Neste texto, vamos discutir os textos escritos e publicados por George R. R. Martin nas primeiras duas décadas de sua carreira. É comum lermos que, para além das As Crônicas de Gelo e Fogo, o autor não possui obras de fantasia, sendo um autor de ficção científica. Isto não é inteiramente verdade, e o que pretendo fazer agora é delinear as duas fases de Martin enquanto escritor antes de seu sucesso mundial.

George R. R. Martin antes de gelo e fogo

George R. R. Martin 1972
George R. R. Martin em 1972. Fonte: Twitter pessoal.

Antes dos anos 1990, quando As Crônicas de Gelo e Fogo foram escritas e lançadas, George R. R. Martin já era relativamente conhecido, principalmente dentro do meio da ficção especulativa. Havia vencido diversos prêmios por seus contos, era editor da série Wild Cards e roteirista de séries de TV de Hollywood. Embora a fama atual do autor seja muito maior, já havia reconhecimento suficiente para que Martin fosse um dos principais nomes da geração de escritores fantásticos dos anos 1970. O gênero que o tornou um autor bestseller, a fantasia inspirada em tempos medievais, no entanto, nunca foi o gênero ao qual dedicou a maior parte de seu tempo.

Como o próprio Martin explica em Os Herdeiros do Castelo Tartaruga, capítulo de RRetrospectiva da Obra, a fantasia possuía muito pouco espaço no mercado nas duas décadas iniciais de sua carreira profissional. Muitos autores que gostavam do gênero acabavam por torná-lo um hobby, escrevendo entre os intervalos de suas produções de ficção científica. De fato, são muito poucas as histórias do autor com uma ambientação que lembre minimamente As Crônicas de Gelo e Fogo – com reis, rainhas, castelos e cavaleiros.

No fim das contas, Martin acredita que os gêneros não são mais do que fôrmas para que um escritor conte uma mesma história. Ele entende que não importa se um autor usa a fôrma da ficção científica (com novos planetas, naves espaciais e alienígenas), a fôrma do terror  (com suas criaturas sombrias) ou a fantasia épica. O importante é que os personagens sejam humanos o suficiente para que ela seja boa. Ainda assim, é possível identificar algumas fases na escrita de Martin no que tange aos gêneros ou subgêneros.

Os anos 1970: a ficção científica

Os anos 1970 são os anos da ficção científica na obra de Martin. Seja pelo mercado mais voltado para esse tema, pela emergência das agendas pacifistas – das quais ele era um grande defensor – ou por qualquer outro motivo que possamos encontrar, a imensa maioria das de suas histórias publicadas nesta década se passam no futuro, seja ele distante ou não, na terra ou não, com avanços tecnológicos ou com um cenário pós-apocalíptico.

George R. R. Martin 1978 New York
George R. R. Martin em 1978. Fonte: Twitter pessoal.

Os Mil Mundos foram criados nesta época, com o seu conto de estréia, O Herói (1971), sendo a primeira venda profissional de George. Seu primeiro romance, A Morte da Luz (1977), também é ambientado nos Mil Mundos, no planeta decadente de Worlorn. Enquanto histórias como Slide Show (1973), Starlady (1976) e Voadores da Noite (1980) falam de viagens espaciais, alienígenas com alta tecnologia, mas, ainda assim, mundos onde os mesmos problemas sociais de nosso mundo perduram, In the House of the Worm (1976), O Homem do Depósito de Carne (1976) eFor a Single Yesterday (1976) são completas distopias causadas pelas atividades belicosas ou segregacionistas que estavam (e ainda estão) em pauta.

Os anos 1980: o mundo real

Na década de 1980, os Mil Mundos praticamente sumiram do horizonte de Martin, contando apenas com A Flor de Vidro, última publicação neste universo até o momento, e mais novos contos de Tuf Voyaging. No caso de Tuf (assim como no de sua parceria com Lisa Tuttle, Santuário dos Ventos), as ideias foram gestadas na década anterior: o primeiro conto, A Beast for Norn, data de 1976, e a primeira parte de Santuário dos Ventos, The Storms of Windhaven, foi publicada em 1975.

O que, então, Martin publicou nos anos oitenta? Embora tenha se afastado um pouco da literatura na segunda metade da década, se dedicando mais a Hollywood, o autor nunca parou de publicar, e, se olharmos para os anos imediatamente anteriores, veremos ainda uma produção bem sólida, mas com uma principal diferença: ele passou a escrever sobre o mundo real.

É claro, os elementos fantásticos não desapareceram, mas começaram a surgir histórias ambientadas nas cidades do século XX, com monstros, terror psicológico e mesmo bizarro. Todas as obras de Martin do período possuem uma ambientação parecida, com a única exceção – em termos – sendo Sonho Febril. O romance se passa nos Estados Unidos do século XIX, mas ainda assim opera dentro da mesma lógica de mundo real, e não futurista ou de outros planetas,

The Armageddon Rag
Capa da primeira edição de The Armageddon Rag, de 1983. Reprodução. Fonte: George R. R. Martin, site oficial.

The Armageddon Rag, o livro que deveria lançar a carreira de Martin a um novo patamar (mas acabou quase o levando à falência) é um romance ambientado nos Estados Unidos dos anos 1980, revisitando a cultura hippie da década de 1960. Retratos de Seus Filhos, Variantes Inúteis e Recordando Melody têm a mesma configuração, debatendo temas mais introspectivos como os limites entre fantasia e realidade, auto-realização e nostalgia da juventude, sempre com elementos fantásticos (ou semi-fantásticos) rondando a narrativa.

As histórias de terror mais notáveis desta época são O Tratamento do Macaco, O Homem em Forma de Pera e O Troca-Peles (também devemos incluir Melody aqui), e possuem características marcadas por vidas cotidianas que logo se transformam em uma eterna agonia. Exemplos são a situação de se ter um macaco invisível como um parasita que rouba toda sua comida, ou uma obsessão mútua por um vizinho bastante peculiar.

O projeto colaborativo Wild Cards, que teve início na segunda metade dos anos 1980 e é publicado até os dias de hoje, também é ambientado no nosso mundo, embora em uma versão alternativa onde um vírus se espalhou e deu poderes para uma parte considerável da população. Como disse logo antes, depois desta primeira metade da década, e de sua quase falência, Martin foi para Hollywood, o que o deixava com pouco tempo para escrever.

Conclusões

Sendo assim, fica clara esta distinção: durante a década de 1970, a principal tendência de Martin era a ficção científica, um futuro distante, ou não tanto, enquanto na década seguinte (embora tenha trabalhado com histórias remanescentes, seja de Tuf Voyagingou de Santuário dos Ventos), o autor está mais voltado a criar histórias de terror ambientadas em nosso mundo, até se distanciar da escrita, na segunda metade da década.

No entanto, quando retornou de vez à literatura, em 1990, estava planejando um retorno à ficção científica e aos Mil Mundos com o romance Avalon. O livro, porém, foi abandonado no ano seguinte, dando lugar à grande fantasia épica e obra-prima de Martin, As Crônicas de Gelo e Fogo. O resto da história, nós já conhecemos.