveletas e novelas. É até mesmo difícil decidir qual o seu maior legado: a alta fantasia de Terramar ou a ficção científica do ciclo Hainish? Sendo assim, decidi fazer um apanhado geral da carreira da autora, indicando alguns de seus maiores trabalhos.

Já de início, podemos mencionar o documentário The Worlds of Ursula K. Le Guin (2019), que conta com depoimentos da própria autora, bem como de seus familiares e pessoas próximas profissionalmente. O filme é um dos finalistas ao prêmio Hugo de 2020.

Na ocasião de seu falecimento, em 2018, Martin escreveu algumas palavras no Not a Blog, declarando que embora não tivesse uma relação pessoal com Ursula, era grande admirador de sua ficção:

Mas eu certamente conhecia seu trabalho… Assim como todo mundo que se diz um fã de ficção científica tem o dever de conhecer. Ela foi uma dos gigantes. Uma contadora de histórias talentosa, dedicada à sua arte, influenciou uma geração inteira de escritores que vieram depois dela, incluindo eu mesmo. A Mão Esquerda da Escuridão é, na minha opinião, um dos melhores romances de ficção científicas já escritos, e Os Despossuídos A Curva do Sonho são trabalhos esplêndidos também. A trilogia original de Terramar ocupa uma posição semelhante no panteão da fantasia (embora tenha sido injustiçada em sua adaptação televisiva).

Capa brasileira de “O Feiticeiro de Terramar” (Arqueiro, 2016), por Ursula Dorada.

Influência para livros como Harry Potter e A Crônica do Matador do Rei, a trilogia infanto-juvenil de Terramar apresenta a mais clássica escola de magia da fantasia. Aqui, acompanhamos a formação de Ged, futuramente o mago conhecido como Gavião, sua batalha para controlar seus poderes, enfrentar um dragão e aprender a lidar com seu próprio orgulho, que acaba pondo o mundo em risco. Nascido em uma ilha periférica no arquipélago que forma Terramar, ele logo descobre suas habilidades mágicas, e é treinado pelo mago Ogion antes de seguir seus estudos na Escola de Magos em Thwil.

Os livros chamam atenção não apenas pelos elementos já citados, mas também pela mais profunda forma de magia ali presente: a nomeação, onde se ganha poder sobre algo ao conhecer seu verdadeiro nome. Além disso, Ged não é um protagonista branco (embora isso tenha sido apagado das ilustrações das capas do livro por décadas), assim como todo o resto dos habitantes das ilhas de Terramar, que, nas palavras da autora, possuem “pele desde tons de cobre e marrom até o negro dos domínios do Sul e do Leste“.

O Ciclo de Terramar foi publicado no Brasil pela editora Arqueiro, mas, infelizmente, apenas os primeiros dois volumes foram lançados. As Tumbas de Atuan saiu em 2017 e a editora não deu previsão para encerrar a trilogia original com The Farthest Shore. Para além destes, Le Guin escreveu mais dois livros no universo, Tehanu e The Other Wind, além de uma coletânea de contos chamada Tales from Earthsea. Todas essas sequências permanecem inéditas por aqui.

Para além de influente em sua literatura de fantasia infanto-juvenil, a magnitude da escritora na ficção científica direcionada para adultos também é imensurável, e pessoalmente, acho que eles são o ponto mais alto de sua produção. Seu ciclo Hainish, um universo comum para muitas de suas histórias, é um futuro onde a humanidade se expandiu não atrás de conquistas bélicas, mas da premissa de compartilhar conhecimento e preservar diferentes culturas. Dentro desse contexto maior, se passam algumas das suas histórias mais célebres, como A Mão Esquerda da Escuridão Os Despossuídos, já publicados no Brasil, e os ainda inéditos Roccanon’s World, Planet of Exile The Telling.

A Mão Esquerda da Escuridão é um marco para a ficção científica em muitos sentidos. Publicado em 1969, se tornou um dos grandes símbolos do movimento conhecido como A Nova Onda, uma geração de autores, da qual Martin fez parte, que incorporou pautas sociais da década revolucionária – direitos civis, anti-imperialismo, pacifismo, a segunda onda do feminismo, entre outras – e técnicas modernistas para a ficção científica. Sem sequer uma cena de ação, é um livro impactante do início ao fim, com noções muito inovadoras sobre gênero, culturas únicas e criativas e prosa inspiradíssima.

Edição comemorativa de A Mão Esquerda da Escuridão (Aleph, 2019). Arte: Marcela Cantuária.

O narrador da maior parte do livro, Genly, é o enviado dos Ekumen, uma liga interplanetária que visa apenas a troca de conhecimento entre os mundos que dela fazem parte, ao planeta Gethen. Lá, ele se envolve em conflitos políticos nas duas nações onde visita, a monarquia de Karhide, onde os caprichos de um rei autoritário complicam sua missão, e Orgoreyn, uma nação moderna e dinâmica, mas contaminada pelos jogos políticos. Após precisar deixar ambos os países, Genly decide ajudar Estraven, antigo primeiro ministro de Karhide, exilado por conspiração, a voltar para casa. Boa parte do livro se passa entre as geleiras de Gethen, enquanto os dois personagens conhecem melhor um ao outro.

Esse romance é especialmente notável pela caracterização de gênero em Gethen: não é uma separação binária como nós (e Genly) conhecemos. Há apenas um gênero, e durante certo período, as pessoas entram em seu período fértil, o kemmer. Quando isso acontece, os gethenianos assumem formas masculinas ou femininas para o momento de relações sexuais. Apesar de bastante inovador para sua época, o romance sofreu críticas posteriores, inclusive da própria Le Guin, especialmente por tratar o gênero neutro sempre como masculino. Sendo assim, Gethen se tornava um planeta apenas de homens. A autora revisitou o assunto, já com noções mais maduras, no conto ainda inédito no Brasil, Coming of Age in Karhide, no qual o narrador é natural do planeta e explica seu amadurecimento sexual.

O livro foi mais recentemente publicado por aqui pela editora Aleph, e teve uma reedição ainda no ano passado. Ele está com valor promocional na Amazon, e você pode adquiri-lo aqui.

Cinco anos depois, Le Guin publica um clássico tão influente quanto o anterior, Os Despossuídos: Uma Utopia Ambígua. Também parte do ciclo de Hainish, nesse romance, o planeta-satélite Anarres é habitado por dissidentes políticos de Urras, que, gerações atrás, fundaram uma sociedade anarquista. Descontente com a burocracia e as imperfeições que o cercam, Shevek decide viajar a Urras, e então, é confrontado com noções alheias a ele, como propriedade privada ou meritocracia.

Capa brasileira de “Os Despossuídos” (Aleph, 2019), com arte de Marcela Cantuária.

Um verdadeiro tratado político, evitando respostas fáceis, Os Despossuídos é uma dos trabalhos mais poderosos de Le Guin, consolidando de vez a sua geração, das décadas de 60 e 70, como escritores de ficção científica extremamente engajada. Foi publicado no Brasil também pela Aleph e pode ser adquirido aqui. As raízes da sociedade de Anarres são exploradas no conto O Dia Antes da Revolução, narrado do ponto de vista de Odo, a líder anarquista que guiou os revolucionários para fora de Urras. Foi publicado no Brasil na antologia Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política, editada por Marcello Simão Branco, que está disponível para compra neste link.

Falando nas suas narrativas políticas, chegou a hora de comentar mais um de seus clássicos, dessa vez, um  conto. Aqueles que Abandonam Omelas (disponível gratuitamente no Projeto Cápsula, da excelente editora Morro Branco) é uma alegoria inspirada em dilemas propostos em Os Irmãos Karamazov de Fiódor Dostoiewski e em um discurso de William Faulkner. A premissa é: seria moral que toda uma sociedade possa ser feliz com a condição de que uma pessoa sofra imensuravelmente? A história suscita longos debates, e já foi até respondida em um conto de N. K. Jemisin, The Ones Who Stay and Fight (disponível apenas em inglês aqui).

Para finalizar as indicações de obras, há um livro diferente de tudo mais que já li de Le Guin. Com estilo se aproximando dos realistas fantásticos latino-americanos, A Curva do Sonho é uma brilhante história que mescla fantasia, futuros distópicos e ficção científica, quando o estadunidense médio George Orr percebe que seus sonhos se tornam realidade. Sem estar ligado com qualquer outra de suas obras, esse breve romance é uma aula de estilo, enredo e personagens. Foi publicado em uma edição cuidadosa, bem-traduzida e muito bonita, também da Morro Branco, disponível para compra aqui.

Capa brasileira de “A Curva do Sonho” (Morro Branco, 2019), por Paula Cruz.

Apesar de a carreira da autora ser muito mais extensa que isso, incluindo, além de seus contos e romances, também poemas, comentários sobre escrita e muitas outras peças não-ficcionais, acredito termos passado por seus principais trabalhos traduzidos, e aqueles que são melhores introduções para sua bibliografia tão diversificada. Le Guin nos deixou há dois anos, mas seu legado é eterno, e qualquer obra de fantasia ou ficção científica estará, querendo ou não, dialogando com ideias trazidas por ela.