Senhora Coração de Pedra
A Senhora Coração de pedra, por Marta Sokołowska.

Meses atrás, publiquei aqui minha análise do prólogo de A Fúria dos Reis. Na ocasião, alguns leitores sugeriram que fizéssemos, aqui no site, uma série de textos sobre o prólogos e epílogos de todos os livros de As Crônicas de Gelo e Fogo. Mantivemos essa sugestão entre os nossos planos, e este texto é o que resulta dela.

Aqui, me proponho a analisar o epílogo do terceiro livro, A Tormenta de Espadas, tendo como foco a temática da vingança, tão presente nos livros e nas obras de Martin. Merrett me parece ser um do casos mais exemplares do tratamento que o autor dá para essa ideia, e é por isso que o escolhi para essa abordagem.

George R. R. Martin e a vingança

A vingança é um tema bastante caro ao autor, que teve sua formação como escritor bastante ligada à Nova Onda da Ficção Científica, tendo como principais influências, autores como Ursula K. Le Guin, Roger Zelazny e Samuel Delany. Concomitante aos movimentos sociais pacifistas nos Estados Unidos, às críticas à Guerra do Vietnã, às lutas por direitos civis e contrárias ao colonialismo, a Nova Onda é conhecida por inserir debates sociais dentro da ficção científica, preocupada em ter a literatura como um meio para discutir a sociedade.

A Senhora Coração de Pedra. Arte: Marc Simonetti.

Em In the House of the Worm, publicada em 1974, Martin escreve sobre a busca de vingança de Annelyn, um menino arrogante, contra o Meatbringer. No pano de fundo, os seres humanos nesse planeta pós-apocalíptico, travam uma guerra de séculos com uma raça que vive nas profundezas das cavernas, os grouns. No desenrolar da história, a empreitada de Annelyn acaba causando a morte de todos os seus amigos, e quase a sua própria. No entanto, ao sobreviver, ele descobre como os motivos de uma querela sem fim acabam se perdendo com o tempo, e com isso, o seu sentido, apenas normalizando a violência.

Em As Crônicas de Gelo e Fogo, há também as vinganças como as de Doran e Oberyn Martell contra Tywin Lannister, ou a trama da “justiça poética” que recai sobre Theon Greyjoy, ambos casos que mereceriam análises próprias. Mesmo sem discuti-los a fundo nesse momento, acredito que uma leitura detalhada das duas situações revele uma posição crítica da violência e momentos em que a sede de vingança apenas se retroalimenta e desumaniza o outro. Adam Feldman escreveu sobre esse tema no caso de Doran e Adam Qureshi sobre o caso de Theon. Isso é um dos temas centrais também no enredo de Arya e Tyrion.

Sendo assim, me parece que observar com cuidado um desses casos pode nos ajudar a vê-los como um conjunto no futuro, para entendermos como a literatura de Martin apresenta a ideia da vingança, e que tipo de propostas ela faz para nossas visões de mundo e valores.

Focalizador: por que Merrett?

De acordo com Gerard Genette, um dos maiores especialistas em estudos em narratologia, no livro Narrative Discourse Revisisted (1983), focalização é:

Uma restrição do “campo”, uma seleção de informações narrativas em relação ao que era tradicionalmente chamado de onisciência (tradução minha).

Sendo assim, focalização é um termo que substitui o “ponto de vista”. A narração de As Crônicas de Gelo e Fogo é feita em terceira pessoa, mas há uma restrição a esse narrador, pois ele é focalizado em diferentes personagens ao longo da narrativa. No caso especial dos prólogos e epílogos, e em parte, o que motiva essa série de posts focados neles, temos focalizadores inéditos, personagens que têm apenas um capítulo sobre o seu ponto de vista.

A escolha deles, porém, não é por acaso, nem tem a ver apenas com onde o autor quer que o foco de sua narrativa esteja. Ser um focalizador também torna os pensamentos e emoções desse personagem acessíveis ao leitor. O epílogo de A Tormenta de Espadas poderia ter um significado muito diferente se fosse visto através dos olhos de Limo ou da Senhora Coração de Pedra. No entanto, a escolha é um filho de Walder Frey, arquiteto do Casamento Vermelho, evento que levou à morte de dois protagonistas, e advindo de uma família que até então, era representada como o que de mais desprezível havia em Westeros.

Até o momento em que aparece como o focalizador no epílogo, Merrett Frey havia sido mencionado apenas três vezes na obra, e em nenhuma delas apresentara algum feito muito notável. Ele era, até então, mais um entre os muitos Freys. Os seus irmãos, sobrinhos, primos e demais parentes, no entanto, já haviam sido largamente desenvolvidos. Seu filho, “Pequeno Walder” era uma criança cruel durante sua estadia como protegido em Winterfell. Seu irmão menor, Elmar, era rude com Arya (que estava disfarçada) enquanto escudeiro de Roose Bolton. E estas são apenas as crianças.

Seus irmãos, Ryman, Lothar, Walder Negro e Walder Rivers já haviam sido representados como grosseiros ou dissimulados. Em alguma medida, arquitetos da traição que Robb sofreu, com aval de seu pai e senhor da casa Frey, Walder. Apesar de exceções, como Roslin, Cleos e Grande Walder, a família era majoritariamente apresentada como ardilosa, rancorosa e de lealdade questionável. E para além de tudo isso, sua aparência física era motivo de comparações que beiram o ridículo, com a ênfase na “cara de fuinha” dos membros da família sendo inclusive reiterada. Sendo assim, o leitor possuía diversos motivos para não sentir empatia por eles, e especialmente após o Casamento Vermelho, torcer para que coisas ruins acontecessem a eles como uma forma de vingança pelas injustiças sofridas por Robb, Catelyn e a causa nortenha.

Quando conhecemos Merrett, portanto, temos todos os motivos do mundo para acreditar que ele não seja uma boa pessoa. Talvez alguém que mereça algum tipo de punição, dependendo do tipo de leitura feita até esse momento. Mas a primeira coisa que descobrimos sobre ele é, na verdade, uma tragédia pessoal:

Eu dia esperei me tornar o maior cavaleiro que algum dia baixou uma lança para o ataque. Os deuses roubaram-me isso. Por que não haveria de beber uma taça de vinho de vez em quando? Ajuda minhas dores de cabeça. Além disso, meu pai despreza-me, meus filhos são inúteis. O que tenho eu que me leve a ficar sóbrio?
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

Após ter contraído doenças sexualmente transmissíveis quando jovem, em excursão para derrotar a Irmandade da Mata do Rei, Merrett sofreu um acidente em uma justa, que o deixou com sequelas para o resto da vida: ele sofre de dores de cabeça crônicas que o impediram de seguir lutando, e atrapalham a maior parte de suas atividades. O ambiente hostil das Gêmeas também agravou seu fracasso em encontrar alternativas, uma vez que Walder nunca demonstrou genuína preocupação com ele e seus irmãos, que vivem em estado de competição uns com os outros.

Merrett Frey e família, por amuelia.

O que Merrett demonstra é uma vida marcada pela desilusão e por uma sensação de inevitabilidade do fracasso, uma vez que não vê oportunidades para um recomeço:

Não possuía terras nem riquezas que fossem suas. Possuía as roupas do corpo, mas não muito mais, nem mesmo o cavalo que montava. Não era suficientemente inteligente para ser um meistre, não era suficientemente piedoso para septão ou selvagem o bastante para mercenário.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

Mas naquele momento em específico, ele vê uma oportunidade de retomar o respeito de seus familiares. Sua missão é resgatar Petyr Frey, também conhecido como Petyr Espinha. Ele fora sequestrado por bandidos, algo que vem assolando as Terras Fluviais, especialmente em tempos de guerra. Merrett está levando a recompensa e espera que sua tarefa seja fácil, e não havia motivo para pensar diferente. Além de tudo, é sua única esperança:

Se trouxer o Petyr para casa casa em segurança, minha sorte mudará.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

No entanto, ao chegar no resgate, ele é surpreendido pelo cadáver de Petyr já enforcado, em uma armadilha dos fora-da-lei para pegá-lo também. Quando Merrett é posto com a corda no pescoço, surge uma figura encapuzada, que revela ser a Senhora Coração de Pedra, Catelyn Tully trazida de volta à vida. Ao fim do livro, ela ordena o enforcamento de Merrett.

Ela se lembra

Se Merrett era um personagem com o qual a indisposição do leitor era induzida, um conflito entre ele e Catelyn, esposa de Eddard, mãe das crianças Stark e ponto de vista que acompanhamos por três livros, parece ser fácil de tomar partido. Mas será que a Catelyn que encontramos aqui é a mesma que conhecíamos? George respondeu essa pergunta em correspondência com um leitor:

A morte muda as pessoas. Não, eu não acho que Catelyn seja quem ela era, não mais do que Lorde Beric…

Aliás, não haverá mais capítulos pelo ponto de vista dela nos próximos livros, o que pode indicar algo.

Muito obrigado, como de costume. Fico contente que você tenha gostado do livro.

(Uncat. So Spake Martin. Westeros.org. 22 de agosto de 2000. Tradução minha.)

Embora não tenha explicitado qual a sua intenção ao fazer recair essa mudança drástica sobre a personagem, a mudança é perceptível o suficiente no texto para que se observe não apenas que ela mudou, mas o como ela mudou. Até sua morte no Casamento Vermelho, Catelyn é ativamente uma das personagens que tem menos gosto pela guerra e os conflitos. Diversas vezes, ela demonstra que queria ir pra casa, incentiva Robb e seus vassalos a não terem gosto pela vingança, e quando esta é oferecida a ela, sua reação não é entusiasmada:

— Sua dor é minha, Cat — disse (Edmure) quando se separaram. — Quando soubemos o que aconteceu a Lorde Eddard… Os Lannister pagarão, juro, terá a sua vingança.

— Isso me trará Ned de volta? – ela disse em tom cortante. A ferida ainda era recente demais para palavras mais suaves. (…)
(A Guerra dos Tronos. Capítulo 71, Catelyn XI. Tradução de Jorge Candeias.)

E mesmo durante o Casamento Vermelho, como uma última cartada, ela apela para os valores familiares de Walder Frey para convencê-lo a poupar Robb:

— Lorde Walder! — gritou. — LORDE WALDER! – O tambor batia lento e sonoro, fim bum fim. — Basta — disse Catelyn. — Basta, eu clamo. Pagou traição com traição, que fique por aqui. – Quando encostou o punhal na garganta de Guizo, a memória do quarto de doente de Bran voltou, com o toque do açona própria garganta. O tambor continuava bum fim bum fim bum fim bum. — Por favor — disse. — Ele é meu filho. O meu primeiro filho, e último. Deixe-o ir. Deixe-o ir e eu juro que esqueceremos isto… esqueceremos tudo que fez aqui. Juro pelos deuses antigos e pelos novos, nós… nós não buscaremos vingança.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 51, Catelyn VII. Tradução de Jorge Candeias.)

Merrett Frey hangs
“O Enforcamento de Merrett Frey”, arte de drbrunch.

Já quando reaparece, sob a identidade de Senhora Coração de Pedra, Catelyn toma atitudes diferentes. Além dos sinais físicos do apodrecimento do corpo quando foi ressuscitada, a sua mente também sofreu severos traumas, resultado da morte de Robb (que acreditava ser seu único filho restante), sua causa e da sua própria experiência com a morte. Com a garganta cortada, ela se expressa em poucas palavras, e todas as vezes que o faz, está falando de vingança. Destruir os Frey, Bolton e Lannister por aquilo que fizeram a ela e à sua família.

No entanto, com o que sabemos de Merrett até aqui, é possível questionar se ele deveria de fato ser alvo da obsessão por vingança de Catelyn. Mesmo antes de ser ameaçado, o filho de Walder pensa consigo mesmo sobre como sua parte no Casamento Vermelho foi pequena, e mesmo nela, foi incompetente. Merrett é, também, uma vítima de suas circunstâncias, e numa sociedade altamente patriarcal, não lhe cabia questionar as ordens de seu pai. Prestes a ser enforcado, ele mesmo relembra, num apelo:

Foi meu pai que fez isso. Tudo o que fiz foi beber. Não mataria um homem por beber. (…) O Casamento Vermelho foi obra de meu pai, e de Ryman e de Lorde Bolton.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

Ainda mais questionável que o assassinato de Merrett, é o da vítima anterior, Petyr Frey. Não apenas não há motivos para considerarmos que ele seja culpado de nada individualmente, afinal, ele é pouco mais velho que Robb, mas também, o narrador opta por descrever com detalhes o cadáver, de maneira a humanizá-lo:

Petyr Espinha pendia do galho de um carvalho, com um nó corredio bem apertado em volta de seu pescoço longo e esguio. Os olhos saltavam de um rosto negro, olhando acusadoramente para Merret. Chegou tarde demais, pareciam dizer. Mas não tinha chegado. Não tinha! Veio quando lhe tinham dito para vir.
(A Tormenta de Espadas. Capítulo 81, Epílogo. Tradução de Jorge Candeias.)

Esse desvio de Catelyn pode não ficar evidente em uma primeira leitura quando se trata de Freys, mas definitivamente se intensifica em O Festim dos Corvos, quando ela decide enforcar Brienne e Podrick. No entanto, as marcas de que a sua vingança estava se tornando indiscriminada já estavam plantadas desde sua primeira aparição, um contraste com a Catelyn que o leitor conheceu enquanto viva.

O que nos leva novamente à questão da perspectiva: para a Senhora Coração de Pedra, mais do que vingança, o que se está fazendo é justiça. Se o leitor ignorar a focalização de Merrett e o enfoque no sofrimento e no grotesco dos assassinatos (ou glamurizá-los), também poderá ter essa opinião. No entanto, devemos nos questionar, nos casos de Merrett, Petyr, Ryman, Podrick e Brienne, que tipo de resolução de conflitos está sendo promovida pelas ações de Catelyn? Há algum senso de justiça em castigar arbitrariamente, apontando para uma razão unicamente emocional? Parte da resposta para isso vem em um discurso de Ellaria Sand:

Posso levar um crânio para a cama, comigo, para me dar conforto à noite? Ele me fará rir, me escreverá canções, cuidará de mim quando eu estiver velha e doente?
(A Dança dos Dragões. Capítulo 34, O Sentinela. Tradução de Márcia Blasques.)

Conclusões (e Game of Thrones?)

Em consonância com os debates sociais propostos pela Nova Onda da Ficção Científica, Martin tem uma abordagem bastante crítica da vingança e da violência como forma de resolver conflitos. No caso de Merrett e Catelyn, e autor utiliza diversas técnicas narrativas para dar enfoque nos aspectos negativos daquela cena. Entre eles, descrição detalhada dos horrores ali presentes, focalizar a narrativa no personagem que é a vítima e criar uma incoerência entre a maneira que Catelyn pensava enquanto viva, com as atitudes que está tomando no momento, e isso, aliado à sua deterioração física.

Quando pensei nesse texto, foi em face de uma cena de vingança contra os Frey apresentada na adaptação televisiva dos livros de Martin, Game of Thrones, onde a personagem Arya Stark assassina todos os envolvidos no Casamento Vermelho e sai triunfante das Gêmeas, aliada a uma trilha sonora e uso de câmera que retratam a justiça sendo feita na ocasião.

Como preferi me ater ao epílogo, para ser fiel a série de posts que estamos escrevendo aqui no site, convido o leitor à reflexão: as noções de vingança em As Crônicas de Gelo e Fogo e em Game of Thrones são muito diferentes? Eu acredito que sim, mas é sempre muito frutífero deixar o debate em aberto, para que possamos pensar juntos e aprender uns com os outros.