Para nós, ser o maior fansite especializado em George R. R. Martin no Brasil (talvez por ser o único) significa, acima de tudo, ter responsabilidade ao relatar e divulgar notícias e acontecimentos envolvendo o autor. Ser “fã” não é simplesmente abaixar a cabeça, dizer amém e silenciar quando é conveniente.

A essa altura, já circulam na imprensa brasileira alguns relatos sobre a repercussão da cerimônia dos Hugo Awards de 2020, apresentada por Martin na última sexta feira (31). Como sabemos bem, porém, que a qualidade da cobertura é geralmente muito precária (se resumindo a traduções de qualidade duvidosa de conteúdos de segunda ou terceira mão de sites estrangeiros), sentimos a necessidade de falar sobre o assunto.

Além disso, o tema é delicado por si só, mas nem por isso achamos que devemos nos furtar a falar sobre ele, sempre tentando trazer a informação da maneira mais completa possível. A seguir, explicaremos o que são os Hugos, o que aconteceu na cerimônia em que George R. R. Martin foi o anfitrião, por que ela foi controversa e alvo de críticas, e daremos também nossa opinião sobre o assunto. Acompanhe.

O que são os Hugo Awards?

Em 1º de agosto (no horário neozelandês) aconteceu a cerimônia dos Hugo Awards, a maior premiação do campo da ficção científica e fantasia. Esse evento ocorre desde 1953, sempre atrelado à Worldcon, também a convenção mais importante do gênero. Nesse ano, a Nova Zelândia seria a casa da 78º Worldcon (daí o nome CoNZealand), mas a pandemia do Covid-19 acabou levando a organização a tornar o evento inteiramente virtual.

Embora sempre relacionadas com a fantasia e a ficção científica, as categorias dos Hugos são enormemente variadas, premiando tanto autores por seus romances, noveletas e contos quanto fãs com suas obras relacionadas e fanzines, além de condecorar também obras audiovisuais.

O mestre de cerimônias para o Hugo de 2020, anunciado no ano passado, foi George R. R. Martin. A apresentação, como não poderia deixar de ser, aconteceu virtualmente. Como já explicara em um post em seu blog na semana passada, Martin gravou vários vídeos prévios em sua cabana para cada uma das categorias, em que fazia comentários a respeito dela e listava os indicados. Quando chegava a hora de anunciar o vencedor, a transmissão cortava para o Jean Cocteau, o cinema de Martin em Santa Fe, onde ele abria o envelope ao vivo e anunciava o ganhador, e depois passava às gravações (ou inserções ao vivo) dos contemplados com o prêmio para seus agradecimentos.

A apresentação de George R. R. Martin

George R. R. Martin em seu cinema em Santa Fe, durante a apresentação dos Hugos de 2020.

Desde o início da cerimônia, Martin deixou claro que sua intenção era fazer uma condução “educativa” dos Hugos e da Worldcon, contando a história do prêmio e da convenção para os novos participantes, que ele presumia estarem em um número maior pela natureza virtual do evento em 2020. Assim, George contou várias histórias e casos de Worldcons passadas e fez reiteradas referências a nomes antigos e clássicos do gênero, entre eles John W. Campbell e Isaac Asimov, e também a suas próprias experiências nos eventos e em cada um das categorias às quais já concorreu.

Durante as apresentações dos indicados, Martin errou a pronúncia dos nomes de vários deles (a despeito de a CoNZealand ter pedido que aqueles que tivessem nomes não-ingleses enviassem a pronúncia correta, em alguns casos até em áudio). Em determinado momento, ao apresentar a estatueta propriamente dita do Hugo, GRRM fez uma piada com a estatueta do Oscar, dizendo que ele seria um eunuco por não possuir genitais masculinos.

A apresentação contou também com a participação de Robert Silverberg, outro representante da “velha guarda” do cenário, com o mesmo tom de saudosismo de Martin. A cerimônia, no total, durou mais ou menos três horas e meia, uma duração longa em comparação com as edições mais recentes dos Hugos nas últimas Worldcons. A apresentação completa pode ser assistida neste link, e a lista de vencedores está aqui.

Os problemas e críticas à apresentação

A longa apresentação de George, porém, foi insatisfatória e mal-recebida em vários níveis. Na medida em que ele avançava na condução dos trabalhos, grande parte da comunidade internacional de fantasia e ficção científica que acompanhava o prêmio demonstrou sua insatisfação online (no Twitter ou no chat ao vivo da transmissão). Foram vários problemas, que somados, deram ares de desastre à cerimônia.

Apesar de aparentemente bem-intencionada, a ideia de Martin de contar anedotas e causos de Worldcons e Hugos de quarenta, cinquenta e até sessenta anos atrás não ressoou bem entre a audiência atual. O tom foi interpretado não apenas como uma longa e enfadonha aula, inadequada para uma premiação, mas também como desconexão e um certo desmerecimento do público e dos autores atuais, mais diversos, de fantasia e ficção científica, visto que os mencionados por ele eram em sua maioria homens brancos da “velha guarda”.

Particularmente problemáticas nesse sentido foram as reiteradas menções laudatórias de Martin a John W. Campbell, histórico autor e editor de fantasia e ficção científica, que no entanto tinha visões racistas, segregacionistas e pseudocientíficas. Cabem aqui alguns parênteses para explicar por que a questão tem contornos ainda piores.

Há muito já se sabe sobre as posições misóginas, racistas e imperialistas de Campbell. Samuel R. Delany, um dos maiores escritores da história do gênero, por exemplo, relatou que o editor se recusou a publicar seu romance Nova nos anos 60, pois dizia que o público não iria querer um protagonista negro. Em carta, Campbell também escreveu que uma sociedade negra avançada tecnologicamente nunca existiria. Defensor confesso das leis de segregação racial nos Estados Unidos, ele chegou a publicar um artigo chamado simplesmente Segregation, no qual se colocava a favor da separação racial em escolas, transporte público, entre outras instâncias. Em seu livro Astounding, publicado em 2018, Alec Navala-Lee detalha diversas outras manifestações de Campbell e a reação que elas receberam à época, o que desmistifica argumentos de que toda a sociedade norte-americana pensava dessa maneira.

Pela contribuição de Campbell ao gênero, a World Science Fiction Society (Associação Mundial de Ficção Científica), com patrocínio da Dell Magazines (editora da Analog, anteriormente chamada Astounding Science Fiction, revista em que Campbell atuou como editor por vários anos) instituiu em 1973 o “Prêmio John W. Campbell para Melhor Novo Autor”, entregue anualmente na cerimônia dos Hugos.

Jeannette Ng em seu discurso de vencedora do Hugo de 2019 (que por sua vez venceu o Hugo de 2020 como Melhor Obra Relacionada).

Jeannette Ng foi a vencedora do prêmio em 2019, e em seu discurso de recebimento a autora ressaltou que Campbell era um “fascista do caralho”, e que suas contribuições exaltavam as visões de imperialistas e colonizadores, traçando um paralelo com a situação política atual em Hong Kong, onde ela nasceu. Dias depois, a própria Analog anunciou que, diante dos editoriais racistas de Campbell, o prêmio passaria a ser chamado de “Prêmio Astounding para Melhor Novo Autor” (“astounding”, além do nome da revista, quer dizer “surpreendente, assombroso, espetacular”). Ironicamente, o discurso de Ng estava indicado ao Hugo deste ano na categoria “Melhor Obra Relacionada” — e venceu.

Diante de todo esse contexto, não é difícil perceber que a insistência de Martin em mencionar Campbell em tom elogioso (por ter impulsionado a carreira de muitos autores das antigas) tenha sido compreendida por parte da audiência como uma provocação e uma espécie de resposta à rejeição de Campbell pela comunidade atual (ainda que possa não ter sido essa sua intenção).

A presença de Robert Silverberg durante a premiação também não contribuiu para diminuir a animosidade do público com o tom geral da cerimônia. Uma figura histórica na ficção científica, mas também problemático por si mesmo, Silverberg (conhecido como “Silverbob” no meio) tem uma tendência histórica nos Hugos de “torturar” os finalistas estendendo a premiação e o suspense ao máximo, algo que não é apreciado por muitos dos participantes. O conflito maior, porém, é a postura intransigente em relação às novas gerações, e uma rejeição a ele foi amplificada quando vieram a público críticas que fez ao tom do discurso de N. K. Jemisin quando ela venceu o Hugo de Melhor Romance pela terceira vez consecutiva (mesmo admitindo não ter lido os livros dela).

Além disso, as reiteradas pronúncias erradas dos nomes de vários dos indicados por parte de Martin também foram objeto de muita indignação, dado que a CoNZealand havia solicitado a todos que enviassem as pronúncias corretas, em alguns casos oferecendo até mesmo a possibilidade de enviarem áudios. Como uma expectativa de que todos teriam seus nomes falados corretamente foi criada e frustrada, a irritação foi natural (e justificada). Muitas pessoas interpretaram isso como simples falta de consideração do autor em tentar fazer a pronúncia correta, principalmente por se tratar de segmentos gravados (em que seria ainda mais fácil acertar), e alguns disseram ser mesmo racismo.

A esse respeito, porém, não se sabia a princípio como havia sido a comunicação entre Martin e a CoNZealand, e chegou a surgir um rumor de que os organizadores haviam solicitado que Martin regravasse seus vídeos com as pronúncias corretas, e que ele teria se recusado. Essa história, porém, foi desmentida pelo autor.

Martin explicou, em um comentário no File770 (traduzido na íntegra mais adiante), que não recebeu guias de pronúncias para os nomes dos indicados (que ele leu em gravação), e que nos envelopes dos vencedores (que ele lia ao vivo), havia a pronúncia correta apenas para alguns deles. Assumiu, porém, a responsabilidade pelos erros e pediu desculpas aos que tiveram seus nomes pronunciados de maneira incorreta.

A piada de Martin sobre a estatueta do Oscar e outras manifestações (como se referir coletivamente às pessoas como “men and women”, homens e mulheres”) também teve má recepção entre a audiência, por terem natureza transfóbica e de essencialismo de gênero (ainda que de maneira inconsciente).

Tudo isso formou uma onda de insatisfação geral com o tom da apresentação, e a certa altura várias outras atitudes de GRRM foram também alvo de críticas, como um suposto desmerecimento do “tricampeonato” de N. K. Jemisin ao mencionar os feitos de Robert A. Heinlein logo depois, ou a insistência em contar casos sobre si mesmo, e pouco mencionar ou exaltar autores das novas gerações. O sentimento geral de contrariedade não ressoou apenas entre os fãs, mas encontrou eco também em vários dos autores que estavam presentes (virtualmente, é óbvio) na cerimônia.

Manifestações de GRRM e outros autores

Até o momento, Martin fez uma única manifestação direta a respeito da cerimônia, um comentário no site do fanzine File770 no sábado, dia seguinte ao evento. O autor esclareceu a questão da pronúncia incorreta e desmentiu os rumores de que havia se recusado a regravar os segmentos, e também tratou um pouco do tom que decidiu adotar para a cerimônia. Permaneceu silente, porém, a respeito das reiteradas menções a Campbell ou das acusações de transfobia e racismo.

Segue tradução do comentário de GRRM:

Quem quer que esteja fazendo circular a história de que me pediram pra regravar partes da minha cerimônia dos Hugos para corrigir nomes com pronúncias erradas, e que recusei, está (1) errado, ou (2) mentindo. Isso nunca aconteceu.

A CoNZealand realmente me pediu para regravar três dos meus vídeos, todos eles por razões de controle de qualidade: iluminação ruim, som ruim, câmera trêmula. Consenti com o pedido deles em dois dos vídeos, os dois que abriram a noite; fiz esses ao vivo do Jean Cocteau (os originais tinham sido feitos na minha cabana num iPhone, quando ainda estávamos só tentando pegar o jeito da coisa). O terceiro segmento que queriam que eu regravasse era a parte sobre o troféu dos Hugos, em que eu brincava com a suqueira, o Alfie, essas coisas. Nesse caso, decidimos ficar com a primeira versão, já que eu não tinha mais os adereços à mão e não conseguiria reproduzir facilmente o que tinha feito na cabana, de que todo mundo parecia ter gostado.

Também tem uma história por aí de que me forneceram a pronúncia fonética correta de todos os nomes. Isso também é completamente falso. Ontem à noite, no evento, me passaram os envelopes selados com os nomes dos vencedores, e havia as pronúncias fonéticas de ALGUNS (de forma alguma todos) nomes dos vencedores nos cartões, que eu tinha um ou dois segundos para digerir antes de ler em voz alta. Provavelmente errei alguns desses também. Pronúncia nunca foi meu forte. Eu até pronuncio os nomes dos meus próprios personagens errado às vezes (assistam a alguma de minhas entrevistas). Mas em nenhuma etapa do processo jamais me deram um guia fonético de como pronunciar todos os outros finalistas, os que não venceram. Se eu tivesse recebido isso, certamente teria feito todos os esforços para acertar todos os nomes. (Receio que teria bagunçado de qualquer forma. Todos temos forças e fraquezas, e admito com franqueza, essa é uma das minhas. Ainda tenho problemas com o nome de um de meus próprios assistentes).

Peço aqui desculpas a todos cujos nomes pronunciei errado. Sinto muitíssimo. Nunca foi minha intenção.

Quando John Picacio foi mestre cerimônias, ele deu umas voltas durante a recepção pré-Hugos com um bloco na mão e perguntou a alguns dos indicados como pronunciar os nomes deles. Em alguns casos ele teve que ensaiar a pronúncia correta com os finalistas várias vezes para anotar. Eu estava na festa também. Vi o John fazer isso. Admirei-o por isso. Sempre estava na minha cabeça fazer a mesma coisa, mas claro, em nossa Worldcon virtual, nunca tive a chance. Nunca tive a chance de CONHECER de verdade alguns dos finalistas mais novos, parabenizá-los, apertar as mãos deles, e perguntar os nomes deles. Muito menos treinar com eles até acertar.

Tem alguém aí dizendo que eu poderia ter feito tudo isso por email. Sim, acho que poderia. Mas teria sido uma tarefa assustadora. Havia mais ou menos uns 120 finalistas, e eu tinha os endereços de emails de uns seis.

Se querem bater em mim por não ter feito isso, tudo bem. Mas não batam em mim com histórias mentirosas como “se recusou a regravar” ou “tinha o guia fonético mas não usou”, que são pura bobagem.

A despeito dos pecados por omissão ou comissão que outros cometeram, em última instância a responsabilidade era certamente minha, já que era da minha boca que aqueles nomes estavam saindo… então mais uma vez, sinto muito.

Quanto ao teor geral da minha cerimônia… minha intenção desde o começo foi fazer daquela noite uma de diversão e celebração. Já que eu esperava que um grande número dos presentes fossem Kiwis [neozelandeses] participando de sua convenção, pensei que traçar um histórico do prêmio seria mais do que apropriado. De onde os Hugos vieram, como o troféu evoluiu ao longo das décadas, quem o venceu no passado — e quem o perdeu, algo que tentei enfatizar, dado minha longa história como perdedor do Hugo. E com historinhas divertidas. O ano em que Lester entregou os prêmios de trás para frente, o ano em que RAH [Robert A. Heinlein] irrompeu da cozinha etc.

Não assisti a tantas cerimônias dos Hugos quanto Silverbob, mas assisti a muitas. Há algumas abordagens diferentes para os mestres de cerimônias. Marta Randall, em suas duas apresentações, se orgulhou do como conseguiu ser rápida, batendo recordes nas duas vezes como os Hugos mais rápidos de todos os tempos. Connie Willis, por outro lado, gosta de esticar as coisas com histórias divertidas e manter os finalistas se contorcendo ao máximo. Como membro da audiência, eu definitivamente prefiro as mais longas e engraçadas, como Connie, não as curtas e cativantes, como Marta. Meus modelos foram alguns dos mestres de cerimônias que mencionei: Bob Tucker, Bob Bloch, Asimov, Harlan, e acima de todos Silverbob. Reconheço que as preferências de vocês podem ser diferentes. Muita gente adorou como a Marta conduziu seus dois eventos.

É claro, cada anfitrião tem seu próprio estilo de humor. Alguns, como Ricky Gervais, são espertalhões com os apresentadores e os indicados. Isso funciona de maneira maravilhosa nos Golden Globes, mas algo me diz que não seria bem recebido nos Hugos, considerando o terrível alvoroço há alguns anos atrás quando escalaram outro comediante britânico para apresentar. Foi enxotado antes de falar uma palavra. Meu próprio estilo é sempre autodepreciativo; o alvo principal de minhas histórias sempre sou eu mesmo.

A maioria das histórias que contei ontem à noite haviam passado pelo teste do tempo, de certa maneira. Contei essas mesmas histórias antes. Geralmente são recebidas com grandes gargalhadas. Ou gargalhadas médias, de qualquer forma. Era isso que eu esperava ouvir do público em Wellington. Risadas. E apreciação pela longa e pitoresca história desse gênero que tanto amamos: escritores, editores, fãs, vivos e mortos.

Os Hugos propriamente ditos são como celebramos os vencedores. A honra de ser indicado é como celebramos os perdedores… (e a esperança de que um dia, os perdedores também possam ser vencedores, como um dia fui — e é por isso que conto AQUELA história, para dar conforto aos recém-derrotados).

Enfim, foi essa a minha abordagem. O mestre de cerimônias do ano que vem terá uma diferente, sem dúvida. Lamento que alguns de vocês não tenham gostado de minha apresentação. E estou satisfeito por ouvir que tantos de vocês gostaram (bem, não aqui no File 770, mas estou recebendo muitas mensagens e emails de gente que riu nos momentos certos). Obviamente gostaria de ter sido o melhor mestre de cerimônias de todos os tempos para todo mundo, mas não é possível agradar todo mundo o tempo todo.

(Quase todo mundo gostou dos chapéus, pelo menos).

Antes disso, a conta oficial de Twitter de George (administrada por seus “minions”) havia postado uma reprodução de um discurso atribuído a Voltaire, que diz “Todos somos cheios de fraquezas e erros; perdoemos mutuamente as bobagens uns dos outros”, precedida da introdução “Words for our times” (Palavras para nossos tempos). Embora aparentemente a postagem combine com os eventos recentes, não é possível afirmar com certeza que se tratou de uma resposta à repercussão da cerimônia. Isso porque já há algumas semanas o autor vem postando uma série de frases antigas sob o título “Words for our times” em seu blog, que depois são divulgadas no Twitter, sempre com atraso de alguns dias. Pode, portanto, ter sido apenas uma coincidência.

A aparência de relação com os eventos, porém, resultou em que as respostas ao tweet incluíssem (além dos reiterados e regulares comentários sobre The Winds of Winter) várias manifestações de fãs e colegas autores a respeito da condução dos trabalhos nos Hugos. Entre eles, notabiliza-se o comentário de Mary Robinnette Kowal, vencedora de vários Hugos (entre eles o de Melhor Romance em 2019), que apresentou uma categoria do prêmio nesta edição a convite de George. Ela disse ter ficado honrada pelo convite, mas se disse enfurecida com as decisões que ele tomou na cerimônia, e se dispôs a explicar os motivos se ele quisesse ligar para ela:

Kowal não foi a única figura proeminente do gênero a se manifestar. Sarah Gailey, N. K. Jemisin, Jeannette Ng e Seanan McGuire foram algumas das pessoas que se manifestaram em threads no Twitter:

No Facebook, Robert J. Sawyer escreveu um longo texto sobre como funcionam as micro-agressões e exclusões inconscientes dentro do fandom (compartilhado por Steven Erikson):

É claro que houve reações bastante extremas, como o texto de Natalie Luhrs “George R. R. Martin Can Fuck Off Into The Sun” (algo como “George R. R. Martin pode ir se foder no sol”), mas nem mesmo Adam Whitehead, indicado ao Hugo como Melhor Autor Fã e amigo de Martin (ele tem até um personagem em As Crônicas de Gelo e Fogo com seu nome) furtou-se a criticar a condução da cerimônia por George em seu blog.

O que achamos disso tudo?

Não vamos mentir: foi, sem dúvida, uma noite infeliz de George R. R. Martin, e a indignação dos ofendidos é legítima. Não acreditamos que Martin tenha agido de má-fé e que tenha sido sua intenção ativamente ofender ou atacar as novas gerações da fantasia e da ficção científica, mas faltou, no mínimo, sensibilidade da parte dele na condução da cerimônia.

A ideia de fazer uma apresentação educativa sobre a história dos Hugos, por si só, poderia não ser problemática e ser considerada apenas enfadonha. Talvez aquele não fosse o momento nem o local mais adequados para isso, mas como era uma escolha do mestre de cerimônias, não se pode dizer que isso necessariamente seria algo ofensivo. Quando somada aos vários outros problemas, porém, acabou tornando a situação numa bola de neve que soou realmente como uma provocação.

A questão da pronúncia incorreta dos nomes, igualmente, seria tolerável num contexto em que a apresentação fosse ao vivo ou em que os indicados não tivessem fornecido suas pronúncias à organização do evento, mas da maneira como as coisas aconteceram, é plenamente justificável que as pessoas tenham se indignado. Por outro lado, a explicação de Martin sobre isso é relativamente satisfatória: se ele de fato não recebeu os guias de pronúncia, a organização da CoNZealand também tem de ser responsabilizada (embora ele também pudesse ter buscado as pronúncias corretas por conta própria). Trata-se, porém, de mais um caso em que algo poderia “passar” se fosse o único problema, mas acaba por se tornar mais grave diante do conjunto da obra.

É mais ou menos o caso das manifestações inconscientemente transfóbicas de Martin, também. Muito provavelmente o autor sequer percebeu (ou sabe) que sua piadinha com a estatueta do Oscar representaria uma micro-agressão, mas isso não tira a legitimidade das pessoas atingidas se sentirem ofendidas.

A grande questão é que ficou demonstrada uma grande desconexão entre as intenções e a visão de Martin sobre o fandom de fantasia e ficção científica e a composição atual do gênero na Worldcon e nos indicados ao Hugo. Nos últimos anos é crescente e notável a participação e a valorização de pessoas mais diversas no cenário, e o tom geral da apresentação de George acabou sendo um tapa na cara de quem está tentando ter sua voz ouvida com tanto esforço e depois de anos de exclusão (seja ela consciente ou inconsciente).

Para nós, objetivamente, o maior problema foi a reiterada menção a Campbell, principalmente diante da relevância do discurso de Ng no ano passado e da mudança de nome do prêmio de Melhor Novo Autor. George pode estar relativamente fechado em um círculo próprio, mas esse fato foi incrivelmente notável (e ele sabia que o discurso de Ng estava indicado como “Melhor Obra Relacionada”) para que fosse simplesmente ignorado. Quando isso ocorre, o que se interpreta é uma tentativa de silenciar as novas vozes e voltar aos “bons e velhos dias”, e é notável que em seu comentário explicativo no File770 George tenha ignorado essa questão.

Sabemos que George R. R. Martin tem um histórico de contribuições inclusivas para o gênero, e podemos citar como exemplos dar voz a pessoas não-brancas através de sua série de romances mosaico Wild Cards, sua defesa fervorosa dos Hugos contra a tentativa de “sequestro” do prêmio pelos sad (e rabid) puppies em 2015, ou servir como ponte com a HBO para a adaptação de Who Fears Death, de Nnedi Okorafor. Historicamente, o autor tem posições progressistas nesse sentido, mas isso não quer dizer que ele está imune a erros, mesmo que inconscientes.

GRRM não é inerentemente racista ou transfóbico, e definitivamente não é John W. Campbell redivivo (como às vezes as reações mais exageradas têm feito parecer), mas podemos citar as palavras dele mesmo: “um bom ato não lava os maus, e um mau não lava os bons. Cada um deve ter sua recompensa“. A recompensa que damos a Martin pela apresentação dos Hugos de 2020 vem na forma de críticas, e da esperança de que ele esteja aberto a ouvir vozes que o ajudem a perceber e compreender a sensibilidade que lhe faltou nessa situação.